Que a noite caia diariamente; que a bênção do repouso, bálsamo benfazejo, derrame-se todo entardecer sobre o sofrimento e o tormento, a dor e a preocupação; que essa poção do Lete esteja sempre pronta para nossos lábios ressecados; que, depois da luta, esse suave banho acolha nosso corpo agitado a fim de que ele ressurja, purificado de suor, poeira e sangue, fortalecido, renovado, rejuvenescido, quase sem saber, com a mesma coragem e o mesmo prazer originários – amigo! Sempre percebi e reconheci isso como a mais gentil e comovente entre as grandes coisas. Criaturas de ânsia obscura, emergimos da noite calma para o dia e caminhamos. O sol arde, andamos sobre espinhos e pedregulhos pontiagudos, nossos pés sangram, nosso peito arqueja. Como seria desesperador se a estrada ardente do esforço se abrisse à nossa frente indivisível, sem meta provisória, em ofuscante imprevisibilidade! Quem teria forças de percorrê-la até o final? Quem não sucumbiria, desencorajado, arrependido? Mas a noite acolhedora entrecorta muitas, muitas vezes a via-crúcis da vida; cada dia tem o seu ponto de chegada: um bosque, santo bosque, espera-nos com o murmurar das fontes e um crepúsculo verde, com o musgo macio a consolar nossos pés, um frescor suave envolvendo nossa fronte com a paz da pátria; e com os abraços abertos, a cabeça inclinada para trás, os lábios entreabertos e o olhar que se quebra feliz, adentramos sua deliciosa sombra…
Dizem que fui uma criança calma, que não gritava, não esperneava, mas era afeito ao sono e ao cochilo em um grau confortável para as amas. Acredito, pois lembro que amava o sono e o esquecimento em um tempo em que eu mal tinha o que esquecer, e lembro muito bem da primeira impressão que instigou o calmo afeto até ele se tornar um carinho consciente. Foi quando escutei a lenda do homem sem sono – a história do homem que se doava com tanta e tão insensata sofreguidão ao tempo e seus afazeres que maldizia o sono. Então, um anjo o fez merecedor da terrível bênção: privou-o da necessidade física do sono, soprou em seus olhos até que se transformassem em pedras cinzentas em suas cavidades e nunca mais se fechassem. Nem saberia contar em detalhes como esse homem se arrependeu de seu desejo, a que tormentos foi submetido, único homem sem sono entre todos os outros, e como ele, triste condenado, arrastou-se vida afora até finalmente ser libertado pela morte, até finalmente a noite, antes inacessível para seus olhos pétreos, tomá-lo para si e em si – só sei que, na noite daquele dia, mal pude esperar ficar sozinho em minha pequena cama para me atirar no colo do sono, e que nunca dormi mais intensamente do que na noite em que escutei aquela história.
Desde então, sempre observei com satisfação o que os livros diziam para elogiar o sono. Assim, foi em consonância com o meu coração que Mesmer enfatizou a possibilidade de que o sono, no qual consiste a vida das plantas, e do qual a criança durante as primeiras semanas de sua vida só desperta para receber o alimento, talvez fosse a condição natural e original do homem, correspondendo da maneira mais direta à função de vegetar. “Não poderíamos afirmar que nossa vigília apenas existe para dormirmos?”, disse o genial charlatão. Isso foi magnificamente bem pensado, e o estado de vigília certamente é apenas um estado de luta em defesa do sono. Afinal, Darwin não defendeu também que o espírito apenas se desenvolveu como arma na luta pela existência? E que arma perigosa! Uma arma que, quando nenhuma necessidade externa ameaça nossa segurança, frequentemente se volta contra nós. Ditosos somos nós quando ela descansa, quando a chama ofuscante e ardente da consciência já iluminou exaustivamente o mundo que nos preenche e circunda e podemos voltar a nos abandonar ao nosso verdadeiro e feliz estado!
