sexta-feira, 31 de julho de 2020

Fuga do tempo

É na fisionomia de meus amigos que leio minha idade e constato o irreparável ultraje e a fuga do tempo.”
Georg Christoph Lichtenberg

Pombo morto

Valeska Torres, in O coice da égua

Em tempos de pandemia: os artistas e suas obras

Edvard Munch

Frida Kahlo 

Gustav Klimt

Michelangelo Merisi da Caravaggio

 Pablo Picasso

Salvador Dali

Fonte: aqui.

O velho

A claridade na cozinha vai morrendo com a tarde. A velha fecha a torneira da pia, enxuga as mãos no avental e volta ao fogão. Espeta uma fatia alongada de berinjela, deitando ágil uma das faces cruas no óleo quente. O frigir recrudesce, espirra, e a velha, empunhando ainda o garfo, afasta o corpo, notando num relance o marido parado ali na entrada da sala para a cozinha.
Que que você está fazendo aí de chapéu na cabeça?”
O velho sobe a mão ao bico do chapéu e descobre a cabeça.
Não vai tomar banho?”
Andam dizendo coisas por aí, Nita.”
Que novidade…”
Andam dizendo coisas” repete o velho.
A velha se afasta do fogão e acende a luz. Fixa o marido.
Desembucha logo.”
É do nosso hóspede, não faz nem meio ano que ele chegou aqui e já andam falando dele.”
Pois deixe que falem, não foi pra festejar esse moço que ele foi hospedado nesta casa. É um pensionista como qualquer outro que passou por aqui.”
Isso não é nada.”
O que que não é nada?”
Estou dizendo que tudo que você pode estar pensando não é nada em comparação…”
Vai tomar banho, vai, em comparação com quê?”
Nada.”
Em comparação com quê?” insiste a velha.
O velho olha pro chapéu preso entre as mãos.
Foi lá no bar do Nonato, era só comentário, todo mundo estava falando dele, até caçoaram de mim…”
Não é de hoje…”
O velho volta a abaixar os olhos.
Eu pensei comigo, eles podem achar o que quiserem, só que estavam indo longe demais em tramar coisas, eu disse.”
Que coisas?”
Disse que se ele não é dessas farras, é que…”
Que farras?”
O velho se cala e continua olhando pro chão.
Fala claro, homem.”
O velho gira lentamente o chapéu entre as mãos.
Eu disse que todo mundo estava enganado pelo menos numa coisa, é que ele não queria prejudicar ninguém, eu disse que esse bacharel era só um coletor zeloso e correto.”
O velho se cala e a velha põe as mãos na cintura.
Vai, continua.”
A velha olha de soslaio pra frigideira, mas logo encara de novo o velho:
Fala!”
Já tentaram subornar esse moço, Nita, e isso não é segredo pra ninguém, só que ele não é sujeito de suborno, eu disse, não é como outros que passaram por aqui e que se vendiam até por um trago de fernete. Mas isso eles não querem entender, nunca que vão aceitar isso, um funcionário público que cumpre seus deveres com o estado e com o povo.”
Quem sabe se você não engoliu uma pérola…”
Que pérola, Nita?”
Estou falando da pérola que você acaba de vomitar. Te aturar a inteligência…” diz a velha decepcionada, na certa não esperava que o suspense descambasse em preocupação cívica. “Vai tomar banho, vai. Hoje não é dia de trocar toalha, fica avisado.”
O velho aperta as mãos na aba do chapéu, enquanto a velha se achega do fogão, destampa uma das panelas, e logo se entretém com a frigideira, onde deita mais uma fatia de berinjela. Vira-se pro marido.
Que que você está esperando? Vai.”
O velho não se mexe.
Não vê que preciso terminar a janta?” “Todos os dias a mesma coisa, Nita, você não me respeita, nunca me respeitou, eu não vou pedir respeito pras crianças da rua.”
Era o que faltava…”
Você nunca me respeitou.” A velha não responde, vira, na frigideira, a fatia de berinjela, enquanto o velho continua olhando pro chapéu.
Não fica aí parado, eu já disse.”
O velho se afasta calado, atravessa a sala, entra no quarto e fecha a porta. A casa está quieta, só no fundo é que se agita, mas no quarto, onde a penumbra vai cedendo à noite que avança, as ressonâncias da cozinha chegam apagadas. O velho se desloca sem acender a luz e logo senta na borda da cama. O chapéu ainda entre as mãos, ele tomba a cabeça e se perde em pensamentos.
