quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Inverno em Abruzzo
Deus nobis haec otia fecit.*
Em Abruzzo só há duas estações: o verão e o inverno. A primavera é coberta de neve e cheia de ventos como o inverno, e o outono é quente e límpido como o verão. O verão começa em junho e termina em novembro. Os longos dias ensolarados sobre as colinas baixas e queimadas, a poeira amarela da estrada e a disenteria das crianças terminam, e o inverno começa. Então as pessoas deixam as ruas: os meninos descalços somem das escadarias da igreja. Na cidade de que estou falando, quase todos os homens desapareciam depois das últimas colheitas: iam trabalhar em Terni, em Sulmona, em Roma. A cidade era um vilarejo de pedreiros: e algumas casas eram construídas com graça, tinham terraços e coluninhas como pequenas mansões, e causava espanto encontrar, na entrada, grandes cozinhas escuras com presuntos pendurados e amplos cômodos esquálidos e vazios. Nas cozinhas, o fogareiro ficava aceso e havia vários tipos de fogo, havia grandes fogos feitos com toras de carvalho, fogos de galhos e folhas, fogos de gravetos recolhidos um a um pelas ruas. Era mais fácil identificar os pobres e os ricos olhando o fogareiro aceso do que observando as casas e as pessoas, as roupas e os sapatos, que eram mais ou menos iguais para todos.
Quando cheguei a essa cidade, nos primeiros tempos, todos os rostos me pareciam iguais, todas as mulheres se assemelhavam, ricas e pobres, jovens e velhas. Quase todas tinham a boca desdentada: ali as mulheres perdem os dentes aos trinta anos, por cansaço ou má alimentação, pelos maus-tratos dos parceiros e dos aleitamentos que se sucedem sem trégua. Mas depois, pouco a pouco, comecei a distinguir Vincenzina de Secondina, Annunziata de Addolorata, e comecei a entrar em cada casa e a me esquentar naqueles diversos fogareiros.
Quando a primeira neve começava a cair, uma lenta tristeza se apossava de nós. Aquilo era um exílio: nossa cidade estava longe, e longe estavam nossos livros, os amigos, as várias e cambiantes vicissitudes de uma verdadeira existência. Acendíamos nossa estufa verde, com o longo tubo que atravessava o teto: nos reuníamos todos na sala onde ficava a estufa, e ali se cozinhava e comia, meu marido escrevia na grande mesa oval, os meninos espalhavam os brinquedos no pavimento. No teto da sala havia uma águia pintada: e eu olhava a águia e pensava que aquilo era o exílio. O exílio era a águia, era a estufa verde que chiava, era o vasto e silencioso campo e a neve imóvel. Às cinco os sinos da igreja de Santa Maria tocavam, e as mulheres iam receber a bênção com seus xales pretos e os rostos vermelhos. Todas as tardes meu marido e eu dávamos um passeio: todas as tardes caminhávamos de braços dados, afundando os pés na neve. As casas que margeavam a rua eram habitadas por gente conhecida e amiga, e todos vinham à porta e nos diziam: “Muita saúde e paz”. Alguém às vezes perguntava: “Mas quando vão voltar para casa?”. E meu marido dizia: “Quando terminar a guerra”. “E quando essa guerra acaba? Você, que sabe tudo e é um professor, quando vai acabar?” Chamavam meu marido de “o professor”, já que não sabiam pronunciar seu nome, e vinham de longe para consultá-lo sobre as coisas mais variadas, sobre a melhor estação do ano para arrancar os dentes, sobre os subsídios que a prefeitura dava e sobre as taxas e os impostos.
No inverno alguns velhos partiam por causa de uma pneumonia, os sinos de Santa Maria dobravam, e Domenico Orecchia, o marceneiro, fabricava o caixão. Uma mulher enlouqueceu, a levaram ao manicômio de Collemaggio e a cidade falou disso por um bocado de tempo. Era uma mulher jovem e asseada, a mais asseada de toda a cidade: disseram que tinha ficado assim por excesso de asseio. Gigetto di Calcedonio teve duas gêmeas, além dos dois gêmeos que já tinha em casa, e fez um escarcéu na prefeitura porque lhe negavam o subsídio, visto que possuía muitos lotes de terra e uma horta maior que a cidade. Quanto a Rosa, a bedel da escola, uma vizinha lhe cuspiu no olho e ela circulava com esse olho enfaixado, para que lhe pagassem uma indenização. “O olho é delicado, o cuspe é salgado”, explicava. E sobre isso também se falou um bocado, até que não houve mais nada a dizer.
A saudade aumentava dia a dia em nós. Certas vezes era até prazerosa, como uma companhia terna e levemente inebriante. Chegavam cartas da nossa cidade com notícias de casamentos e de mortes dos quais éramos excluídos. Às vezes a saudade era aguda e amarga, e se tornava ódio: então odiávamos Domenico Orecchia, Gigetto di Calcedonio, Annunziatina, os sinos de Santa Maria. Mas era um ódio que mantínhamos oculto, reconhecendo que era injusto: e nossa casa estava sempre cheia de gente, que vinha tanto para pedir favores quanto para oferecê-los. Às vezes a costureirinha vinha preparar sagnoccole. Metia um pano na cintura, batia os ovos e mandava Crocetta circular pela cidade em busca de um caldeirão emprestado, mas daqueles bem grandes. Seu rosto vermelho ficava absorto e os olhos resplandeciam numa vontade imperiosa. Teria incendiado a casa para que suas sagnoccole ficassem boas. O vestido e os cabelos se cobriam de farinha branca, e sobre a mesa oval onde meu marido escrevia eram colocadas as sagnoccole.
Crocetta era nossa empregada. Ainda nem era uma mulher, porque tinha apenas catorze anos. Foi a costureira que a encontrou para nós. A costureira dividia o mundo em dois times: os que se penteiam e os que não se penteiam. Dos que não se penteiam era preciso manter distância, porque naturalmente tinham piolhos. Crocetta se penteava: por isso veio trabalhar para nós, e contava aos meninos longas histórias de mortos e cemitérios. Era uma vez um menino que perdeu a mãe. Seu pai arranjou outra mulher, e a madrasta não gostava do menino. Por isso o matou enquanto o pai estava no campo e com ele fez um ensopado. O pai volta para casa e come, mas, depois de comer, os ossos que ficaram no prato se puseram a cantar:
E la mia trista matrea
Mi ci ha cotto in caldarea
E mio padre ghiottò
Mi ci ha fatto ’nu bravo boccò. **
Aí o pai mata a mulher com uma foice e a pendura num prego diante da porta. Às vezes me pego murmurando as palavras dessa canção, e então toda a cidade ressurge diante de mim, e com ela o sabor específico daquelas estações, com o sopro gelado do vento e o repicar dos sinos.
