segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Poluição geral

Aristeia, dá um banho rápido nesse menino, que ele está muito poluído.
A mãe disse para a babá, e a palavra “sujo” foi proscrita do vocabulário doméstico. Hora de banho é hora de combater a poluição. Para gente miúda e gente grande. Mas a poluição volta a galope, e há indivíduos que se queixam até do próprio banho:
Esta água está superpoluída, pô!
Na poluição universal, que vai da lagoa Rodrigo de Freitas ao pote de água filtrada (que gosto, hem? poluição palatal), o jeito é ir repetindo o verbo, o substantivo, o adjetivo, o leque de vozes que definem a mácula do ambiente pelos seres, dos seres pelo ambiente, que se alastra como infinita gota de óleo pelo mundo e chega ao interior dos corpos e não para aí, pois invade sub-repticiamente as almas…
O Mourinha? Aquilo é a poluição em calça e paletó, só de vê-lo do outro lado da rua me sinto imundo!
Este aqui:
Não vou mais a cinema. Esses Pasolinis, esses Antonionis não fazem outra coisa senão poluir a arte de Murnau.
Um sujeito pergunta a outro:
Como vai você?
Poluidamente.
Meu amigo queixa-se das livrarias, antros de poluição visual, com suas brochuras de capas berrantes, de desenhos mórbidos, tétricos ou escalafobéticos. Nem se diz mais de alguém que está muito abatido ou cansado. A pauta é dizer:
O Caldas? Achei o Caldas meio poluído, coitado!
Pois a fadiga, a depressão constituem agentes poluidores. O Pão de Açúcar, esta manhã, está poluído de nuvens. A chuva poluiu as vidraças, e o faxineiro, que veio despoluí-las, por sua vez poluiu os tapetes com seus sapatos poluidérrimos. Bom despoluicionador será quem despoluir os panejamentos das figuras do monumento a Floriano, poluídas pelos poluidorizíssimos pombos da Cinelândia.
Na secretaria do grupo de trabalho incumbido de estudar as causas e os efeitos da poluição no ano 2000, e as normas a serem estabelecidas no Plano Nacional de Despoluição Gradualista, o chefe da seção de Minipolutos advertiu a datilógrafa, sem consideração por suas pernas triunfais:
D. Mafalda, o índice de poluição dos ofícios batidos pela senhora aumentou 5,2% esta semana!
Mas, doutor…
Até manchas de batom, até margarina cremosa apareceu no papel!
Dona Mafalda desabafa com uma colega:
Com aquele hálito polipoluído, ele ainda tem cara e coragem de reclamar da gente!
Você quer negócio mais polu (já se usa a fórmula breve, em harmonia com a rapidez de impregnação do meio pelos poluintes) do que essa música de festival, bicho?
Polu, mas polu paca é aquele careta do… (e disse um nome que não vou repetir, para evitar a polluta pax, de que fala Virgílio, isto é, falava, pois o latim nem sequer poluído está mais, o latim está morto nas escolas).
E o português, será que o português está menos poluído? Quem estiver lendo esta crônica já encontrou a resposta, antes de formular a pergunta. Declaro, em autodefesa, que nem sou dos que mais o poluem. Colegas fazem muita força nesse sentido, e cogita-se mesmo de um campeonato ou gincana brasileira de poluição da língua, onde só espero um (poluído) quinto lugar.
Em suma: a poluição é geral, como diria Machado de Assis. E diria mesmo, pois não foi ele o autor daquele verso, referente à vida: “Ama de igual amor o poluto e o impoluto”?

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

Nenhum comentário:

Postar um comentário