Quando desperta do seu recolhimento, o quarto está em sombras. Ele vai até a janela e mal divisa, através da cortina, uns restos de palidez na linha do horizonte. No céu mais alto, o azul é quase escuro, mas a noite, indecisa e fosca, ainda impede que a luz dos postes se expanda. O velho vagueia os olhos quando nota o vulto parado na guia do outro lado. Puxa um canto da cortina: de frente pra casa, a camisa meio aberta, uma das mãos no bolso da calça, na outra um cigarro entre os dedos, o sujeito vasculha o alpendre feito olheiro. Mas logo atira o cigarro longe e se afasta num passo pausado. O velho o acompanha, ultrapassa-o com os olhos e alcança, a meio quarteirão, o V8 preto parado rente à calçada. O olheiro se aproxima do carro sem acelerar o passo, até que se inclina junto à porta dianteira e troca palavras com alguém no volante. Neste mesmo instante, uma loira de vermelho, a blusa do vestido com decote avantajado, colo e braços muito brancos, salta do banco traseiro como se procurasse ventilação, despregando seguidamente com a ponta dos dedos o tecido colado em parte à proeminência dos fartos seios. Parece repreendida por ter saído, se enfiando logo no carro sem discutir. O olheiro se inclina mais uma vez pro motorista, mas não demora em retornar, no mesmo passo pausado, ao lugar em que se encontrava antes. Acende outro cigarro, voltando a incidir os olhos no alpendre da casa.
O velho solta o pano da cortina e as coisas lá fora ficam de novo imprecisas. “Eles tramaram o quê?” murmura. “Mas tramaram o quê?” repete e aperta as mãos.
A velha abre a porta do quarto.
Vem jantar.”
O velho não se mexe.
Você não tomou banho?” pergunta notando que ele veste a mesma roupa.
Vão acontecer coisas.”
A velha acende a luz do quarto.
Que que andam dizendo por aí?”
Já disse que vão acontecer coisas.”
O quê?”
O velho não responde.
Vai falar ou não vai?” grita a velha.
O velho abaixa os olhos e se tranca, enquanto a velha aperta a boca, vira as costas, apaga a luz e deixa o quarto, o andar agitado.
O velho se detém assim que sai do quarto, pois no mesmo instante, vindo do seu quarto de entrada independente, o jovem pensionista entra quase sem ruído do alpendre pra sala. Sem ser notado, observa o moço que se vira pra fechar a porta que acaba de transpor. Num passo comedido, logo se descobre por inteiro pela claridade crescente que invade a sala, parando timidamente a um passo da porta da cozinha.
Pode entrar” diz a velha às voltas com travessas.
As mãos enfiadas a prumo nos bolsos do paletó, o que lhe dobra os braços, o pensionista avança mais um passo.
A comida está esfriando, pode entrar.”
O pensionista ainda vacila, mas se aproxima da mesa.
O velho sai do seu canto, atravessa a sala e entra na cozinha, ficando a um passo do pensionista, que se acomoda na cadeira de costas pra ele. Compenetrado, as mãos caídas, o chapéu preso pelas mãos, como quem se coloca em sinal de respeito, parece até que ele assiste a uma missa fúnebre enquanto observa o ritual do moço desdobrar o guardanapo e estendê-lo sobre as pernas, uma desenvoltura que não combina com sua timidez, uma timidez sem os traços de doçura do simples acanhamento, antes caprichosa, de feição intratável, como o burro de uma criança. Daí talvez, desde que chegou, seu silêncio impermeável, e a reclusão que se impôs a cada noite, fechando-se na cela do seu quarto.
O velho atira então um anzol em busca do que poderia estar por trás daquela solidão precoce, mas a palavra que procura se insinua, vem quase à tona, o peixe se entremostra e, sinuoso, num isto afunda, escapando-lhe. Demora depois o olhar sobre a nuca do bacharel, onde o remoinho dos cabelos, rebelde, guarda um visível frescor infantil, compatível por sinal com suas faces de menino, um tanto imberbes.
Do outro lado da mesa, sentada de frente pro moço, o olhar há muito erguido pro velho, uma mulher grande, matrona de cabelos anelados, afeta indignação:
O senhor não nos diz boa-noite, s’Eugênio?”
O velho não responde.
O senhor está tão esquisito!”
Recolhendo os ares de pensionista mais antiga, a mulher de cabelos anelados abaixa os olhos, descansando-os sonhadores sobre as mãos do moço à sua frente, cruzadas contra a quina da mesa.
A velha serve o terceiro prato de sopa e, curvando o corpo, coloca-o à frente da cadeira vazia. Olha o marido:
Você não vai sentar?”
Fixa contrariada o chapéu em suas mãos, mas se limita a um resmungo: “Caduco”.
O velho avança dois passos, se ajeita na cadeira de frente pra sua mulher, e só então repousa no chão o surrado chapéu de feltro. A velha se serve também de sopa, senta, e mergulha primeiro a colher no prato. A matrona esquece seu êxtase momentâneo, colhido na trama de olhares furtivos, e acompanha a velha. As mãos do moço se descruzam sob o olhar perscrutador do velho, que aperta as próprias mãos entre os joelhos, enquanto de olhos baixos não perde de vista os movimentos do pensionista à sua direita.
Você não vai tomar a sopa?” recrimina a velha.
O velho não responde, não ergue sequer a cabeça.
Está ótima!” comenta a pensionista antiga no intervalo curto entre duas colheradas.