Toda manhã eu saía com meus meninos, e o pessoal se espantava e desaprovava que eu os expusesse ao frio e à neve. “Que mal fizeram essas criaturas?”, diziam. “Não é tempo de passear, senhora. Volte para casa.” Caminhávamos longamente pelos campos brancos e desertos, e as raras pessoas que eu encontrava olhavam os meninos com piedade. “Mas que pecado eles cometeram?”, me diziam. Lá, quando nasce uma criança no inverno, não a levam para fora do quarto até que chegue o próximo verão. Ao meio-dia meu marido vinha me encontrar com a correspondência, e voltávamos todos juntos para casa.
Eu falava aos meninos da nossa cidade. Eram muito pequenos quando a deixamos, não tinham nenhuma lembrança dela. Eu lhes dizia que lá as casas tinham muitos andares, havia muitas casas e muitas ruas e uma porção de lojas lindas. “Mas aqui também tem Girò”, diziam os meninos.
A venda de Girò ficava bem em frente à nossa casa. Girò se postava na porta feito uma velha coruja, seus olhos redondos e indiferentes fixos na rua. Vendia um pouco de tudo: gêneros alimentícios e velas, cartões, sapatos e laranjas. Quando a mercadoria chegava e Girò descarregava as caixas, os meninos corriam para comer as laranjas podres que ele jogava fora. No Natal chegavam também os torrones, os licores, as balas. Mas ele não abaixava um centavo do preço. “Como você é mau, Girò”, lhe diziam as mulheres. E ele respondia: “Quem é bom vira comida de cachorro”. No Natal os homens voltavam de Terni, de Sulmona, de Roma, ficavam uns dias e tornavam a partir, depois de terem abatido os porcos. Por alguns dias só se comia torresmo ou linguiça e só se fazia beber: depois os berros dos leitõezinhos novos enchiam as estradas.
Em fevereiro o ar se tornava úmido e macio. Nuvens cinzentas e carregadas vagavam pelo céu. Houve um ano em que, durante o degelo, as calhas se romperam. Então começou a chover dentro de casa, e os quartos eram verdadeiros pântanos. Mas foi assim em todo o vilarejo: nem uma só casa ficou seca. As mulheres esvaziavam os baldes pelas janelas e varriam a água das portas. Teve gente que foi para a cama de guarda-chuva. Domenico Orecchia dizia que era o castigo por algum pecado. Isso durou mais de uma semana; depois, finalmente toda a neve desapareceu dos telhados e Aristide consertou as calhas.
O fim do inverno despertava em nós uma inquietude. Talvez alguém viesse nos visitar: talvez finalmente acontecesse alguma coisa. Nosso exílio afinal devia ter um fim. Os caminhos que nos separavam do mundo pareciam mais curtos: a correspondência chegava com mais frequência. Todas as nossas frieiras melhoravam lentamente.
Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.
Meu marido morreu em Roma, nas prisões de Regina Coeli, poucos meses depois de termos deixado o vilarejo. Diante do horror de sua morte solitária, diante das angustiantes vacilações que a antecederam, eu me pergunto se isso aconteceu a nós, a nós, que comprávamos as laranjas de Girò e íamos passear na neve. Na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz, rico de desejos satisfeitos, de experiências e de conquistas em comum. Mas aquele era o tempo melhor da minha vida, e só agora, que me escapou para sempre, só agora eu sei.
Natalia Ginzburg, in As pequenas virtudes
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* “Deus nos concedeu este descanso”, palavras com que Virgílio agradece a Augusto nas Éclogas, usadas quase sempre de modo satírico.
** Cantiga em dialeto. Tradução livre: “Minha madrasta malvada/ Cozinhou-me num caldeirão/ E meu pai glutão/ Devorou-me numa grande garfada”.
[Todas as notas são do tradutor.]
Insônia infeliz e feliz
De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. Quem? Quem sofre de insônia? E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe se são cinco horas. Nem quatro chegaram. Quem estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo e não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o telefone à mão.
Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
ESTAÉAFAMÍLIAAMÃEOPAIDICKEJANEMORAMNACASABRANCAEVERDEELESSÃOMUITOF
Os Breedlove não moravam na parte da frente de uma loja por estarem passando por dificuldades temporárias, adaptando-se aos cortes na fábrica. Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva. Mas sua feiura era exclusiva. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável e agressivamente feios. Com exceção do pai, Cholly, cuja feiura (resultado de desespero, dissipação e violência dirigida a ninharias e a pessoas fracas) era o comportamento, o resto da família — a sra. Breedlove, Sammy Breedlove e Pecola Breedlove — usava a feiura, vestia-a, por assim dizer, embora ela não lhe pertencesse. Os olhos, pequenos e muito juntos, sob uma testa estreita. O contorno do couro cabeludo baixo, irregular, que parecia ainda mais irregular pelo contraste com as sobrancelhas retas e densas que quase se juntavam. Nariz afilado mas arqueado, com narinas insolentes. Tinham maçãs do rosto altas e orelhas de abano. Lábios bem-feitos que chamavam a atenção não para si, mas para o resto do rosto. A gente olhava para eles e ficava se perguntando por que eram tão feios; olhava com atenção e não conseguia encontrar a fonte. Depois percebia que ela vinha da convicção, da convicção deles. Era como se algum misterioso patrão onisciente tivesse dado a cada um deles uma capa de feiura para usar e eles a tivessem aceitado sem fazer perguntas. O patrão dissera: “Vocês são feios”. Eles tinham olhado ao redor e não viram nada para contradizer a afirmação; na verdade, viram sua confirmação em cada cartaz de rua, cada filme, cada olhar. “Sim”, disseram. “O senhor tem razão.” E tomaram a feiura nas mãos, cobriram-se com ela como se fosse um manto e saíram pelo mundo. Cada um lidando com ela do seu jeito. A sra. Breedlove lidava com a sua da maneira como um ator lida com um recurso cênico: para a composição da personagem, para dar apoio ao papel que ela frequentemente imaginava fosse o seu — o de mártir. Sammy usava a dele como uma arma para causar dor aos outros. Adaptou seu comportamento a ela, escolhia os companheiros com base nela: pessoas que podiam ficar fascinadas, até intimidadas com ela. E Pecola. Pecola escondia-se por trás da sua. Oculta, velada, eclipsada — muito raramente espiando por trás do véu, e mesmo assim só para ansiar pelo retorno da máscara.
Essa família, numa manhã de sábado, em outubro, começou, um a um, a arrancar-se de seus sonhos de afluência e vingança para o sofrimento anônimo de sua habitação.
A sra. Breedlove se levantou sem ruído, vestiu um suéter por cima da camisola (que era um vestido velho) e foi para a cozinha. O seu pé bom emitia sons duros, de osso; o pé torto sussurrava sobre o linóleo. Na cozinha ela fez barulho com portas, torneiras e panelas. Os ruídos eram abafados, mas as ameaças que sugeriam não eram. Pecola abriu os olhos e continuou deitada, fitando o fogareiro apagado. Cholly resmungou, remexeu-se um instante na cama e fez silêncio.
