segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 15




Os homens caídos ao pé da escada começaram a se levantar aos poucos com uma profusão de palavrões e gemidos.
Alguém acenda uma luz, acho que desloquei o dedão — disse um deles, Parsons, um homem de pele morena e ar sombrio, piloto do bote de Standish, o mesmo em que Harrison era remador.
A lanterna deve estar perto da abita — disse Leach, sentando na beira do beliche em que eu estava escondido.
Alguém moveu coisas para lá e para cá e riscou alguns fósforos até conseguir acender a lanterna, que iluminou com sua claridade mortiça e embaçada os homens que tropegavam com as pernas de fora, avaliando as pancadas e cuidando das feridas. Oofty-Oofty segurou o polegar de Parsons e, dando um puxão forte, devolveu-o ao lugar com um estalo. No mesmo instante, reparei que os punhos do canaca estavam rasgados de um lado a outro, com o osso exposto. Ele os ergueu à vista de todos e exibiu os belos dentes brancos num sorriso, explicando que tinha se ferido dando socos na boca de Wolf Larsen.
Então foi você, seu preto miserável? — interveio agressivamente um certo Kelly, estivador irlandês-americano que fazia sua primeira viagem no mar e remava o bote de Kerfoot.
Assim que fez a pergunta, ele cuspiu um bocado de sangue e dentes e avançou com seu semblante belicoso em direção a Oofty-Oofty. O canaca deu um salto para trás, alcançando o seu leito, e retornou com outro salto, brandindo uma faca comprida.
Ah, vão deitar, vocês me cansam com isso! — Leach interferiu. Apesar da juventude e da inexperiência, estava claro que ele mandava no castelo de proa. — Vamos, Kelly. Deixe Oofty-Oofty em paz. Como ele podia saber que era você no escuro, diabo?
Kelly resmungou um pouco e se aquietou, enquanto o canaca mostrava os dentes brancos num sorriso agradecido. Era uma bela criatura, de traços agradáveis, quase feminina, e seus olhos grandes transmitiam uma ternura e um ar sonhador que iam contra sua reputação de encrenqueiro e agitador.
Como ele conseguiu escapar? — perguntou Johnson.
Ele estava sentado na beira da cama e toda a sua postura emanava desânimo e derrota. Continuava ofegante por causa do esforço. Sua camisa fora inteiramente arrancada durante a briga e o sangue que escapava de um corte no lado do rosto escorria em seu peito nu e seguia caminho pela coxa branca até pingar no chão.
Porque ele é o diabo, como eu já tinha dito — respondeu Leach. No ato, ele se pôs em pé e começou a vociferar sua decepção com lágrimas nos olhos.
E nenhum de vocês foi capaz de arranjar uma faca! — lamentava sem parar.
Mas os outros marujos não lhe davam atenção, pois estavam transidos de medo, pensando nas consequências.
Como ele vai saber quem era quem? — perguntou Kelly, lançando à sua volta um olhar homicida. — A não ser que um de nós dê com a língua nos dentes.
Ele saberá quando nos encarar nos olhos — respondeu Parsons. — Basta ele olhar uma única vez.
Diga a ele que uma tábua do piso virou e te acertou no meio dos dentes — disse Louis com um sorriso provocador. Ele era o único que não tinha saído da cama, e agora exultava por não ter nenhum machucado implicando seu envolvimento na luta. — Esperem só amanhã, quando ele der uma boa olhada no focinho de vocês.
Vamos dizer que a gente achava que era o imediato — disse um deles.
Depois outro:
Eu já sei o que vou dizer. Que ouvi uma briga, pulei da cama, acabei ganhando um murro no queixo e saí distribuindo pancada. Não dava pra ver quem era ou o que tava acontecendo no escuro, então bati às cegas.
E acabou me acertando, é claro — apoiou Kelly, um pouco mais animado.