Não se trocam mais palavras, o ruído é seco, incisivo. O carro deve ter sido freado em frente ao portãozinho do jardim da casa. A colher do moço, subindo, se interrompe, com ligeiro tremor, na meia altura. Ele devolve, ainda cheia, a colher ao prato. A velha faz o mesmo, antes porém sorve ruidosa o caldo. A pensionista, professora sem constrangimento, não se perturba, sua colher sobe e desce ininterrupta. Concentrada na sopa, tem atrás dos óculos as pálpebras quase descidas, e é pros pelos negros, que brotam da verruga ao lado do seu queixo, que parecem convergir os olhares.
O ranger das tábuas no assoalho do alpendre chega à cozinha.
O velho se põe de pé.
O que foi?” pergunta a velha.
Você não ouviu?” pergunta aflito o velho.
Sua mulher faz um trejeito de descrença com uma ponta de escárnio, enquanto o velho indaga ainda com os olhos a professora, que termina imperturbável a sua sopa.
Tanto rato no porão, s’Eugênio…” diz ela afastando o prato.
O ruído de um carro que zarpa fortemente acelerado encerra as apreensões da velha:
Foi um automóvel” diz ela terminando sua sopa.
Antes que a tensão se desfaça, e com voz sedutora, a professora engata um comentário, sonhando talvez com doces recompensas:
Já disseram que o automóvel só serviu para acelerar o fim da nossa espiritualidade.”
A citação elevada se perde, o moço nem se mexe, só a velha é que arregala os olhos, mas logo volta pro seu prato.
A professora não desiste e continua exibindo sua elegância um tanto ambígua ao subir com as duas mãos o guardanapo, aplicando-o em pequenos toques contra a boca, como se fosse uma compressa. Ao mesmo tempo seus olhos cheios de apetite se deslocam a contragosto, trocando as mãos esculturais do moço pela fatia de berinjela no seu prato. E não demora em ir ao cesto de pão, de onde colhe as três únicas torradas ali existentes, encomendadas de costume pra sua dieta.
De pé até então, a cabeça talvez longe do que se passa na mesa, o velho volta a sentar.
Reconheço só pelo arranque o carro dos que estão à minha caça, não aceitam que eu contrarie seus interesses” diz de modo intempestivo o jovem coletor, a voz firme, fazendo-se ouvir excepcionalmente naquela mesa. “Não cedi a eles, quando se apresentavam como amigos, não me vendi depois, quando se diziam realistas, tentam agora me difamar como inimigo. Se não me dobrar a essa chantagem, matam” diz o moço e se tranca.
A velha arregala de novo os olhos, enquanto o mal-estar se instala pesado na mesa. Se nem todos entenderam o que acabavam de ouvir, sentiram pelo menos o que havia de grave, não se atrevendo depois qualquer palavra ou gesto. Só a professora arrisca um olhar rápido e, diante da assustadora palidez do moço, para de mastigar, engolindo apressada todo o bolo alimentar. Berinjela frita e torrada mal triturada lhe entalam na garganta, engasga e tosse sem parar. A mão direita em concha cobre a boca, mesmo assim marca a toalha branca com borrifos e salpicos, enquanto o guardanapo, preso pelas pontas dos dedos da outra mão, acena confusamente. A velha se levanta e socorre a professora, bate forte nas suas costas e lhe aproxima um copo d’água. O velho e o moço ficam alheios à súbita agitação, nem se mexem. A professora parece recompor-se ao arrancar estertores do fundo da garganta. Leva finalmente o guardanapo aos olhos lacrimejantes.
Com licença” mal consegue dizer, e retira-se pigarreando da mesa.
A velha volta à cadeira, olha duramente o marido e se serve de berinjela. Passa a travessa ao moço que se limita a esboçar um sinal de recusa. Levanta-se mais uma vez, recolhe da pedra da pia um dos quatro pratos feitos de sobremesa, colocando-o diante do pensionista: “O senhor não pode ficar sem comer, coma pelo menos o pedaço de mamão”.
O moço não toca no prato, continua pálido, a cabeça erguida, um adolescente enfezado em franco desafio. Ao notar a faísca que lhe incendeia os olhos, o velho fica a um nada de balbuciar qualquer coisa.
Raiva” diz o velho num puxão, entre dentes, como se acabasse de fisgar a palavra teimosa que tanto lhe escapava, mas que se debate agora inteira na sua boca. É como se chegasse com essa palavra ao nervo daquele jovem. “Raiva!” repete em voz bem audível e sem propósito aparente. E parece que sorri.
A velha arregala pela terceira vez os olhos como se o mundo estivesse definitivamente de pernas pro ar.
O velho se levanta e a velha o interpela de boca cheia:
Aonde você vai?”
O velho não responde. A velha engole a comida, afasta rudemente o prato, e grita:
Aonde você vai?”
