segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O papel central de Mama


Mama tinha uma compleição excepcionalmente grande, com braços longos e poderosos. Durante as exibições de ataque, ela parecia muito intimidante, com os pelos eriçados, batendo os pés. Não tinha obviamente a quantidade de músculos e pelos de um macho, especialmente nos ombros, que os machos incham quando tentam impressionar. Mas o que lhe faltava em anatomia ela compensava em vigor. Mama era conhecida por dar golpes explosivos nas grandes portas de metal da jaula. Ela apoiava os punhos bem separados no chão e balançava o corpo inteiro entre os braços para dar um chute violento com os dois pés contra a porta. Isso sinalizava que ela estava exaltada de verdade e que ninguém devia se meter com ela.
A dominância de Mama vinha de sua personalidade ainda mais que de seu físico. Ela tinha o ar de uma avó que havia visto de tudo e não aceitava besteira de ninguém. Exigia tanto respeito que a primeira vez que a encarei diretamente a partir do outro lado do fosso me senti pequeno. Ela tinha o hábito de acenar calmamente com a cabeça para que você soubesse que ela o havia notado. Eu nunca percebera tamanha sabedoria e equilíbrio em qualquer outra espécie que não fosse a minha. Seu olhar era de amizade circunscrita: estava pronta para entender e gostar de você contanto que você não a contrariasse. Ela tinha até senso de humor. Os chimpanzés costumam exibir uma cara de riso durante as brincadeiras, mas eu também via isso em momentos em que isso não pareceria adequado, como quando um macho superior se deixava perseguir por um filhote chateado. Enquanto foge dos gritos do monstrinho, o “homem grande” da colônia usa uma expressão risonha, como se o absurdo da situação o divertisse. Certa vez, Mama mostrou a mesma cara de riso diante do final inesperado de um confronto tenso, do mesmo modo como reagimos a uma piada.
Meu colega Matthijs Schilder estava testando as reações dos chimpanzés aos predadores. Ele pôs uma máscara de pantera e, sem que os chimpanzés soubessem, escondeu-se nos arbustos perto do fosso de água que circundava a ilha dos símios. De repente, ele levantou a cabeça com a máscara, de modo que um grande felino parecia estar olhando para os chimpanzés da folhagem. Sempre alertas, eles reagiram em segundos com grande alarme e fúria. Dando berros altos e zangados, avançaram para atacar o predador com paus e pedras. (A propósito, a mesma reação foi observada entre os chimpanzés selvagens, que temem intensamente os leopardos à noite, mas os importunam durante o dia.) Matthijs teve dificuldade de evitar os projéteis, bem direcionados, e foi se esconder em outro lugar.
Depois de vários confrontos, ele ficou de pé e tirou a máscara para mostrar seu rosto familiar. A colônia se acalmou rapidamente. Mas, dentre todos os chimpanzés, foi Mama que mudou gradualmente a expressão de raiva e aflição para uma risada com a boca entreaberta e os lábios cobrindo frouxamente os dentes. Ela manteve essa cara por um tempo, sugerindo que percebera a brincadeira no disfarce de Matthijs.
Mama conectava-se com facilidade com todos, tanto machos quanto fêmeas, e tinha uma rede de apoio como nenhuma outra — era uma diplomata nata. Ela também não relutava em impor lealdade: tomava partido nas lutas pelo poder, optando por apoiar um macho contra outro, mas não tolerava que outras fêmeas manifestassem escolha diferente. As fêmeas que faziam isso, que intervinham nas batalhas dos machos em favor do competidor “errado”, se veriam, de repente, no final do dia, em apuros com Mama. Ela agia como líder de partido em relação a seu candidato favorito.
Nesse aspecto, Mama abria apenas uma exceção: para sua aliada Kuif, uma fêmea também conhecida como Gorila, nome que eu usei em alguns de meus outros livros por causa de sua face toda negra. Kuif tinha uma compleição ligeiramente menor que a de Mama. Nascidas no mesmo zoológico, Kuif e Mama tinham um passado compartilhado que se traduzia numa poderosa aliança que continuou até a morte de Kuif, alguns anos antes da de Mama. Nunca vi um único desentendimento entre essas duas fêmeas. Com frequência elas catavam uma à outra e sempre se apoiavam quando uma delas se metia em confusão. Kuif era a única fêmea que podia contrariar os desejos de Mama sem consequências. Ela apoiava um macho em particular que não era o preferido de Mama, mas Mama ignorava esse apoio, como se nunca tivesse notado. Em outros aspectos, Mama e Kuif geralmente agiam unidas. Uma briga séria com uma delas envolvia automaticamente a outra, e todos sabiam disso, inclusive os machos, que haviam aprendido que não podiam lidar com as duas fêmeas enfurecidas ao mesmo tempo. Mama e Kuif estavam sempre prontas a se apoiar e gritavam literalmente nos braços uma da outra após grandes convulsões.