Leach e Johnson não participavam da discussão e ficava evidente que eram vistos pelos companheiros como homens já condenados ao pior, além de qualquer salvação, praticamente mortos. Leach aguentou durante algum tempo os lamentos e acusações, até que enfim estourou:
Vocês me cansam com isso! Um bando de imprestáveis, é isso que são! Se falassem menos com a boca e usassem as mãos para alguma coisa, teríamos acabado com ele. Por que ninguém foi capaz de me arranjar uma faca quando pedi? Vocês me dão nojo! Ficam aí choramingando e gemendo, como se ele pudesse chegar e matar todo mundo. Vocês sabem muito bem que ele não pode fazer isso. Não pode abrir mão de vocês. Não há nenhum recrutador de marujos ou vagabundo de praia aqui perto e ele precisa do serviço de vocês, ah se precisa! Sem vocês, quem vai remar, pilotar ou armar as velas? Eu e Johnson vamos pagar o pato. Voltem para a cama e fechem a matraca. Preciso dormir um pouco.
Pode ser, pode ser — opinou Parsons. — Talvez ele não faça nada com a gente, mas anotem o que vou dizer: o inferno é uma geleira perto do que vai ser esse barco daqui pra frente.
Durante todo esse tempo, eu estava mais preocupado com a minha própria situação. O que aconteceria comigo quando esses homens descobrissem a minha presença? Eu nunca conseguiria escapar da mesma forma que Wolf Larsen. Bem nesse momento, Latimer gritou pela portinhola:
Hump! O velho tá chamando!
Ele não tá aqui! — Parsons gritou de volta.
Está, sim — falei, escorregando para fora da cama e fazendo o possível para manter a voz firme e convicta.
Os marujos me fitaram com preocupação. O medo e a crueldade que nasce do medo estavam estampados em suas faces.
Estou indo! — gritei para Latimer.
Não está, não! — gritou Kelly, interpondo-se entre mim e a escada, com a mão direita formando a garra de um estrangulador. — Maldito bisbilhoteiro! Vou fechar a sua boca!
Deixe ele ir — ordenou Leach.
Não nessa vida — o outro respondeu com raiva.
Leach não se moveu da beira da cama.
Deixe ele ir, escute o que estou dizendo — repetiu, mas dessa vez sua voz soou ríspida e metálica.
O irlandês cedeu. Fiz menção de passar e ele abriu caminho. Quando alcancei a escada, virei a cabeça e me deparei com um círculo de rostos mal-encarados e brutais me observando na penumbra. Fui invadido por uma compaixão súbita e profunda. Lembrei das palavras do cockney. Como Deus devia odiá-los para torturá-los dessa maneira!
Não vi nem ouvi nada, podem acreditar em mim — falei em voz baixa.
Eu disse, ele é boa pessoa — escutei Leach dizer enquanto eu subia a escada. — Não gosta do velho, é dos nossos.
Fui encontrar Wolf Larsen em sua cabine, despido e coberto de sangue, esperando por mim. Recebeu-me com um de seus sorrisos maliciosos.
Venha, faça o seu trabalho, Doutor. É uma viagem promissora para a prática da sua profissão. Não sei o que seria do Ghost sem você, e se eu fosse capaz de cultivar sentimentos nobres, diria que o comandante da escuna está profundamente agradecido.
Eu sabia usar a caixa de primeiros-socorros simples que equipava o Ghost, e enquanto eu aquecia a água e preparava o material para fazer os curativos ele ficou se movimentando sem parar, rindo e puxando conversa, examinando seus ferimentos com olhar calculista. Eu nunca o vira despido e a visão de seu corpo me arrancou o fôlego. A exaltação da carne nunca foi uma de minhas fraquezas, longe disso, mas tenho sensibilidade artística suficiente para saber apreciar suas maravilhas.
Devo admitir que fiquei fascinado com os traços perfeitos da figura de Wolf Larsen e com o que posso chamar de sua terrível beleza. Eu tinha reparado nos homens do castelo de proa. Muitos eram bastante musculosos, mas havia algo errado neles, algo que não se desenvolveu o bastante aqui ou ali, uma torção ou curva que arruinava a simetria, pernas curtas ou compridas demais, tendões e ossos ausentes ou expostos em demasia. Oofty-Oofty era o único cujas formas agradavam por inteiro, embora isso se devesse em parte a um aspecto que eu chamaria de feminino.
Wolf Larsen, porém, tinha uma figura de homem, masculina, e de uma perfeição que o aproximava de um deus. Enquanto passeava pela cabine ou erguia os braços, músculos enormes saltavam e se moviam por baixo de sua pele acetinada. Esqueci de comentar que o bronzeado se limitava ao seu rosto. Seu corpo, graças à estirpe escandinava, era branco como o das mais brancas mulheres. Quando levantou a mão para apalpar a ferida na cabeça, vi seu bíceps mover-se como algo vivo por baixo do revestimento alvo. Era o bíceps que quase havia arrancado minha vida, que desferira tantos golpes mortais diante de meus olhos. Eu não conseguia desgrudar os olhos dele. Fiquei ali parado, sem perceber que o rolo de algodão antisséptico que eu estava segurando começara a se desenrolar pelo piso.