O velho deixa a cozinha enxovalhado pelo escarcéu que sua mulher apronta: derruba a cadeira quando se levanta, praguejando alto ao recolher louças e talheres, como se atirasse tudo contra a bancada da pia.
O velho atravessa a sala e alcança o alpendre já anoitecido. Encosta a porta, dando conta do silêncio que existe ali, e aspira fundo, soltando todo o com a boca em bico, de alívio. Mas forte o perfume, estranho e suspeito, espalhando-se pela atmosfera escura. Desloca-se vagaroso pelo chão de tábuas, enquanto o perfume se insinua em tudo: nas paredes, nas colunas de madeira enroladas por retorcidas trepadeiras, na fantasia falha da balaustrada.
Tem um cheiro forte de perfume em nossa casa, Nita” murmura intrigado.
Do alto da escada que leva ao jardim embaixo, enquadrado pelas duas alas do alpendre, corre atentamente os olhos pelas folhagens que acobertam a estridência de grilos. No pequeno canteiro circular, o cipreste romano se ergue ereto e soturno no centro, com o ponteiro acima da cumeeira da casa, quase indevassável à escassa luz que já se expande do poste mais próximo. Nada balançaria suas ramas tesas nessa noite de mormaço, mas um jogo apagado de sombra e luz tremula suavemente na parede do fundo, onde duas portas dão acesso aos quartos independentes dos pensionistas.
O velho suspende a investigação, vai até o canto da ala que divisa em nível bem mais alto com a rua, e se larga numa das cadeiras de vime. Cruza as mãos, e de novo aspira fundo perfume.
Os passos na calçada repercutem pausados no alpendre, se aproximam da casa. O velho não se mexe. Os passos perdem o compasso junto ao portãozinho de entrada pro jardim, mas logo são retomados no mesmo ritmo. O velho se inclina pra direita e, através do espaço entre dois balaústres, seus olhos quase se chocam com o mesmo olheiro, que segue em frente sem apressar o andar. Sempre pausados, os passos se afastam e desaparecem.
O velho se encolhe quando o pensionista deixa a sala e, no alpendre, se dirige para a ala dos fundos, paralela à rua. O moço passa pela porta da professora, onde um risco de luz marca a soleira, e logo alcança a porta de entrada do seu quarto.
Afundado na cadeira, no outro extremo, o velho ouve primeiro o ruído discreto da maçaneta se abaixando, vê a meia folha da porta se abrindo, e se retesa quando a luz do quarto se acende sem ser acionada pelo moço, paralisando-o no instante em que ele ia transpor a soleira. Antes que recue, certa mão desenvolta surge pelo vão da porta e, alongando-se num braço obscenamente branco de mulher, enlaça por trás a cintura do moço, puxando-o pra dentro. E a mesma mão, sinuosa, fecha a porta, trancando-a à chave. As mãos do velho estão agarradas aos braços da cadeira. Do quarto da professora, chegam apagados os pigarros de mais um acesso de tosse.
Novos passos na calçada. O velho se põe de pé. Uma senhora, missal e mantilha preta dobrada numa das mãos, se aproxima seguida de um vira-lata. Cumprimentam-se. Pouco depois, o andar seguro, ela dobra a esquina. Ninguém mais na rua, só o silêncio do alpendre. O velho volta a sentar, descendo a mão espalmada pelo rosto, como se enxugasse o suor desde o alto da testa. E estica então as pernas, apoiando os pés no assento da cadeira em frente. Mole, distenso, fecha os olhos. “Farras” murmura, e adormece.
Tire os pés da cadeira” ordena a velha. O velho abre assustado os olhos.
Recolha os pés.”
O velho retira os pés da cadeira, enquanto a velha senta.
Ele conduz o olhar temeroso pros fundos: o alpendre ali está quieto e escuro. Desapareceu o risco de luz na porta da professora, já entregue na certa a seu sono solitário. Os dois voltam a se encarar, quase se chocam com os olhos. O silêncio atento da velha cobra duramente do marido uma palavra.
Estão acontecendo coisas em nossa casa” diz enfim o velho. A velha se empertiga e seus olhos brilham no escuro.
Que que andam dizendo por aí?”
O velho não responde.
Me diz.”
O velho não responde.
Conta, homem.”
Já disse que estão acontecendo coisas em nossa casa.”
O quê?”
O velho abaixa os olhos.
Vai falar ou não vai?” O velho se tranca e desvia os olhos pra rua, enquanto a velha se ergue furiosa e arremeda o marido torcendo a voz:
Andam dizendo coisas por aí… Vão acontecer coisas… estão acontecendo coisas em nossa casa… Peste de velho!”
Vira as costas, abandona o alpendre e bate a porta da sala.
O velho não se perturba, não perde a serenidade de agora. Nada no seu semblante revela aflição, em nenhum dos seus traços transparece qualquer comoção. Olha pro alto. O céu, como um fruto, está maduro. E há em tudo um clima silencioso de espera.
Raduan Nassar, in Obra completa