Mas se é a necessidade que nos desperta, não é ela, na verdade, que nos torna estranhos ao sono. Acreditas que desconheço a insônia por tristeza e preocupação? A verdadeira devoção só veio ao meu sono depois que passou a primeira época de vida da liberdade e da intocabilidade, quando as contrariedades, em forma de escola, começaram a desvirtuar os meus dias. Nunca dormi de maneira mais deliciosa do que em certas noites entre domingo e segunda-feira, quando, depois de um dia protegido, durante o qual eu pertencia apenas a mim e aos meus, o próximo já ameaçava com adversidade rígida e alheia. E assim continua sendo. Nunca durmo mais profundamente, nunca regresso com mais doçura ao colo da noite do que quando me sinto infeliz, quando meu trabalho fracassa, quando o desespero me oprime, quando o asco à humanidade me obriga a refugiar-me na escuridão… e como, pergunto, poderia ser diferente, uma vez que a tristeza e a dor jamais seriam capazes de fortalecer nosso apego ao dia e ao tempo?
Sorrirás se eu te contar que conservo uma lembrança precisa e agradecida de cada cama na qual dormi por um período de tempo mais longo – cada uma delas, desde o meu primeiro berço com grades e uma cortininha verde até o imponente leito de mogno no qual nasci e que durante muitos anos ocupou meus quartos de solteiro. Agora tenho uma cama mais leve, uma cama inglesa, laqueada de branco, as partes da cabeceira e dos pés graciosamente decoradas. Acima dela, numa moldura branca, está aquele quadro francês chamado Marcha à estrela, que, com sua atmosfera azul esmaecida, flutuantemente musical, é a mais bela decoração de alcova que eu poderia imaginar… Sorrirás, digo eu – mas, ainda assim, que lugar extraordinário tem a cama entre a mobília doméstica, esse móvel metafísico em que se cumprem os mistérios do nascimento e da morte, esse perfumado casulo de linho em que nós, quentinhos, inconscientes e de joelhos dobrados, como outrora na escuridão do ventre materno, como que religados ao cordão umbilical da natureza, absorvemos alimento e renovação por misteriosas vias… Não é como um barco mágico que, encoberto e insignificante, ocupa o seu canto durante o dia, e nos leva flutuando toda noite para o mar do inconsciente e do infinito?
O mar! O infinito! Meu amor pelo mar, cuja gigantesca simplicidade sempre preferi à sofisticada pluralidade das montanhas, é tão antigo quanto o meu amor ao sono, e sei muito bem qual a raiz que essas duas simpatias têm em comum. Trago dentro de mim muito da sabedoria dos hindus, um desejo pesado e indolente por aquela forma ou não forma da perfeição chamada “nirvana” ou o “nada”, e, embora seja artista, cultivo uma inclinação muito pouco artística à eternidade, que se exterioriza em uma repulsa contra a estrutura e a medida. O argumento contrário, acredita-me, é a correção e a decência, e, para utilizar a palavra mais séria, a moral… O que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral tem dupla face, significa tanto concentração quanto devoção, e uma coisa sem a outra nunca é ética. “Concentração”, o oposto criativo da distração sobre o qual Grillparzer faz seu sacerdote proferir palavras tão maravilhosas, é algo que precisa ser sentido; e não é estranho que uma determinada fantasia sempre me transmita a sensação mais profunda da palavra – a fantasia do feto se criando no ventre da mãe? Nossa cabeça, imagina, não é redonda e não está formada desde o princípio, precisando apenas crescer; inicialmente, o rosto ainda está aberto, cresce aos poucos dos dois lados em direção ao centro, fechando-se devagar e sempre até se tornar esse nosso rosto simétrico, com olhar, com vontade, individualmente concentrado… e esse fechar-se, cerrar-se, criando uma forma decidida a partir do universo de possibilidades, vê, é essa fantasia que às vezes me faz compreender intuitivamente o que na verdade ocorre aqui por trás do fenômeno. Parece-me então que toda existência individual pode ser compreendida como consequência de um ato de vontade e de uma determinação sobrenaturais à concentração, à delimitação e conformação, à concentração a partir do nada, à renúncia à liberdade, ao infinito, ao dormitar e tecer em uma noite sem espaço nem tempo – uma decisão ética de ser e sofrer. Sim, o devir já é moral, pois o que mais significaria aquele aforismo cristão de que “o maior pecado do homem é ter nascido”? Só o puritano acredita que pecado e moralidade são conceitos antagônicos. Na verdade, são a mesma coisa; sem o conhecimento do pecado, sem a doação ao que é pernicioso e devorador, toda moralidade não passa de virtude pueril. O estado desejável no sentido ético não é a pureza, a ignorância, não é o cuidado egoísta e a arte desprezível da boa consciência, e sim a luta e a necessidade, a paixão e a dor. Heinrich von Kleist diz em determinado trecho: “Quem ama sua vida com cuidado já morreu em termos morais, pois a sua maior energia vital de poder sacrificá-la já apodrece quando ele a trata bem.” E as palavras mais éticas dos evangelhos são: “Não resistais ao mal.”