Mesmo de onde estava, Pecola sentia o cheiro do uísque de Cholly. Os ruídos na cozinha ficaram mais altos, menos abafados. Nos movimentos da sra. Breedlove havia uma direção e uma finalidade que não tinham nada a ver com o preparo do café da manhã. A consciência disso, apoiada em muitos exemplos do passado, fez Pecola contrair os músculos do estômago e conter a respiração.
Cholly chegara bêbado em casa. Infelizmente chegara bêbado demais para discutir, portanto a história toda teria que irromper nesta manhã. Como não ocorrera imediatamente, a briga que se aproximava não teria espontaneidade; seria calculada, sem inspiração, e tremenda.
A sra. Breedlove entrou rápido no quarto e parou aos pés da cama onde Cholly estava deitado.
“Preciso de carvão nesta casa.”
Cholly não se mexeu.
“Está me ouvindo?” A sra. Breedlove deu um safanão num pé de Cholly.
Cholly abriu os olhos lentamente. Estavam vermelhos e ameaçadores. Cholly tinha os olhos mais cruéis da cidade.
“O quêêêê, mulher?”
“Eu disse que preciso de carvão. Está frio como uma teta de bruxa nesta casa. Você, com o rabo cheio de uísque, não sentiria o fogo do inferno, mas eu estou com frio. Tenho muita coisa para fazer, mas não vou congelar.”
“Me deixa em paz.”
“Só depois de você ir buscar carvão. Eu trabalho como uma mula e não tenho nem o direito de me aquecer? Então para que trabalhar? Você não traz nada para casa. Se ficasse por sua conta, estaríamos todos mortos...” A voz dela era como uma dor de ouvido no cérebro. “... Se está pensando que eu vou sair no frio para buscar carvão, trate de pensar de novo.”
“Estou cagando para a maneira como você vai arrumar carvão!” Uma bolha de violência explodiu na garganta dele.
“Você vai ou não vai sair dessa cama e buscar o carvão, seu bêbado?”
Silêncio.
“Cholly!”
“Não me provoque, cara! Se você disser mais uma palavra, eu te arrebento!” Silêncio.
“Tudo bem. Tudo bem. Mas, se eu der um espirro, só um, Deus que tenha piedade desse seu rabo!”
Sammy também tinha acordado agora, mas fingia dormir. Pecola continuava com os músculos do estômago contraídos e prendendo a respiração. Todos eles sabiam que a sra. Breedlove poderia ter ido buscar carvão no barracão, e que já tinha ido muitas vezes, ou que poderia ter mandado Sammy ou Pecola. Mas a briga que não ocorrera à noite pairava como a primeira nota de um lamento fúnebre no ar soturnamente expectante. Uma bebedeira, por mais rotineira que fosse, tinha seu cerimonial de encerramento. Os dias diminutos e idênticos que a sra. Breedlove vivia eram identificados, agrupados e classificados por essas brigas. Davam substância aos minutos e horas que sem elas seriam indistintos e esquecidos. Aliviavam o enfado da pobreza, conferiam dignidade aos cômodos mortos. Nessas rupturas violentas da rotina, que também eram rotina, ela podia exibir o estilo e a imaginação do que acreditava ser o seu verdadeiro eu. Privá-la dessas brigas era privá-la de todo o entusiasmo e razoabilidade da vida. Cholly, com sua embriaguez e vileza habituais, fornecia a ambos o material de que necessitavam para tornar a vida tolerável. A sra. Breedlove se considerava uma mulher íntegra e cristã, cujo fardo era um homem inútil a quem Deus queria que ela punisse. (Cholly estava fora do alcance da salvação, claro, e salvação não era a questão — a sra. Breedlove não estava interessada no Cristo redentor, mas, sim, no Cristo juiz.) Frequentemente a ouviam conversando com Jesus sobre Cholly, implorando a Ele que a ajudasse a “derrubar o filho da puta do ‘penácolo’ do orgulho dele”. E uma vez, quando um gesto de bêbado atirou Cholly contra o fogareiro em brasa, ela gritou: “Pega ele, Jesus! Pega ele!”. Se Cholly tivesse parado de beber, ela jamais teria perdoado Jesus. Precisava desesperadamente dos pecados de Cholly. Quanto mais ele afundasse, quanto mais selvagem e irresponsável se tornasse, mais esplêndidas se tornavam ela e sua tarefa. Em nome de Jesus.
Não era menor a necessidade que Cholly tinha da mulher. Ela era uma das poucas coisas que lhe repugnavam que ele podia tocar e, portanto, machucar. Despejava sobre ela a soma de toda a sua fúria inarticulada e desejos frustrados. Odiando-a, podia deixar-se intacto. Quando ainda era bem jovem, fora surpreendido no meio de umas moitas por dois homens brancos, enquanto se empenhava, com inexperiência mas diligência, em obter prazer sexual de uma garotinha do interior. Os homens iluminaram o traseiro dele com uma lanterna. Ele parou, aterrorizado. Eles riram por entre os dentes. O facho de luz não se moveu. “Vamos”, disseram. “Vai, acaba. E vê se faz direito, crioulo.” A lanterna não se moveu. Por algum motivo, Cholly não sentiu ódio dos brancos; sentiu ódio, desprezo, pela garota. A recordação ainda que parcial desse episódio, junto com uma infinidade de outras humilhações, derrotas e emasculações, podia movê-lo a ímpetos de depravação que o surpreendiam — mas só a ele. Por algum motivo ele não conseguia causar pasmo; somente ficar pasmado. Então desistiu disso também.
Cholly e a sra. Breedlove brigavam com um formalismo brutal e sombrio que só encontrava paralelo na maneira como faziam amor. Tinham concordado tacitamente que um não mataria o outro. Ele lutava com ela da maneira como um covarde luta com um homem — com pés, palmas das mãos, dentes. Ela, por sua vez, revidava de um modo puramente feminino — com frigideiras, atiçadores de fogo e, ocasionalmente, um ferro de passar que voava na direção da cabeça dele. Não falavam, gemiam nem xingavam durante essas pancadarias. Havia apenas o som abafado de coisas caindo e de carne contra carne que não era pega de surpresa.
Na reação dos filhos a essas batalhas havia uma diferença. Sammy dizia uns palavrões, ou saía de casa, ou se atirava na briga. Aos catorze anos, diziam, já tinha fugido de casa nada menos do que 27 vezes. Uma vez chegou até Buffalo e lá ficou durante três meses. Seus retornos, fossem à força ou devidos às circunstâncias, eram taciturnos. Pecola, por outro lado, restrita pela pouca idade e pelo sexo, fazia experiências com métodos de resistência. Embora eles variassem, o sofrimento era tão sistemático quanto profundo. Ela se debatia entre um desejo esmagador de que um matasse o outro e uma vontade imensa de morrer. Agora sussurrava: “Não, senhora Breedlove. Não faça isso”. Pecola, assim como Sammy e Cholly, sempre chamava a mãe de sra. Breedlove.