Quase Nada


Olhares e sussurros

Já fui gordo, bastante gordo. Temia me tornar um dos sujeitos mais gordos — não digo do mundo, mas da cidade onde moro, pelo menos. Todas as pessoas têm a sua paranoia, a minha era ser gordo. Por isso fiz a tal cirurgia bariátrica. Hoje como uma azeitona e fico saciado.
Decidi fazer isso quando vi a relação das pessoas mais gordas do mundo. Não vou fazer uma relação dos gordos mais gordos, apenas digo que o mais gordo de todos se chamava... não vou dizer o nome dele, só as iniciais, J.B., e pesava cerca de 600 (seiscentos) quilos. Esse J.B. morreu com um edema generalizado ocasionado pelo excesso de gordura. Quando vi a foto dele fiquei traumatizado. Ele se parecia comigo. À noite sofri um horrível pesadelo: eu era o J.B. e não conseguia subir na balança para me pesar; eu era a pessoa mais gorda do mundo. Acordei tremendo de medo. Então fiz a bariátrica.
Pesquisei para saber quem era o melhor especialista nesse ramo. Era um cirurgião chamado doutor Alpendre.
Doutor Alpendre.”
Alpenddre com dois D, dois D. Com um D apenas é um galpão, uma coisa assim.”
Entendi. Mas eu vim aqui porque quero muito fazer a tal cirurgia bariátrica.”
Quantos quilos o senhor pesa?”
Não sei.”
O doutor — não vou repetir o nome dele — tinha uma balança no consultório.
Subi na balança.
Cento e quarenta quilos. Espera, não, não, 145. Vamos ver sua altura... Vou lhe dizer uma coisa, senhor...”
J.B., quer dizer, meu nome é José.”
Senhor José. Metade das pessoas que fazem redução de estômago volta a engordar parcialmente, e 5% ganha todo o peso de novo. Por isso, não adianta apenas se submeter à cirurgia bariátrica: é preciso mudar de hábitos e manter uma reeducação alimentar para o resto da vida. A operação também deve ser a última alternativa para quem precisa emagrecer — seja por obesidade mórbida ou por doenças associadas ao excesso de peso. Ao contrário do que muita gente pensa, o estômago de indivíduos gordos não é maior nem mais elástico que o dos magros. Outra coisa, pessoas magras podem ser gordas por dentro, devido à gordura que armazenam ao redor dos órgãos vitais, coração, fígado, pâncreas. Essa gordura é mais perigosa do que aquela que se aloja sob a pele. Vou ter que fazer uma série de exames laboratoriais e outros.”
O doutor — não vou repetir o nome dele — estava querendo ganhar mais, como todo mundo, aliás. Mas eu não me incomodei com isso, sou rico, tenho muito dinheiro.
Enfim, o doutor — não vou repetir o nome dele —, depois de todos os exames, disse que eu não era gordo por dentro, só por fora. E a cirurgia foi realizada.
Em pouco tempo emagreci mais da metade do meu peso. Tive que comprar roupas novas, até sapatos; as pessoas pensam que o pé não emagrece, emagrece sim.
Então aconteceu algo perturbador. Antes, quando era gordo, eu entrava em qualquer lugar público e as pessoas não me estranhavam. Quando fiquei magro todo mundo me olhava. Demorei a perceber isso. Por exemplo, quando ia a uma exposição de arte — além de gostar de cinema eu gosto muito de pintura e artes plásticas em geral —, as pessoas me olhavam à sorrelfa e sussurravam entre elas “olha ali aquele caveirinha”.
Mas isso não era o pior. Quando fui para a cama com uma... uma... como diria, uma senhora, uma mulher, enfim, uma pessoa do sexo feminino, eu não consegui realizar a intoductio penis intra vas. Existe vergonha maior? Não, não, não existe. Quando eu era gordo isso jamais aconteceu comigo.
Chega de ser caveirinha, chega. Como disse o doutor — não vou repetir o nome dele —, o estômago dilata.
Amanhã vou comer uma feijoada completa: feijão-preto, carne-seca, lombo, rabo de porco, orelha, chispes, paios, linguiça, um montão de torresmo, toucinho defumado, couve cortada em tirinhas, laranjas descascadas e várias pimentas-malaguetas.
Depois de amanhã, vou comer dois quilos de rabada com polenta feita com o melhor fubá misturado com manteiga e queijo.
Caveirinha é o caralho!
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Entidade - Yamandu Costa e Mônica Salmaso

