Os Breedlove não moravam na parte da frente de uma loja por estarem passando por dificuldades temporárias, adaptando-se aos cortes na fábrica. Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva. Mas sua feiura era exclusiva. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável e agressivamente feios. Com exceção do pai, Cholly, cuja feiura (resultado de desespero, dissipação e violência dirigida a ninharias e a pessoas fracas) era o comportamento, o resto da família — a sra. Breedlove, Sammy Breedlove e Pecola Breedlove — usava a feiura, vestia-a, por assim dizer, embora ela não lhe pertencesse. Os olhos, pequenos e muito juntos, sob uma testa estreita. O contorno do couro cabeludo baixo, irregular, que parecia ainda mais irregular pelo contraste com as sobrancelhas retas e densas que quase se juntavam. Nariz afilado mas arqueado, com narinas insolentes. Tinham maçãs do rosto altas e orelhas de abano. Lábios bem-feitos que chamavam a atenção não para si, mas para o resto do rosto. A gente olhava para eles e ficava se perguntando por que eram tão feios; olhava com atenção e não conseguia encontrar a fonte. Depois percebia que ela vinha da convicção, da convicção deles. Era como se algum misterioso patrão onisciente tivesse dado a cada um deles uma capa de feiura para usar e eles a tivessem aceitado sem fazer perguntas. O patrão dissera: “Vocês são feios”. Eles tinham olhado ao redor e não viram nada para contradizer a afirmação; na verdade, viram sua confirmação em cada cartaz de rua, cada filme, cada olhar. “Sim”, disseram. “O senhor tem razão.” E tomaram a feiura nas mãos, cobriram-se com ela como se fosse um manto e saíram pelo mundo. Cada um lidando com ela do seu jeito. A sra. Breedlove lidava com a sua da maneira como um ator lida com um recurso cênico: para a composição da personagem, para dar apoio ao papel que ela frequentemente imaginava fosse o seu — o de mártir. Sammy usava a dele como uma arma para causar dor aos outros. Adaptou seu comportamento a ela, escolhia os companheiros com base nela: pessoas que podiam ficar fascinadas, até intimidadas com ela. E Pecola. Pecola escondia-se por trás da sua. Oculta, velada, eclipsada — muito raramente espiando por trás do véu, e mesmo assim só para ansiar pelo retorno da máscara.
Essa família, numa manhã de sábado, em outubro, começou, um a um, a arrancar-se de seus sonhos de afluência e vingança para o sofrimento anônimo de sua habitação.
A sra. Breedlove se levantou sem ruído, vestiu um suéter por cima da camisola (que era um vestido velho) e foi para a cozinha. O seu pé bom emitia sons duros, de osso; o pé torto sussurrava sobre o linóleo. Na cozinha ela fez barulho com portas, torneiras e panelas. Os ruídos eram abafados, mas as ameaças que sugeriam não eram. Pecola abriu os olhos e continuou deitada, fitando o fogareiro apagado. Cholly resmungou, remexeu-se um instante na cama e fez silêncio.
Mesmo de onde estava, Pecola sentia o cheiro do uísque de Cholly. Os ruídos na cozinha ficaram mais altos, menos abafados. Nos movimentos da sra. Breedlove havia uma direção e uma finalidade que não tinham nada a ver com o preparo do café da manhã. A consciência disso, apoiada em muitos exemplos do passado, fez Pecola contrair os músculos do estômago e conter a respiração.
Cholly chegara bêbado em casa. Infelizmente chegara bêbado demais para discutir, portanto a história toda teria que irromper nesta manhã. Como não ocorrera imediatamente, a briga que se aproximava não teria espontaneidade; seria calculada, sem inspiração, e tremenda.
A sra. Breedlove entrou rápido no quarto e parou aos pés da cama onde Cholly estava deitado.
“Preciso de carvão nesta casa.”
Cholly não se mexeu.
“Está me ouvindo?” A sra. Breedlove deu um safanão num pé de Cholly.
Cholly abriu os olhos lentamente. Estavam vermelhos e ameaçadores. Cholly tinha os olhos mais cruéis da cidade.