“Não, senhora Breedlove. Não faça isso.”
Mas a sra. Breedlove fez.
Pela graça, sem dúvida, de Deus, a sra. Breedlove espirrou. Só uma vez.
Correu para o quarto com uma panela cheia de água fria e atirou no rosto de Cholly. Ele sentou na cama, engasgado e cuspindo. Nu e cinzento, deu um pulo da cama, agarrou a mulher pela cintura e os dois caíram no chão. Cholly ergueu-a e tornou a derrubá-la, com as costas da mão. Ela caiu sentada, as costas apoiadas na cama de Sammy. Não tinha largado a panela e começou a bater com ela nas coxas e na virilha de Cholly. Ele pôs o pé no peito dela e ela soltou a panela. Caindo de joelhos, ele bateu várias vezes no rosto dela, que talvez tivesse sucumbido logo, caso ele não tivesse dado com a mão contra a estrutura de metal da cama quando a mulher se agachou. A sra. Breedlove aproveitou essa suspensão momentânea dos golpes e se esgueirou para longe do alcance dele. Sammy, que tinha acompanhado em silêncio a briga ao lado de sua cama, de repente começou a bater na cabeça do pai com os dois punhos, berrando sem parar “Seu merda sem roupa!”. A sra. Breedlove, que tinha agarrado a tampa redonda e chata do fogareiro, avançou de fininho para Cholly, que se levantava, e lhe deu duas pancadas, devolvendo-o à inconsciência da qual ela o arrancara com a sua provocação. Ofegante, ela jogou uma colcha por cima dele e o deixou no chão.
Sammy berrava: “Mata ele! Mata ele!”.
A sra. Breedlove olhou para Sammy, surpresa. “Para com esse barulho, menino.” Pôs a tampa do fogareiro de volta no lugar e tomou o rumo da cozinha. Na porta, fez uma pausa longa o suficiente para dizer ao filho: “Levanta daí. Eu preciso de carvão”.
Toni Morrison, in O olho mais azul
Italo Svevo
Um homem — um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito pequeno — decide convidá-lo para conhecer suas filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-las em casa e tenta travar uma conversa civilizada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são recebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura palavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpretá-los, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance de Italo Svevo (1861-1928). Se Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na medida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é repleta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usando como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas descritas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charutos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significados secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas um cachimbo?
J. M. Coetzee, in Mecanismos internos
terça-feira, 29 de setembro de 2020
Pintura de forro
Amarelo dragão envolto em chamas.
Não perturba os ofícios.
Deixa-se queimar, maçã na boca,
olhos no alto:
olha a Virgem
entregando o rosário ao frade negro
na igreja dos negros.
Dragão dividido
entre a sensualidade da maçã
e a honra inefável concedida
ao negro que ele não pôde devorar.
Carlos Drummond de Andrade
Doce sono!
Que a noite caia diariamente; que a bênção do repouso, bálsamo benfazejo, derrame-se todo entardecer sobre o sofrimento e o tormento, a dor e a preocupação; que essa poção do Lete esteja sempre pronta para nossos lábios ressecados; que, depois da luta, esse suave banho acolha nosso corpo agitado a fim de que ele ressurja, purificado de suor, poeira e sangue, fortalecido, renovado, rejuvenescido, quase sem saber, com a mesma coragem e o mesmo prazer originários – amigo! Sempre percebi e reconheci isso como a mais gentil e comovente entre as grandes coisas. Criaturas de ânsia obscura, emergimos da noite calma para o dia e caminhamos. O sol arde, andamos sobre espinhos e pedregulhos pontiagudos, nossos pés sangram, nosso peito arqueja. Como seria desesperador se a estrada ardente do esforço se abrisse à nossa frente indivisível, sem meta provisória, em ofuscante imprevisibilidade! Quem teria forças de percorrê-la até o final? Quem não sucumbiria, desencorajado, arrependido? Mas a noite acolhedora entrecorta muitas, muitas vezes a via-crúcis da vida; cada dia tem o seu ponto de chegada: um bosque, santo bosque, espera-nos com o murmurar das fontes e um crepúsculo verde, com o musgo macio a consolar nossos pés, um frescor suave envolvendo nossa fronte com a paz da pátria; e com os abraços abertos, a cabeça inclinada para trás, os lábios entreabertos e o olhar que se quebra feliz, adentramos sua deliciosa sombra…
Dizem que fui uma criança calma, que não gritava, não esperneava, mas era afeito ao sono e ao cochilo em um grau confortável para as amas. Acredito, pois lembro que amava o sono e o esquecimento em um tempo em que eu mal tinha o que esquecer, e lembro muito bem da primeira impressão que instigou o calmo afeto até ele se tornar um carinho consciente. Foi quando escutei a lenda do homem sem sono – a história do homem que se doava com tanta e tão insensata sofreguidão ao tempo e seus afazeres que maldizia o sono. Então, um anjo o fez merecedor da terrível bênção: privou-o da necessidade física do sono, soprou em seus olhos até que se transformassem em pedras cinzentas em suas cavidades e nunca mais se fechassem. Nem saberia contar em detalhes como esse homem se arrependeu de seu desejo, a que tormentos foi submetido, único homem sem sono entre todos os outros, e como ele, triste condenado, arrastou-se vida afora até finalmente ser libertado pela morte, até finalmente a noite, antes inacessível para seus olhos pétreos, tomá-lo para si e em si – só sei que, na noite daquele dia, mal pude esperar ficar sozinho em minha pequena cama para me atirar no colo do sono, e que nunca dormi mais intensamente do que na noite em que escutei aquela história.
Desde então, sempre observei com satisfação o que os livros diziam para elogiar o sono. Assim, foi em consonância com o meu coração que Mesmer enfatizou a possibilidade de que o sono, no qual consiste a vida das plantas, e do qual a criança durante as primeiras semanas de sua vida só desperta para receber o alimento, talvez fosse a condição natural e original do homem, correspondendo da maneira mais direta à função de vegetar. “Não poderíamos afirmar que nossa vigília apenas existe para dormirmos?”, disse o genial charlatão. Isso foi magnificamente bem pensado, e o estado de vigília certamente é apenas um estado de luta em defesa do sono. Afinal, Darwin não defendeu também que o espírito apenas se desenvolveu como arma na luta pela existência? E que arma perigosa! Uma arma que, quando nenhuma necessidade externa ameaça nossa segurança, frequentemente se volta contra nós. Ditosos somos nós quando ela descansa, quando a chama ofuscante e ardente da consciência já iluminou exaustivamente o mundo que nos preenche e circunda e podemos voltar a nos abandonar ao nosso verdadeiro e feliz estado!