Reconhecimento do amor

Amiga, como são desnorteantes
Os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
Onde se reclina a inquietação do forte
(Ou que forte se pensa ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
A bruma da renúncia:
Não queiras a vida plena,
Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
Não pedias nada,
Não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
E de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro –
Sadicamente massacrar-se
Sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
Desde a hora do nascimento,
Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido
na História,
Ou mais longe, desde aquele momento intemporal
Em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
No caos universal

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
Sua espada coruscante, seu formidável
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir
Uma orquídea de fogo e lágrimas.

Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
Quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa
Alegorias, circunstâncias, referências temporais,
Imaginações oníricas,
O voo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
Todas as imposturas da razão e da experiência,
Para existir em si e por si,
À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
E se confessasse jubilosamente vencido,
Até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.
Carlos Drummond de Andrade

Meu novo viver

A bem dizer sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. Já morreu o antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar. Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração, seja em compartimento do governo, seja em sala de desembargador. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito:
Seu filho de égua, que pensa que é?
Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto do primeiro leite. Como fosse dado a fazer garatujações e desabusado de boca, lá num inverno dos antigos, Simeão coçou a cabeça e estipulou que o neto devia ser doutor de lei:
Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.
Então, para aprimorar tais inclinações de nascença, caí nas garras da prima Sinhá Azeredo, parenta encalhada na prateleira, uma vez que casamento não achou por ser magricela e devota. Morava em nação de chuva — um oco de coruja chamado Sossego, onde só dava presença bicho penado. De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio de coruja, asa de caburé, fora outros atrasos dos ermos. Metida nos livros de devoção, Sinhá Azeredo não tinha outra aptidão do que ensinar ao parente sabedoria ligada aos anjos do céu. Saía da prima um cheiro de vela, um bafo de coisa de oratório. De tardinha, sumia no quarto das devoções enquanto eu ficava na soletração da cartilha. Sinhá conhecia toda a raça de ventos e para cortar as maldades e miasmas deles possuía reza da maior força. Por mal dos meus pecados, o que a prima mais apreciava era conversa de assombração, de meninos desbatizados que morriam sem o benefício da água benta ou de herege esquentado em fogueira de frade. Lambia os beiços de cera e ameaçava:
Criança sem religião acaba no fogo dos hereges.
Meus dias no Sossego findaram quando fui pegado em delito de sem-vergonhismo em campo de pitangueiras. A parda vasquinha dessa intimidade de mato ganhou dúzia e meia de bolos e eu recriminação de fazer um frade de pedra verter lágrima. Simeão, sujeito severoso, veio do Sobradinho aquilatar o grau de safadeza do neto. Levei solavanco de orelha, fui comparado aos cachorros dos currais e por dois dias bem contados fiquei em galé de quarto escuro. No rabo dessa justiça, meu avô deliberou que eu devia tomar rumo da cidade:
Na mão dos padres eu corto os deboches desse desmazelado.
Atrás da saia da prima Sinhá, lá uma tarde, viajei para o meu novo viver. Como era tempo de chuva, dormi no balanço do trem. Quando dei conta do andado, já a cidade apresentava suas casas e um povinho apressado corria no debaixo dos guarda-chuvas. O homenzinho das passagens, aparecido na porta do vagão, avisou:
Campos! Campos dos Goitacazes!
Anos passei no bem-bom da rua da Jaca, em chácara de fruteira e casa avarandada. A prima na devoção dos oratórios e eu na vadiagem, com enganos de que esmerava no aprendizado das letras e o que menos Ponciano fazia era aparecer na escola dos frades. Passava semanas em velhacaria de pular muro atrás dos bicos-de-lacre e coleirinhos. O avô Simeão, enterrado no sem-fim dos pastos, não podia acompanhar as capetagens do neto. De mês em mês, assim mesmo na época das águas, é que pisava calçada da rua da Jaca. Sem tirar a espora, vinha saber dos meus adiantamentos no ensino dos padres. Mostrava a Simeão as obrigações de leitura. Ele, quebrado da vista, balangava a cabeça e dizia folheando a livrarada:
