segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Os brinquedos



A aula de trabalhos manuais no grupo era um tédio. Um pedaço de tábua, o mapa de Minas desenhado, a gente passava a aula martelando um prego dentro dos limites do desenho, eu não sabia para que — só depois fiquei sabendo que os furos eram para reter a argila que viria depois. O produto final seria um mapa de Minas em alto relevo. Mas que menino estava interessado num mapa de Minas em relevo? Minha cabeça estava cheia de projetos mais audazes. Queria participar da guerra. Os gibis estavam cheios de heróis meninos, o Águia Fantasma, piloto que sempre derrotava os japoneses. Fiz canhões e espingardas com bambu e elástico. Bolei e construí uma mira de avião bombardeiro com bambu e um espelhinho. Também com um bambu fiz periscópios. E catapultas que lançavam pedras. Aprendi o uso das ferramentas e leis de física. Aprendi que o atrito produz calor e que o calor amolece os metais. Como aprendi? Fixando as rodeiras dos meus carros de rolimã (que não eram de rolimã...) com pregos grossos. Bastava que o carro corresse por alguns metros, eu em cima, para que os pregos entortassem. Ficavam quentes. O calor amolecia os metais duros. Conclusão: as rodas do carro não podem ser fixadas com pregos, por grossos que sejam. Aprendi as leis da luz fazendo aparelhinhos de cinema. Constavam de uma caixa de sapatos, um buraco na frente, uma lâmpada dentro. A lente? Era fabricada com lâmpadas queimadas. Eram abertas pela rosca, seu conteúdo esvaziado, e cheias de água. Eram dependuradas na frente do buraco por onde passava a luz. Aprendemos logo que o filme, feito com desenhos a nanquim sobre uma tira de papel celofane, tinha de ser colocado de cabeça para baixo. E brincava de fazer bolhas de sabão: água morna numa caneca, sabão preto, um canudinho feito com talo de mamoeiro.
Equilibrava um cabo de vassoura no queixo. Sobre isso fazíamos campeonato. Uns loucos entravam dentro de um pneu que um outro ia rodando morro abaixo. Eu nunca tive coragem. E fazíamos bandas de música com instrumentos feitos com talos de aboboreira. Talos finos, som fino. Talos grossos, som grosso. Havia os talos retos e os talos retorcidos. E lá íamos nós, marchando, cada um soprando do jeito que o talo permitia.
Eu queria muito ter uma sinuquinha. Comprar, nem pensar! Primeiro, eu não tinha dinheiro. Segundo, não havia sinuquinhas para serem compradas. Tinham de ser feitas. O que demandava tempo, paciência e habilidade. Primeiro era preciso encontrar uma tábua bem lisa. Depois, juntar dinheiro para comprar um pedaço de flanela que seria usado para fazer o forro da sinuquinha. A seguir, as madeiras para as tabelas. E as tiras de borracha que seriam colocadas nelas. Por fim, meias velhas que serviriam de caçapas. Eu já tinha tudo que precisava para fazer minha sinuquinha. Resolvi fazê-la num fim de semana. Sozinho. Mas aí chegou o meu pai. Resolveu ajudar-me, sem que eu tivesse pedido. Aconteceu o desastre. Ele não sabia que o brinquedo, para ser divertido, tem de ser difícil. A bola tem de passar justinha no buraco da caçapa. Se o buraco for grande demais é fácil acertar. Quem começa o jogo vai até o fim, sem errar. Mas acho que ele raciocinou de outra forma: “Se um buraco apertado, difícil de a bola passar nele, dá à criança um quantum de alegria, um buraco largo deve dar muito mais alegria”. Pegou o serrote e começou a fazer buracos enormes nos ângulos da tábua. Eu implorava: “Não, pai, não...”. “Fica quieto, menino, eu sei o que estou fazendo...” Ele fez a sinuquinha. Mas nunca a usei. Não tinha graça. Era muito fácil.
Mas, de todos os brinquedos, aquele que eu mais amava era o balanço. Tão fácil de fazer. Basta ter uma árvore com um galho forte na horizontal e uma corda. Nos brinquedos comuns a criança brinca com o brinquedo. No balanço é o brinquedo que brinca com a gente. O corpo inteiro goza. O vento na cara, o frio na barriga...
O meu balanço estava amarrado num galho de uma ameixeira. Quando não se sabe ainda, é preciso a colaboração de um amigo que nos empurre. Depois a gente aprende o segredo. Com sucessivos deslocamentos do centro de gravidade do corpo, o balanço voa. Ah! A alegria de tocar com a ponta do pé uma folha num galho alto! Eu fazia um monte de folhas secas à frente do balanço. A aventura que exigia coragem era pular do balanço quando ele estivesse no alto para cair no monte de folhas secas.
Depois de velho, psicanalista, dei-me conta de que um balanço é um excelente remédio para a depressão. Por experiência própria. Bastava que eu balançasse para que a tristeza sumisse. Balanço e tristeza são incompatíveis. No balanço não há passado, não há futuro. É só o presente.
Desde então, por onde vou, anuncio: “É preciso fazer balanços”. Nos parques infantis os balanços são só para crianças até doze anos de idade. Sinto-me excluído. As prefeituras fariam bem em fazer, nas praças, balanços para os adultos. Um adulto que se assenta num balanço é porque perdeu a vergonha. E perder a vergonha é o início da felicidade.
Recebi a foto de um senhor respeitável balançando num balanço que mandou fazer no seu quintal depois que me ouviu falar sobre os poderes mágicos dos balanços. Tem a cara de uma criança. Os balanços fazem rejuvenescer.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Nenhum comentário:

Postar um comentário