Um homem — um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito pequeno — decide convidá-lo para conhecer suas filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-las em casa e tenta travar uma conversa civilizada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são recebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura palavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpretá-los, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance de Italo Svevo (1861-1928). Se Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na medida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é repleta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usando como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas descritas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charutos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significados secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas um cachimbo?
J. M. Coetzee, in Mecanismos internos
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