A moral do artista é a força da concentração egoísta, a determinação rumo à forma, à configuração, à delimitação, à corporalidade, rumo à renuncia à liberdade, ao infinito, ao dormitar e tecer no espaço ilimitado da percepção – resumindo em uma palavra, é a vontade para a obra. Mas quão pouco nobre e ética, exangue e asquerosa é a obra nascida da uniformidade fria, sábia e virtuosa de um artista! A moral do artista é devoção, engano e autorrenúncia, é luta e necessidade, vivência, conhecimento e paixão.
Sem dúvida, a moral é a questão suprema da vida, talvez seja a própria vontade de viver. Mas se queremos que seja mais do que uma declaração teatral de que a vida não é o maior dos bens, então deve existir algo mais elevado, mais definitivo do que essa vontade, e assim como a moral significa corrigir e disciplinar tudo o que é livre e possível para algo limitado e real, ela também necessita de um corretivo, uma justificativa, uma advertência incessante à introspecção e à renúncia. Chamemo-lo de sabedoria, esse corretivo – e seu oposto será a insensatez do homem que, afeito ao tempo e ao dia com um zelo tão cego, maldizia o sono. Chamemo-lo de religiosidade, e seu oposto será aquela animalidade pagã presa com o focinho ao chão, que não enxerga acima de si a grande paz das estrelas. Chamemo-lo de sofisticação – e seu oposto será a banalidade, que se sente totalmente em casa na vida e na realidade, sem nostalgia, sem conhecer uma pátria mais elevada: pois existem pessoas de uma banalidade e eficiência tão infinitas que não imaginamos que algum dia possam morrer, que algum dia possam compartilhar o sacramento e a transfiguração da morte.
Não é a depressão e sim a paixão – aquilo que Gautama Buda chama de “estar conectado” –, o febril engajamento do nosso eu no dia e na ação, que nos rouba o sono, e isso tem mais que uma significação nervosa: significa que nossa alma perdeu a pátria, tendo-se afastado tanto dela no zelo que já não encontra o caminho de volta. E não parece que precisamente os maiores e mais fortes passionais sempre encontram facilmente o “caminho de volta”? Ouvi dizer que Napoleão tinha a capacidade de adormecer quando queria, durante o dia, rodeado de gente, no barulho de uma batalha… e quando me lembro disso, vejo aquele quadro cujo valor artístico pode não ser alto, mas cuja anedota sempre exerceu sobre mim um fascínio infinito. Chama-se C’est Lui e descreve uma mísera sala de camponeses, cujos moradores, marido, mulher e filhos, espreitam tímidos junto à porta aberta. Pois no meio do cômodo, junto à mesa frágil, dorme o imperador. Esse emblema da paixão egoísta e expansiva está sentado, desembainhou a espada, o punho frouxo apoiado na mesa, o queixo no peito, e dorme. Não precisa de silêncio nem de escuridão, não precisa de almofada para esquecer o mundo; sentou-se em qualquer cadeira dura, fechou os olhos, deixou tudo para trás – e dorme.
Seguramente o maior homem de todos é o que preserva a lealdade e a nostalgia da noite, mas durante o dia realiza as maiores façanhas. Por isso, amo acima de tudo a obra que nasceu da “nostalgia da noite sagrada” e que, por assim dizer apesar de si mesma, persiste em seu esplendor de vontade e sonolência: o Tristão de Richard Wagner.
Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas
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