“O quêêêê, mulher?”
“Eu disse que preciso de carvão. Está frio como uma teta de bruxa nesta casa. Você, com o rabo cheio de uísque, não sentiria o fogo do inferno, mas eu estou com frio. Tenho muita coisa para fazer, mas não vou congelar.”
“Me deixa em paz.”
“Só depois de você ir buscar carvão. Eu trabalho como uma mula e não tenho nem o direito de me aquecer? Então para que trabalhar? Você não traz nada para casa. Se ficasse por sua conta, estaríamos todos mortos...” A voz dela era como uma dor de ouvido no cérebro. “... Se está pensando que eu vou sair no frio para buscar carvão, trate de pensar de novo.”
“Estou cagando para a maneira como você vai arrumar carvão!” Uma bolha de violência explodiu na garganta dele.
“Você vai ou não vai sair dessa cama e buscar o carvão, seu bêbado?”
Silêncio.
“Cholly!”
“Não me provoque, cara! Se você disser mais uma palavra, eu te arrebento!” Silêncio.
“Tudo bem. Tudo bem. Mas, se eu der um espirro, só um, Deus que tenha piedade desse seu rabo!”
Sammy também tinha acordado agora, mas fingia dormir. Pecola continuava com os músculos do estômago contraídos e prendendo a respiração. Todos eles sabiam que a sra. Breedlove poderia ter ido buscar carvão no barracão, e que já tinha ido muitas vezes, ou que poderia ter mandado Sammy ou Pecola. Mas a briga que não ocorrera à noite pairava como a primeira nota de um lamento fúnebre no ar soturnamente expectante. Uma bebedeira, por mais rotineira que fosse, tinha seu cerimonial de encerramento. Os dias diminutos e idênticos que a sra. Breedlove vivia eram identificados, agrupados e classificados por essas brigas. Davam substância aos minutos e horas que sem elas seriam indistintos e esquecidos. Aliviavam o enfado da pobreza, conferiam dignidade aos cômodos mortos. Nessas rupturas violentas da rotina, que também eram rotina, ela podia exibir o estilo e a imaginação do que acreditava ser o seu verdadeiro eu. Privá-la dessas brigas era privá-la de todo o entusiasmo e razoabilidade da vida. Cholly, com sua embriaguez e vileza habituais, fornecia a ambos o material de que necessitavam para tornar a vida tolerável. A sra. Breedlove se considerava uma mulher íntegra e cristã, cujo fardo era um homem inútil a quem Deus queria que ela punisse. (Cholly estava fora do alcance da salvação, claro, e salvação não era a questão — a sra. Breedlove não estava interessada no Cristo redentor, mas, sim, no Cristo juiz.) Frequentemente a ouviam conversando com Jesus sobre Cholly, implorando a Ele que a ajudasse a “derrubar o filho da puta do ‘penácolo’ do orgulho dele”. E uma vez, quando um gesto de bêbado atirou Cholly contra o fogareiro em brasa, ela gritou: “Pega ele, Jesus! Pega ele!”. Se Cholly tivesse parado de beber, ela jamais teria perdoado Jesus. Precisava desesperadamente dos pecados de Cholly. Quanto mais ele afundasse, quanto mais selvagem e irresponsável se tornasse, mais esplêndidas se tornavam ela e sua tarefa. Em nome de Jesus.
Não era menor a necessidade que Cholly tinha da mulher. Ela era uma das poucas coisas que lhe repugnavam que ele podia tocar e, portanto, machucar. Despejava sobre ela a soma de toda a sua fúria inarticulada e desejos frustrados. Odiando-a, podia deixar-se intacto. Quando ainda era bem jovem, fora surpreendido no meio de umas moitas por dois homens brancos, enquanto se empenhava, com inexperiência mas diligência, em obter prazer sexual de uma garotinha do interior. Os homens iluminaram o traseiro dele com uma lanterna. Ele parou, aterrorizado. Eles riram por entre os dentes. O facho de luz não se moveu. “Vamos”, disseram. “Vai, acaba. E vê se faz direito, crioulo.” A lanterna não se moveu. Por algum motivo, Cholly não sentiu ódio dos brancos; sentiu ódio, desprezo, pela garota. A recordação ainda que parcial desse episódio, junto com uma infinidade de outras humilhações, derrotas e emasculações, podia movê-lo a ímpetos de depravação que o surpreendiam — mas só a ele. Por algum motivo ele não conseguia causar pasmo; somente ficar pasmado. Então desistiu disso também.