Muita instrução, muita instrução.
Nesse entrementes, eu já graúdo de quinze anos, uma tosse comprida jogou a prima Sinhá na cama, do qual sofrimento nunca mais teve modos de sair. Deu de andar encafuada em cobertor, só nariz de fora. Afinou ainda mais e num agosto de chuva foi embora na asa de um vento encanado. Uma quinzena vencida, já a parenta bem enterrada e melhor encomendada em missa de muito altar, ouvi o seu tossir doente no quarto do oratório. De castiçal em punho, apareci para saber, se fosse o caso, das necessidades da falecida. Capaz que precisasse de um carneiro mais aparatoso ou um par de ladainhas em reforço ao seu bem-estar no céu. Inquiri a visão por duas vezes, como manda a lei dessas ostentações da noite:
Que penar é esse de tão tardias horas?
Não colhendo resposta, voltei ao gozo dos cobertores e deixei que o tossir continuasse. Depressinha o acontecido pulou o muro e a vizinhança ficou sabedora de que Sinhá aparecia no oratório dos Azeredos Furtados da rua da Jaca. Agregado nenhum, a par da penitência, teve mais ânimo de perambular pelos corredores passada a ave-maria. Até que apareceu a velha Francisquinha, mandada dos confins de Mata-Cavalo, a herança mais pasto adentro de meu avô. Não sei que reza de rebite apresentou Francisquinha no recinto da assombração. De pronto, os lamentos perderam as forças e a penitência deixou de existir, mesmo em noite trevosa de sexta-feira. Eu, que sou perdido da cabeça por uma brincadeira de deboche, sempre relembrava, em presença de alguma tosse, que Francisquinha possuía remédio de grande valimento em incômodo do peito:
É um porrete. Melhor do que poção de doutor formado.
Simeão deu todo poder de mando a Francisquinha, negra de confiança, vinda dos tempos apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade calhava a contento. A velha sabia dar ordem na cozinha, governar sala e saleta. Morava no meio de um bando de negrinhas e afilhadas. Conhecedora da minha fama de maluco por perna de moça, no dobrar das nove horas trancava todas elas nos compartimentos mais protegidos de tramela. Lacrava as portas com esta ponderação severista:
Cuidado com o menino!
O menino era eu, molecote aparentado de palmeira, altão, grosso de braço, comprido de perna, conhecido das arruaças e rabos de arraia da rua das Cabeças, tanto que cursava a patente de alferes por imposição de meu avô, que desejava abrandar meu gênio estouvado:
Na tropa de linha ele perde os desaforos, toma tino de gente.
Engano de Simeão. Era ele desaparecer de volta aos ermos e o neto cair na pândega dos circos de cavalinhos e portas dos Moulin-Rouge. De letra eu nem queria sentir o cheiro. O trabalho que Ponciano mais apreciava era o andar na poeira de um bom rabo de saia, serviço que ainda hoje é de minha especial inclinação. Assim, por causa de um par de tranças de uma tal de dona Branca dos Anjos, apareci em Gargaú, cidadezinha criada e amamentada no areal da costa. Era preciso ter tutano e preparo de coragem para pisar em escondido tão distanciado. Um capitão, meu amigo de vadiagem, garantiu que só pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo eu voltava vivo de lá:
É a terra mais de bugre que já vi.
Pelas prendas e esmerada guarnição traseira da menina Branca dos Anjos lá cheguei em trenzinho de ferro e lombo de canoa. Vi que o amigo capitão não foi exagerado no parecer. Gargaú era bicho do mato, sem nenhuma aptidão para a cortesia. Fechei a cara e procurei a moça do meu bem-querer. A beleza dela morava em casa avarandada, com um jardim de bogari que ainda hoje, tantos anos passados e rolados, remexe em minhas lembranças. Mas foi o pai saber que o neto de Simeão estava na praça, para arrumar ligeirinho o baú e esconder a donzelice de dona Branca no fundo do sertão restinguento. Levou a filha e deixou aviso:
Esse Ponciano de Azeredo Furtado é ladrão de moça solteira. Fogo nele.
Gargaú trancou a porta na minha cara. De noite, por desgraça, o luar da varanda de dona Branca dos Anjos liberou tudo que foi cheiro de bogari. Sabia eu que não tinha mais trança de moça no detrás daquelas paredes, que também olho meu podia dizer adeus para sempre ao andar de cobra da menina. De coração caído, deliberei bater em retirada. Na despedida, já dentro da canoa, fiz umas galhardias e grandezas. Garanti que a ofensa não ia ficar no barro sem resposta:
Vou roubar dona Branca no mês que vem, quando não for mais tempo de lua.
José Cândido de Carvalho, in O Coronel e o Lobisomem