Mama não era apenas uma figura central na colônia, mas também assumia o papel de elo com os seres humanos. Mais que qualquer outro chimpanzé, ela construía relacionamentos com pessoas de que gostava ou que percebia como importantes. Demonstrava enorme respeito pelo diretor do zoológico, por exemplo. A conexão comigo também se devia, em grande parte, a iniciativa sua. Muitas vezes tínhamos sessões de catação através das grades da jaula que ela compartilhava com sua amiga Kuif. Embora minhas relações com Mama fossem descontraídas, eu precisava ter cuidado com Kuif, que às vezes tentava me provocar, me testando. Os chimpanzés estão sempre no jogo da demonstração de superioridade, sempre buscando os limites da dominância, sua ou deles. Às vezes Kuif me agarrava através das grades, quando Mama estava sentada ao lado, de costas para ela. A melhor estratégia nesses casos é manter a calma e agir como se você mal percebesse; caso contrário, as coisas podem se intensificar. Nos últimos anos, minha relação com Kuif mudou radicalmente para melhor. Depois de ajudá-la a criar seus primeiros filhos sobreviventes, tornei-me seu ser humano favorito.
Infelizmente, Kuif havia perdido os filhotes anteriores por lactação insuficiente. Os recém-nascidos não conseguiam se desenvolver e definhavam. Toda vez que um deles morria, Kuif entrava numa profunda depressão, marcada por atitudes como balançar-se, agarrar o próprio corpo, recusar comida e soltar gritos de cortar o coração. Havia até mesmo indícios de lágrimas: embora acreditemos que somos os únicos primatas que lacrimejam, Kuif esfregava vigorosamente os olhos com as costas dos dois punhos, do modo que as crianças fazem depois de um bom choro. Talvez fosse apenas uma irritação nos olhos, mas, curiosamente, esse comportamento aparecia nas mesmas circunstâncias em que as lágrimas humanas escorrem.
Diante de tanto sofrimento repetido de Kuif, tive a ideia de ajudá-la a criar sua próxima prole com uma mamadeira. Mas previ um problema: as mães chimpanzés são extremamente possessivas, e era provável que Kuif não nos permitisse retirar o bebê para alimentá-lo. Kuif teria de usar a mamadeira sozinha. Era um plano audacioso, nunca tentado antes.
Então uma solução se apresentou. Nasceu na colônia o filhote de uma mãe surda.
No passado, essa chimpanzé fêmea jamais conseguira criar sua prole pela incapacidade de ouvir os sons suaves do bebê que indicam satisfação e desconforto. Essas vocalizações orientam o comportamento materno. A mãe surda pode se sentar sobre o bebê, por exemplo, sem perceber os gemidos desesperados. Para evitar mais um fracasso, tão duro para essa fêmea quanto para Kuif, decidimos retirar o último bebê, chamada Roosje (ou Rosinha) logo após o nascimento e dá-la para Kuif adotar. Cuidamos do bebê enquanto treinávamos Kuif a manusear a mamadeira. Depois de semanas de treinamento, colocamos o filhote na palha da jaula de Kuif.
Em vez de pegar o bebê, Kuif se aproximou das grades onde o cuidador e eu estávamos esperando. Ela nos beijou, alternando o olhar entre Roosje e nós, como se pedisse permissão. O ato de pegar o bebê de outra sem ser convidada não é bem visto entre os chimpanzés. Nós a encorajamos, acenando com os braços em direção à criança e dizendo: “Vá, pegue-a!”. Ela acabou por fazer isso, e daquele momento em diante Kuif foi a mãe mais cuidadosa e protetora que se poderia imaginar, e criou Roosje como esperávamos. Ela se tornou bastante talentosa na alimentação e chegava mesmo a afastar brevemente a mamadeira se Roosje precisava arrotar, algo que nunca lhe ensinamos.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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