terça-feira, 29 de setembro de 2020

Relembrando Fup e Cerra-Dente

E após esse único gole, vovô, como que saboreando, não tomou outra gota sequer por uma semana. Miúdo não trabalhou nas cercas. Tinham ido enterrar os restos de Cerra-Dente antes que os pássaros atacassem e, apesar de ambos acharem que devia ter desaparecido, o corpo ainda estava onde o deixaram, agora completamente rígido, as tripas infestadas de moscas. Enterraram os restos na orla de um velho carvalho branco. Até vovô teve vez com a pá; violava sua regra fundamental de nunca suar antes do meio-dia.

A maior parte daquela semana, passaram sentados na varanda da frente, observando a primavera desabrochar e conversando sobre o que tinha acontecido. Miúdo contou diversas vezes a vovô que tinha matado Fup acidentalmente, como esta fora despedaçada, aparentemente tentando proteger um porco que, ao que supunha, devia odiar, e como depois, conforme vovô testemunhara, tinha se desenrolado, totalmente crescida e empenada, de dentro do corpo do Cerra-Dente, voando para longe. Ele queria saber como isso podia ter acontecido.

E a cada vez vovô Jake lhe respondia essencialmente a mesma coisa:

Não tenho a menor ideia. Mas posso pensar nas razões: ela viu que ele estava morrendo e queria que você respeitasse sua morte, o deixando morrer sozinho; ou não o queria ver levar um tiro estando preso na cerca; talvez achasse isso desonroso; ou talvez tenhamos suposto tudo ao inverso, que o Cerra-Dente estivesse tentando tirá-la daquele buraco para fazer sua merenda da meia-noite, quando na verdade podia estar tentando salvá-la, ou, pelo menos, ela achasse isso. Pode ser tudo isso e mais ainda, ou nada disso. E de que jeito foi parar daquele porco, e fora, eu não sei direito. Algumas coisas não é possível explicar, talvez até a maioria das coisas. É interessante pensar nelas e fazer alguma especulação, mas o principal é que se tem que aceitar as coisas tal como são, e seguir em frente com aquilo que se entende.

Quando Miúdo voltou ao trabalho, no fim daquela semana, começou a cortar largas passagens em todas as linhas das cercas, e depois disso começou a partir sequoias para fazer postes de porteiras. No final da semana, os postes se encontravam nos lugares, e ele estava para colocar a primeira porteira quando decidiu que, para fazer um trabalho realmente bom, os postes precisavam ser entalhados. Consultou vovô, que manifestou total acordo quanto a um dos postes ter a figura de uma cabeça de porco entalhada na parte de cima, e talvez um outro ter uma truta-arco-íris saltando, e outro – isso era fundamental – ter um pato, um pato voador, em memória de Fup, e na entrada principal, que levava à casa, ficariam muito bem uns ursos gêmeos, e no lado norte, que dava naquela linda campina, um veado com chifres de três pontas, como o que ele matara ali em 1964. seria perfeito… e sim, sim, pensou, achava ser uma boa ideia, pois afinal as cercas eram tão boas quanto seus portões. Naquela tarde, quando Miúdo deu o primeiro golpe com o martelo e o cinzel, sentiu a vida se transformando em suas mãos. Observou enquanto a imagem surgiu na madeira.

E no final da semana de abstinência, quando vovô Jake começou a beber, ele o fez lentamente, de modo apenas gradual, acumulando energias para a festa de seu 100º aniversário, três dias depois, na qual ele, Miúdo, e um terço do pessoal das redondezas ficaram tão bêbados que mal podiam grunhir ou apontar, muito menos parar de rir.

Jim Dodge, in Fup

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