Mas se é a necessidade que nos desperta, não é ela, na verdade, que nos torna estranhos ao sono. Acreditas que desconheço a insônia por tristeza e preocupação? A verdadeira devoção só veio ao meu sono depois que passou a primeira época de vida da liberdade e da intocabilidade, quando as contrariedades, em forma de escola, começaram a desvirtuar os meus dias. Nunca dormi de maneira mais deliciosa do que em certas noites entre domingo e segunda-feira, quando, depois de um dia protegido, durante o qual eu pertencia apenas a mim e aos meus, o próximo já ameaçava com adversidade rígida e alheia. E assim continua sendo. Nunca durmo mais profundamente, nunca regresso com mais doçura ao colo da noite do que quando me sinto infeliz, quando meu trabalho fracassa, quando o desespero me oprime, quando o asco à humanidade me obriga a refugiar-me na escuridão… e como, pergunto, poderia ser diferente, uma vez que a tristeza e a dor jamais seriam capazes de fortalecer nosso apego ao dia e ao tempo?
Sorrirás se eu te contar que conservo uma lembrança precisa e agradecida de cada cama na qual dormi por um período de tempo mais longo – cada uma delas, desde o meu primeiro berço com grades e uma cortininha verde até o imponente leito de mogno no qual nasci e que durante muitos anos ocupou meus quartos de solteiro. Agora tenho uma cama mais leve, uma cama inglesa, laqueada de branco, as partes da cabeceira e dos pés graciosamente decoradas. Acima dela, numa moldura branca, está aquele quadro francês chamado Marcha à estrela, que, com sua atmosfera azul esmaecida, flutuantemente musical, é a mais bela decoração de alcova que eu poderia imaginar… Sorrirás, digo eu – mas, ainda assim, que lugar extraordinário tem a cama entre a mobília doméstica, esse móvel metafísico em que se cumprem os mistérios do nascimento e da morte, esse perfumado casulo de linho em que nós, quentinhos, inconscientes e de joelhos dobrados, como outrora na escuridão do ventre materno, como que religados ao cordão umbilical da natureza, absorvemos alimento e renovação por misteriosas vias… Não é como um barco mágico que, encoberto e insignificante, ocupa o seu canto durante o dia, e nos leva flutuando toda noite para o mar do inconsciente e do infinito?
O mar! O infinito! Meu amor pelo mar, cuja gigantesca simplicidade sempre preferi à sofisticada pluralidade das montanhas, é tão antigo quanto o meu amor ao sono, e sei muito bem qual a raiz que essas duas simpatias têm em comum. Trago dentro de mim muito da sabedoria dos hindus, um desejo pesado e indolente por aquela forma ou não forma da perfeição chamada “nirvana” ou o “nada”, e, embora seja artista, cultivo uma inclinação muito pouco artística à eternidade, que se exterioriza em uma repulsa contra a estrutura e a medida. O argumento contrário, acredita-me, é a correção e a decência, e, para utilizar a palavra mais séria, a moral… O que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral tem dupla face, significa tanto concentração quanto devoção, e uma coisa sem a outra nunca é ética. “Concentração”, o oposto criativo da distração sobre o qual Grillparzer faz seu sacerdote proferir palavras tão maravilhosas, é algo que precisa ser sentido; e não é estranho que uma determinada fantasia sempre me transmita a sensação mais profunda da palavra – a fantasia do feto se criando no ventre da mãe? Nossa cabeça, imagina, não é redonda e não está formada desde o princípio, precisando apenas crescer; inicialmente, o rosto ainda está aberto, cresce aos poucos dos dois lados em direção ao centro, fechando-se devagar e sempre até se tornar esse nosso rosto simétrico, com olhar, com vontade, individualmente concentrado… e esse fechar-se, cerrar-se, criando uma forma decidida a partir do universo de possibilidades, vê, é essa fantasia que às vezes me faz compreender intuitivamente o que na verdade ocorre aqui por trás do fenômeno. Parece-me então que toda existência individual pode ser compreendida como consequência de um ato de vontade e de uma determinação sobrenaturais à concentração, à delimitação e conformação, à concentração a partir do nada, à renúncia à liberdade, ao infinito, ao dormitar e tecer em uma noite sem espaço nem tempo – uma decisão ética de ser e sofrer. Sim, o devir já é moral, pois o que mais significaria aquele aforismo cristão de que “o maior pecado do homem é ter nascido”? Só o puritano acredita que pecado e moralidade são conceitos antagônicos. Na verdade, são a mesma coisa; sem o conhecimento do pecado, sem a doação ao que é pernicioso e devorador, toda moralidade não passa de virtude pueril. O estado desejável no sentido ético não é a pureza, a ignorância, não é o cuidado egoísta e a arte desprezível da boa consciência, e sim a luta e a necessidade, a paixão e a dor. Heinrich von Kleist diz em determinado trecho: “Quem ama sua vida com cuidado já morreu em termos morais, pois a sua maior energia vital de poder sacrificá-la já apodrece quando ele a trata bem.” E as palavras mais éticas dos evangelhos são: “Não resistais ao mal.”
A moral do artista é a força da concentração egoísta, a determinação rumo à forma, à configuração, à delimitação, à corporalidade, rumo à renuncia à liberdade, ao infinito, ao dormitar e tecer no espaço ilimitado da percepção – resumindo em uma palavra, é a vontade para a obra. Mas quão pouco nobre e ética, exangue e asquerosa é a obra nascida da uniformidade fria, sábia e virtuosa de um artista! A moral do artista é devoção, engano e autorrenúncia, é luta e necessidade, vivência, conhecimento e paixão.
Sem dúvida, a moral é a questão suprema da vida, talvez seja a própria vontade de viver. Mas se queremos que seja mais do que uma declaração teatral de que a vida não é o maior dos bens, então deve existir algo mais elevado, mais definitivo do que essa vontade, e assim como a moral significa corrigir e disciplinar tudo o que é livre e possível para algo limitado e real, ela também necessita de um corretivo, uma justificativa, uma advertência incessante à introspecção e à renúncia. Chamemo-lo de sabedoria, esse corretivo – e seu oposto será a insensatez do homem que, afeito ao tempo e ao dia com um zelo tão cego, maldizia o sono. Chamemo-lo de religiosidade, e seu oposto será aquela animalidade pagã presa com o focinho ao chão, que não enxerga acima de si a grande paz das estrelas. Chamemo-lo de sofisticação – e seu oposto será a banalidade, que se sente totalmente em casa na vida e na realidade, sem nostalgia, sem conhecer uma pátria mais elevada: pois existem pessoas de uma banalidade e eficiência tão infinitas que não imaginamos que algum dia possam morrer, que algum dia possam compartilhar o sacramento e a transfiguração da morte.