Ele parou para me olhar, e assim fiquei consciente de que o estava encarando.
Deus fez um bom trabalho com você — falei.
Fez? — ele respondeu. — Já pensei nisso algumas vezes, e me perguntei por quê.
Com o propósito de…
Utilidade — ele me interrompeu. — Esse corpo foi talhado para o uso. Esses músculos foram feitos para agarrar, trucidar e destruir coisas vivas que se interpõem entre mim e a vida. Mas você pensou alguma vez nas outras coisas vivas? Elas também possuem músculos, de uma espécie ou outra, feitos para agarrar, trucidar e destruir, e quando elas se interpõem entre mim e a vida, eu agarro com mais força, trucido com mais violência e destruo mais completamente. Propósito não é o termo correto, e sim utilidade.
Isso não é belo — protestei.
A vida não é bela, você quer dizer — ele sorriu. — Mesmo assim, você diz que fizeram um bom trabalho em mim. Percebe?
Ele contraiu as pernas e os pés, crispando os dedos sobre o piso da cabine, como se tentasse agarrar-se nele. Nós, protuberâncias e montanhas de músculos se retorceram e se retesaram por baixo da pele.
Apalpe — ele ordenou.
Eram duros como ferro. Também observei que seu corpo inteiro havia se mobilizado inconscientemente e ficado tenso e alerta. Músculos migravam e se reacomodavam com suavidade em torno dos quadris, nas costas e nos ombros. Os braços estavam ligeiramente erguidos, com os músculos enrijecidos e os dedos tão comprimidos que as mãos pareciam garras. Até os olhos tinham trocado de expressão, estavam vigilantes e avaliadores, animados por um brilho que só podia ser associado à batalha.
Estabilidade, equilíbrio — ele disse, relaxando e devolvendo o corpo à posição de repouso. — Pés para agarrar o chão, pernas para ficar em pé e manter a posição enquanto luto com braços e mãos, dentes e unhas para matar e não ser morto. Propósito? A palavra correta é utilidade.
Não o questionei. Eu tinha visto o mecanismo da fera primitiva e estava tão impressionado que era como se tivesse visto os motores de um grande navio de guerra ou de um transatlântico.
Considerando a violência do embate no castelo de proa, a superficialidade de seus ferimentos era surpreendente, e me orgulho de tê-los protegido com bons curativos. À exceção de alguns cortes mais sérios, o resto eram contusões e arranhões. A pancada que recebera antes de cair no mar tinha aberto um rasgo de vários centímetros no couro cabeludo. Seguindo suas instruções, limpei e costurei essa ferida, depois de ter raspado os cabelos em torno dela. Uma de suas panturrilhas estava severamente dilacerada e parecia ter sido abocanhada por um buldogue. Ele me disse que um dos marujos cravou-lhe os dentes no começo da briga e não arredou até ser arrastado ao topo da escada do castelo de proa, onde levou pontapés até se soltar.
Por sinal, Hump, como já comentei, você é um homem de habilidades — Wolf Larsen disse quando terminei meu trabalho. — Como sabe, estamos sem imediato. De agora em diante, você participará dos quartos de vigia, receberá setenta e cinco dólares por mês e será tratado, da proa à popa, como sr. Van Weyden.
Eu… eu não entendo nada de navegação, você sabe — gaguejei.
É absolutamente desnecessário.
Não ligo para subir na vida — objetei. — Já considero a vida arriscada o bastante na minha humilde situação. Não possuo experiência alguma. A mediocridade tem lá suas vantagens, sabe.
Ele sorriu como se tudo já estivesse acertado.
Não serei o imediato desse barco infernal! — gritei em tom de desafio.
O rosto dele endureceu e aquele brilho implacável surgiu em seus olhos. Ele caminhou até a porta de seu camarote e disse:
E agora, sr. Van Weyden, desejo-lhe boa noite.
Boa noite, sr. Larsen — murmurei, resignado.

Jack London, in O Lobo do Mar

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