Dia
10 de novembro de 2008
Tomam-se
umas dezenas de quilos de carne, ossos e sangue, segundo os padrões
adequados. Dispõem-se harmoniosamente em cabeça, tronco e membros,
recheiam-se de vísceras e de uma rede de veias e nervos, tendo o
cuidado de evitar erros de fabrico que deem pretexto ao aparecimento
de fenómenos teratológicos. A cor da pele não tem importância
nenhuma.
Ao
produto deste trabalho melindroso dá-se o nome de homem. Serve-se
quente ou frio, conforme a latitude, a estação do ano, a idade e o
temperamento. Quando se pretende lançar protótipos no mercado,
infundem-se-lhes algumas qualidades que os vão distinguir do comum:
coragem, inteligência, sensibilidade, carácter, amor da justiça,
bondade activa, respeito pelo próximo e pelo distante. Os produtos
de segunda escolha terão, em maior ou menor grau, um ou outro destes
atributos positivos, a par dos opostos, em geral predominantes. Manda
a modéstia não considerar viáveis os produtos integralmente
positivos ou negativos. De qualquer modo, sabe-se que também nestes
casos a cor da pele não tem importância nenhuma.
O
homem, entretanto classificado por um rótulo pessoal que o
distinguirá dos seus parceiros, saídos como ele da linha de
montagem, é posto a viver num edifício a que se dá, por sua vez, o
nome de Sociedade. Ocupará um dos andares desse edifício, mas
raramente lhe será consentido subir a escada. Descer é permitido e
por vezes facilitado. Nos andares do edifício há muitas moradas,
designadas umas vezes por camadas sociais, outras vezes por
profissões. A circulação faz-se por canais chamados hábito,
costume e preconceito. É perigoso andar contra a corrente dos
canais, embora certos homens o façam durante toda a sua vida. Esses
homens, em cuja massa carnal estão fundidas as qualidades que roçam
a perfeição, ou que por essas qualidades optaram deliberadamente,
não se distinguem pela cor da pele. Há-os brancos e negros,
amarelos e pardos. São poucos os acobreados por se tratar de uma
série quase extinta.
O
destino final do homem é, como se sabe desde o princípio do mundo,
a morte. A morte, no seu momento preciso, é igual para todos. Não o
que a precede imediatamente. Pode-se morrer com simplicidade, como
quem adormece; pode-se morrer entre as tenazes de uma dessas doenças
de que eufemisticamente se diz que “não perdoam”; pode-se morrer
sob a tortura, num campo de concentração; pode-se morrer
volatilizado no interior de um sol atómico; pode-se morrer ao
volante de um Jaguar ou atropelado por ele; pode-se morrer de fome ou
de indigestão; pode-se morrer também de um tiro de espingarda, ao
fim da tarde, quando ainda há luz de dia e não se acredita que a
morte esteja perto. Mas a cor da pele não tem importância nenhuma.
Martin
Luther King era um homem como qualquer um de nós. Tinha as virtudes
que sabemos, certamente alguns defeitos que não lhe diminuíam as
virtudes. Tinha um trabalho a fazer — e fazia-o. Lutava contra as
correntes do costume, do hábito e do preconceito, mergulhado nelas
até ao pescoço. Até que veio o tiro de espingarda lembrar aos
distraídos que nós somos que a cor da pele tem muita importância.
José Saramago, in O caderno
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