Não é a depressão e sim a paixão – aquilo que Gautama Buda chama de “estar conectado” –, o febril engajamento do nosso eu no dia e na ação, que nos rouba o sono, e isso tem mais que uma significação nervosa: significa que nossa alma perdeu a pátria, tendo-se afastado tanto dela no zelo que já não encontra o caminho de volta. E não parece que precisamente os maiores e mais fortes passionais sempre encontram facilmente o “caminho de volta”? Ouvi dizer que Napoleão tinha a capacidade de adormecer quando queria, durante o dia, rodeado de gente, no barulho de uma batalha… e quando me lembro disso, vejo aquele quadro cujo valor artístico pode não ser alto, mas cuja anedota sempre exerceu sobre mim um fascínio infinito. Chama-se C’est Lui e descreve uma mísera sala de camponeses, cujos moradores, marido, mulher e filhos, espreitam tímidos junto à porta aberta. Pois no meio do cômodo, junto à mesa frágil, dorme o imperador. Esse emblema da paixão egoísta e expansiva está sentado, desembainhou a espada, o punho frouxo apoiado na mesa, o queixo no peito, e dorme. Não precisa de silêncio nem de escuridão, não precisa de almofada para esquecer o mundo; sentou-se em qualquer cadeira dura, fechou os olhos, deixou tudo para trás – e dorme.
Seguramente o maior homem de todos é o que preserva a lealdade e a nostalgia da noite, mas durante o dia realiza as maiores façanhas. Por isso, amo acima de tudo a obra que nasceu da “nostalgia da noite sagrada” e que, por assim dizer apesar de si mesma, persiste em seu esplendor de vontade e sonolência: o Tristão de Richard Wagner.
Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas
Relembrando Fup e Cerra-Dente
E após esse único gole, vovô, como que saboreando, não tomou outra gota sequer por uma semana. Miúdo não trabalhou nas cercas. Tinham ido enterrar os restos de Cerra-Dente antes que os pássaros atacassem e, apesar de ambos acharem que devia ter desaparecido, o corpo ainda estava onde o deixaram, agora completamente rígido, as tripas infestadas de moscas. Enterraram os restos na orla de um velho carvalho branco. Até vovô teve vez com a pá; violava sua regra fundamental de nunca suar antes do meio-dia.
A maior parte daquela semana, passaram sentados na varanda da frente, observando a primavera desabrochar e conversando sobre o que tinha acontecido. Miúdo contou diversas vezes a vovô que tinha matado Fup acidentalmente, como esta fora despedaçada, aparentemente tentando proteger um porco que, ao que supunha, devia odiar, e como depois, conforme vovô testemunhara, tinha se desenrolado, totalmente crescida e empenada, de dentro do corpo do Cerra-Dente, voando para longe. Ele queria saber como isso podia ter acontecido.
E a cada vez vovô Jake lhe respondia essencialmente a mesma coisa:
– Não tenho a menor ideia. Mas posso pensar nas razões: ela viu que ele estava morrendo e queria que você respeitasse sua morte, o deixando morrer sozinho; ou não o queria ver levar um tiro estando preso na cerca; talvez achasse isso desonroso; ou talvez tenhamos suposto tudo ao inverso, que o Cerra-Dente estivesse tentando tirá-la daquele buraco para fazer sua merenda da meia-noite, quando na verdade podia estar tentando salvá-la, ou, pelo menos, ela achasse isso. Pode ser tudo isso e mais ainda, ou nada disso. E de que jeito foi parar daquele porco, e fora, eu não sei direito. Algumas coisas não é possível explicar, talvez até a maioria das coisas. É interessante pensar nelas e fazer alguma especulação, mas o principal é que se tem que aceitar as coisas tal como são, e seguir em frente com aquilo que se entende.
Quando Miúdo voltou ao trabalho, no fim daquela semana, começou a cortar largas passagens em todas as linhas das cercas, e depois disso começou a partir sequoias para fazer postes de porteiras. No final da semana, os postes se encontravam nos lugares, e ele estava para colocar a primeira porteira quando decidiu que, para fazer um trabalho realmente bom, os postes precisavam ser entalhados. Consultou vovô, que manifestou total acordo quanto a um dos postes ter a figura de uma cabeça de porco entalhada na parte de cima, e talvez um outro ter uma truta-arco-íris saltando, e outro – isso era fundamental – ter um pato, um pato voador, em memória de Fup, e na entrada principal, que levava à casa, ficariam muito bem uns ursos gêmeos, e no lado norte, que dava naquela linda campina, um veado com chifres de três pontas, como o que ele matara ali em 1964. seria perfeito… e sim, sim, pensou, achava ser uma boa ideia, pois afinal as cercas eram tão boas quanto seus portões. Naquela tarde, quando Miúdo deu o primeiro golpe com o martelo e o cinzel, sentiu a vida se transformando em suas mãos. Observou enquanto a imagem surgiu na madeira.
E no final da semana de abstinência, quando vovô Jake começou a beber, ele o fez lentamente, de modo apenas gradual, acumulando energias para a festa de seu 100º aniversário, três dias depois, na qual ele, Miúdo, e um terço do pessoal das redondezas ficaram tão bêbados que mal podiam grunhir ou apontar, muito menos parar de rir.
Jim Dodge, in Fup
Um fim comum
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum, uns conscientes e deliberadamente, outros sem o saber, como Heráclito (penso eu) diz daqueles que dormem, que são obreiros e colaboradores das coisas que se fazem no mundo. Mas os homens cooperam de diferentes maneiras; mesmo aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir, pois o universo necessita até desses homens. Resta-te perceber entre que espécie de obreiros estás; aquele que governa o universo fará certamente uso adequado de ti e te receberá entre os que já colaboram e os que se dispõem a colaborar. Mas não ocupes um lugar como o verso medíocre e ridículo na tragédia, de que fala Crísipo.
Marco Aurélio, in Meditações
segunda-feira, 28 de setembro de 2020
Um dia na vida de um vagabundo / Le Progrès Civique, 5 de janeiro de 1929
Mendigo com um bastão na mão direita, de Francisco de Goya |
O vagabundo é uma espécie nativa inglesa. Estas são as características que o distinguem: ele não tem dinheiro, veste-se com andrajos, caminha cerca de vinte quilômetros por dia e nunca dorme duas noites seguidas no mesmo lugar.
Em suma, ele é um andarilho que vive de caridade, perambula dia após dia durante anos e atravessa a Inglaterra de ponta a ponta muitas vezes em suas andanças.
Ele não tem emprego, lar ou família, nada de seu no mundo, exceto os farrapos que cobrem seu pobre corpo; vive às custas da comunidade.
Ninguém sabe de quantos indivíduos é composta a população de vagabundos. Trinta mil? Cinquenta mil? Talvez cem mil na Inglaterra e no País de Gales, quando o desemprego é particularmente alto.
O vagabundo não perambula para se divertir, ou porque herdou os instintos nômades de seus ancestrais; antes de mais nada, ele tenta não morrer de fome.