Cholly e a sra. Breedlove brigavam com um formalismo brutal e sombrio que só encontrava paralelo na maneira como faziam amor. Tinham concordado tacitamente que um não mataria o outro. Ele lutava com ela da maneira como um covarde luta com um homem — com pés, palmas das mãos, dentes. Ela, por sua vez, revidava de um modo puramente feminino — com frigideiras, atiçadores de fogo e, ocasionalmente, um ferro de passar que voava na direção da cabeça dele. Não falavam, gemiam nem xingavam durante essas pancadarias. Havia apenas o som abafado de coisas caindo e de carne contra carne que não era pega de surpresa.
Na reação dos filhos a essas batalhas havia uma diferença. Sammy dizia uns palavrões, ou saía de casa, ou se atirava na briga. Aos catorze anos, diziam, já tinha fugido de casa nada menos do que 27 vezes. Uma vez chegou até Buffalo e lá ficou durante três meses. Seus retornos, fossem à força ou devidos às circunstâncias, eram taciturnos. Pecola, por outro lado, restrita pela pouca idade e pelo sexo, fazia experiências com métodos de resistência. Embora eles variassem, o sofrimento era tão sistemático quanto profundo. Ela se debatia entre um desejo esmagador de que um matasse o outro e uma vontade imensa de morrer. Agora sussurrava: “Não, senhora Breedlove. Não faça isso”. Pecola, assim como Sammy e Cholly, sempre chamava a mãe de sra. Breedlove.
“Não, senhora Breedlove. Não faça isso.”
Mas a sra. Breedlove fez.
Pela graça, sem dúvida, de Deus, a sra. Breedlove espirrou. Só uma vez.
Correu para o quarto com uma panela cheia de água fria e atirou no rosto de Cholly. Ele sentou na cama, engasgado e cuspindo. Nu e cinzento, deu um pulo da cama, agarrou a mulher pela cintura e os dois caíram no chão. Cholly ergueu-a e tornou a derrubá-la, com as costas da mão. Ela caiu sentada, as costas apoiadas na cama de Sammy. Não tinha largado a panela e começou a bater com ela nas coxas e na virilha de Cholly. Ele pôs o pé no peito dela e ela soltou a panela. Caindo de joelhos, ele bateu várias vezes no rosto dela, que talvez tivesse sucumbido logo, caso ele não tivesse dado com a mão contra a estrutura de metal da cama quando a mulher se agachou. A sra. Breedlove aproveitou essa suspensão momentânea dos golpes e se esgueirou para longe do alcance dele. Sammy, que tinha acompanhado em silêncio a briga ao lado de sua cama, de repente começou a bater na cabeça do pai com os dois punhos, berrando sem parar “Seu merda sem roupa!”. A sra. Breedlove, que tinha agarrado a tampa redonda e chata do fogareiro, avançou de fininho para Cholly, que se levantava, e lhe deu duas pancadas, devolvendo-o à inconsciência da qual ela o arrancara com a sua provocação. Ofegante, ela jogou uma colcha por cima dele e o deixou no chão.
Sammy berrava: “Mata ele! Mata ele!”.
A sra. Breedlove olhou para Sammy, surpresa. “Para com esse barulho, menino.” Pôs a tampa do fogareiro de volta no lugar e tomou o rumo da cozinha. Na porta, fez uma pausa longa o suficiente para dizer ao filho: “Levanta daí. Eu preciso de carvão”.
Toni Morrison, in O olho mais azul
Nenhum comentário:
Postar um comentário