Não é difícil ver por quê: o vagabundo está desempregado em consequência da situação da economia inglesa. Assim, para existir, ele precisa apelar à caridade pública ou privada. Para ajudá-lo, as autoridades criaram asiles (albergues) onde os destituídos podem encontrar alimento e abrigo.
Esses lugares estão a vinte quilômetros uns dos outros e ninguém pode ficar em um deles mais que uma vez por mês. Daí as peregrinações sem fim dos vagabundos, que, se quiserem comer e dormir embaixo de um teto, precisam buscar um novo lugar de repouso todas as noites.
Essa é a explicação para a existência dos vagabundos. Agora, vejamos que tipo de vida eles levam. Será suficiente examinar um dia apenas, pois os dias são sempre iguais para esses desafortunados habitantes de um dos países mais ricos do mundo.
Tomemos um deles no momento em que sai do albergue, por volta das dez da manhã.
Ele está a cerca de vinte quilômetros do próximo albergue. Levará provavelmente cinco horas para caminhar essa distância e chegará ao seu destino por volta das três da tarde.
Ele não descansará muito no caminho, porque a polícia, que vê com suspeição os vagabundos, tratará de mandá-lo logo embora de qualquer cidadezinha ou aldeia onde possa tentar parar. É por isso que nosso homem não se demorará no caminho.
Como dissemos, são cerca de três horas da tarde quando ele chega ao albergue. Mas o albergue só abre às seis. Três horas desgastantes para esperar em companhia dos outros vagabundos que já estão esperando. O bando de seres humanos, extenuados, barbas por fazer, sujos e maltrapilhos, cresce a cada minuto. Logo há centenas de homens desempregados que representam quase todas as profissões.
Mineiros e fiandeiros de algodão, vítimas do desemprego que grassa no norte da Inglaterra, compõem a maioria, mas todas as profissões estão representadas, especializadas ou não.
A idade deles?
Dos dezesseis aos setenta.
Sexo? Há cerca de duas mulheres para cada cinquenta homens.
Aqui e ali, um imbecil matraqueia palavras sem sentido. Alguns vagabundos estão tão fracos e decrépitos que nos perguntamos como podem caminhar vinte quilômetros.
As roupas impressionam pelo grotesco, esfarrapadas e de imundície repugnante.
Os rostos nos fazem pensar no focinho de um animal selvagem, talvez não perigoso, mas que se tornou ao mesmo tempo selvagem e assustadiço, por falta de descanso e cuidado.
Lá eles esperam, deitados na relva ou agachados na terra. Os mais corajosos rondam o açougue ou a padaria, na esperança de catar algum resto de comida. Mas isso é perigoso, porque mendigar é proibido por lei na Inglaterra; então, na maior parte do tempo eles se contentam em ficar ociosos, trocando palavras vagas numa gíria estranha, a língua especial dos vagabundos, cheia de palavras esquisitas e pitorescas e expressões que não se encontram em nenhum dicionário.
Eles vieram de todos os cantos da Inglaterra e do País de Gales e contam uns aos outros suas aventuras, discutindo sem muita esperança sobre a probabilidade de encontrar trabalho no caminho.
Muitos já se encontraram antes em algum albergue do outro extremo do país, pois seus passos não param de se cruzar nas perambulações sem fim.
Esses albergues são hospedarias deploráveis e sórdidas, onde os peregrinos ingleses miseráveis se reúnem por algumas horas antes de se espalhar novamente em todas as direções.
Todos os vagabundos fumam. Como é proibido fumar dentro do albergue, eles aproveitam ao máximo as horas de espera. Seu tabaco consiste principalmente em baganas de cigarro que catam nas ruas. Eles as enrolam em papel ou enfiam em cachimbos velhos.
Quando um vagabundo consegue algum dinheiro, ganho num trabalho ou por esmola, seu primeiro pensamento é comprar fumo, mas na maior parte do tempo ele tem de se satisfazer com baganas apanhadas da calçada ou da rua. O albergue lhe dá apenas comida: para o resto, roupas, tabaco etc., ele tem de se virar.
Mas está quase na hora de o portão do albergue se abrir. Os vagabundos se levantaram e fazem fila junto ao muro do enorme prédio, um desprezível cubo amarelo de tijolos, construído em algum subúrbio distante e que pode ser confundido com uma prisão.
Mais alguns minutos e os pesados portões se abrem e o bando de seres humanos entra.
A semelhança entre um desses albergues e uma prisão é ainda mais notável depois que se passa pelos portões. No meio de um pátio vazio, cercado por muros altos de tijolos, encontra-se o prédio principal que abriga celas de paredes nuas, um banheiro, as dependências administrativas e uma sala minúscula mobiliada com bancos de madeira simples que serve de refeitório. Tudo é tão feio e sinistro quanto se possa imaginar.
A atmosfera de prisão está em todo canto. Funcionários uniformizados intimidam os vagabundos e os empurram, sem esquecer de lembrar-lhes que, ao entrar no albergue, eles abriram mão de todos os seus direitos e de sua liberdade.
O nome e a profissão do vagabundo são escritos num livro de registros. Depois, ele é obrigado a tomar um banho e suas roupas e pertences pessoais são levados embora. Então, dão-lhe um camisão de algodão ordinário para passar a noite.
Se por acaso ele tiver algum dinheiro, será confiscado, mas, se ele admitir que tem mais de dois francos [quatro pence], não será aceito no albergue e terá de encontrar uma cama em outro lugar.
Em consequência, os vagabundos que têm mais de quatro pence — não há muitos deles — se esforçaram para esconder o dinheiro em suas botas sem que fossem vistos, pois essa fraude poderia ser punida com prisão.
Após o banho, o vagabundo, cujas roupas lhe foram tomadas, recebe sua ceia: meia libra de pão com um pouco de margarina e meio litro de chá.
O pão feito especialmente para os vagabundos é terrível. É cinzento, sempre dormido e tem um gosto desagradável que faz a gente pensar que a farinha de que é feito vem de grãos estragados.
O chá não poderia ser pior, mas os vagabundos o tomam de bom grado, pois os aquece e conforta depois da exaustão do dia.
Essa refeição insossa é engolida em cinco minutos. Depois disso, os vagabundos recebem ordens para entrar nas celas onde passarão a noite.
Essas celas, verdadeiras celas de prisão de tijolos ou pedras, têm cerca de três e meio por dois metros. Não há iluminação artificial — a única fonte de luz é uma janela estreita e gradeada no alto da parede e um olho mágico na porta que permite que os guardas fiquem de olho nos internos.
Às vezes, as celas têm uma cama, porém o mais comum é que os vagabundos tenham de dormir no chão, com apenas três mantas para se proteger.
Não costuma haver travesseiros, e por esse motivo os desafortunados têm permissão para ficar com seus casacos, os quais enrolam e põem sob a cabeça.
Em geral, o quarto é terrivelmente frio e as mantas, devido ao tempo de uso, são tão finas que não oferecem nenhuma proteção contra o rigor da temperatura.
Assim que os vagabundos entram nas celas, as portas são firmemente trancadas por fora: só se abrirão às sete horas da manhã seguinte.
Em geral, ficam dois internos em cada cela. Murados em sua pequena prisão por doze horas desgastantes sem nada para se proteger do frio exceto um camisão de algodão e três mantas finas, os pobres miseráveis sofrem cruelmente com o frio e a falta do conforto mais elementar.
Os lugares estão quase sempre infestados de percevejos, e o vagabundo, vítima da praga, com os membros exaustos, passa horas e horas se virando e revirando, numa vã espera pelo sono.
Se consegue adormecer por alguns minutos, o desconforto de dormir sobre o chão duro logo o desperta de novo.
Os vagabundos antigos e espertos, que estão nessa vida há quinze ou vinte anos e, em consequência, ficaram mais filosóficos, passam as noites conversando. No dia seguinte, descansarão por uma ou duas horas num campo, sob alguma cerca viva que julguem mais acolhedora do que o albergue. Mas os mais jovens, ainda não endurecidos pela familiaridade com a rotina, lutam e gemem na escuridão, esperando com impaciência que a manhã lhes traga alívio.
E no entanto, quando o sol afinal brilha dentro de sua prisão, eles consideram com desânimo e desespero a perspectiva de outro dia exatamente igual ao anterior.
Por fim, as celas são destrancadas. Está na hora da visita do médico: com efeito, os vagabundos não serão libertados enquanto essa formalidade não for cumprida.
O médico costuma se atrasar, e os vagabundos têm de esperar por sua inspeção, em fila e seminus num corredor. Nesse momento, é possível ter uma ideia da condição física deles.
Que corpos e que rostos!
Muitos têm malformações congênitas. Vários sofrem de hérnias e usam cintas. Quase todos têm pés deformados e cobertos de feridas em consequência das longas caminhadas com botas inadequadas. Os velhos não passam de pele e ossos. Todos têm músculos caídos e a aparência miserável de homens que não têm uma refeição decente do início ao fim do ano.
Seus traços emaciados, rugas prematuras, barbas por fazer, tudo neles fala de alimentação insuficiente e carência de sono.
Mas eis que chega o médico. Sua inspeção é tão rápida quanto superficial. Afinal, ela se destina apenas a detectar se algum dos vagabundos mostra sintomas de varíola.
O médico olha rapidamente para cada um deles, de cima a baixo, frente e costas.
Ora, a maioria deles sofre de uma ou outra doença. Alguns, imbecis quase completos, mal conseguem cuidar de si mesmos. No entanto, serão soltos desde que estejam livres das temíveis marcas da varíola.
As autoridades não se importam se estão bem ou mal de saúde, desde que não sofram de uma moléstia infecciosa.
Depois da inspeção médica, os vagabundos se vestem de novo. Então, na luz fria do dia, é possível ter realmente uma boa visão das roupas que os pobres-diabos usam para se proteger dos estragos causados pelo clima inglês.
Esses artigos disparatados de vestuário — a maioria esmolada de porta em porta — não servem nem para a lata do lixo. Grotescos, mal-ajambrados, longos demais, curtos demais, grandes demais ou pequenos demais, a esquisitice deles nos faria rir em qualquer outra circunstância. Aqui, sentimos uma enorme piedade ao vermos essas roupas.
Elas foram consertadas até o limite do possível, com todos os tipos de remendos. Cordões substituem botões. As roupas de baixo não passam de farrapos imundos, os buracos tapados pela sujeira.
Alguns deles não têm roupa de baixo. Muitos não têm sequer meias; depois de enrolar os pés em trapos, enfiam-nos em botas cujo couro, endurecido pelo sol e pela chuva, perdeu toda a elasticidade.
É uma visão terrível observar os vagabundos se aprontando para sair.
Depois de vestidos, eles recebem o desjejum, idêntico à ceia da noite anterior.
Então, são perfilados como soldados no pátio do albergue, onde os guardas os põem a trabalhar.
Alguns lavarão o chão, outros cortarão lenha, quebrarão carvão, farão uma variedade de tarefas até as dez horas, quando é dado o sinal para partir.
Eles recebem de volta os pertences pessoais confiscados na noite anterior. A isso acrescentam meia libra de pão e um pedaço de queijo para a refeição do meio-dia, ou às vezes, mas com menos frequência, um tíquete que pode ser trocado em cafés específicos do caminho por pão e chá, no valor de três francos [seis pence].
Um pouco depois das dez horas, os portões do albergue se abrem para deixar sair um bando de destituídos miseráveis e imundos que se espalham pelo campo.
Cada um deles parte para um novo albergue, onde será tratado exatamente da mesma maneira.
E durante meses, talvez décadas, o vagabundo não conhecerá outra existência.
Em conclusão, devemos observar que a comida para cada vagabundo consiste, no total, em cerca de 750 gramas [duas libras] de pão com um pouco de margarina e queijo, e um litro de chá; isto é, sem dúvida, uma dieta insuficiente para um homem que deve percorrer vinte quilômetros por dia a pé.
Para suplementar sua dieta, obter roupas, fumo e as mil outras coisas de que possa precisar, o vagabundo precisa mendigar quando não consegue achar trabalho (e ele dificilmente o encontra) — mendigar ou roubar.
Ora, mendigar é proibido por lei na Inglaterra e muitos vagabundos conhecem as prisões de Sua Majestade por causa disso.
É um círculo vicioso: se ele não mendiga, morre de fome; se mendiga, infringe a lei.
A vida desses vagabundos é degradante e desmoralizadora. Em muito pouco tempo pode transformar um homem ativo em eterno desempregado e parasita.
Além disso, é extremamente monótona. O único prazer deles é obter alguns xelins inesperados; isso lhes dá a chance de comer à farta por uma vez ou tomar uma bebedeira.
O vagabundo está isolado das mulheres. Poucas mulheres entram nessa vida. Para suas irmãs mais afortunadas, o vagabundo é objeto de desprezo. Assim, a homossexualidade não é um vício desconhecido para esses eternos andarilhos.
Por fim, o vagabundo, que não cometeu nenhum crime e que, no fim das contas, não passa de uma vítima do desemprego, está condenado a levar uma vida mais miserável que a do pior criminoso. Ele é um escravo com uma aparência de liberdade que é pior do que a mais cruel escravidão.
Ao refletirmos sobre seu destino miserável, que é compartilhado por milhares de homens na Inglaterra, a conclusão óbvia é que a sociedade o trataria melhor se o trancasse pelo resto de seus dias na prisão, onde ao menos ele desfrutaria de um relativo conforto.
George Orwell, in Como morrem os pobres e outros ensaios