O genial Quino


Das ações humanas

Sedule curavi humanas, actiones non didere, non lugere, neque detestare, sed intellegere. (Tenho me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las).
Spinoza, in Tratado Político

Laura

Aos onze anos experimentei grave desarranjo. Atravessando uma porta, choquei no batente, senti dor aguda. Examinei-me, supus que tinha no peito dois tumores. Nasceram-me pêlos, emagreci — e nos banhos coletivos do Paraíba envergonhei-me da nudez. Era como se o meu corpo se tivesse tornado impuro e feio de repente. Percebi nele vagas exigências, alarmei-me, pela primeira vez me comparei aos homens que se lavavam no rio.
Desejei avisar a família, consultar o Dr. Mota, cair de cama. Achava-me, porém, numa grande perplexidade. Nunca usara franqueza com meus parentes: não me consentiam expansões. Agora a timidez se exagerava, o caso me parecia inconfessável. E se me atrevesse a falar ao Dr. Mota, ele iria dizer que o mal não tinha cura.
Refleti, afirmei que não estava doente; nem precisava deitar-me. Era ruim deitar-me. Na loja, no colégio, na agência do correio, distraía-me; à noite ficava horas pensando maluqueiras, rolava no colchão, contava as pancadas do relógio da sala, buscava o sono debalde. Levantava-me, acendia a lâmpada de querosene, pegava um romance, estirava-me na rede, lia até cansar. O espírito fugia do livro: necessário reler páginas inteiras. Inquietação inexplicável, depois meio explicável. O diagnóstico pouco a pouco se revelava, baseado em pedaços de conversas, lembranças de leituras, frases ambíguas que de chofre se esclareciam e me davam tremuras.
Aquilo ia passar: os outros rapazes certamente não viviam em tal desassossego. Mas a ansiedade aumentava, as horas de insônia dobravam-se, e de manhã o espelho me exibia olheiras fundas, uma cara murcha e pálida.
Recompus gradualmente o vestuário. Dispensava luxos, mas não sairia calçado em tamancos, metido em roupas de algodão, sem colarinho. Obtive um terno de casimira, chapéu de feltro, sapatos americanos, uma gravata vermelha.
Não me animava a exigir mais de uma gravata: meu pai só me permitia, rigoroso, o suficiente. Isso bastava à minha representação — no colégio, no quinzenário, nas seções da Instrutora Viçosense, da Amor e Caridade, que me elegeu para segundo secretário.
Foi então que vi Laura, num exame. Jovino Xavier fez-lhe perguntas comuns; notando-lhe a fortaleza, puxou por ela e declarou a análise sem jaca.
Ouviu os discursos, recebeu os agradecimentos da professora e elogiou em demasia a inteligência e o progresso de Laura. Concordei. Invadiu-me súbita admiração, que em breve se mudou numa espécie de culto.
Mal percebi o rostinho moreno, as tranças negras, os olhos redondos e luminosos. O meu ideal de beleza estava nas donzelas finas, desbotadas, louras, que deslizavam à beira de lagos de folhetim, batidos pelos raios do luar, cruzados por cisnes vagarosos. Laura não possuía o azul e o ouro convencionais, mas dividia períodos, classificava orações com firmeza, trabalho em que as meninas vulgares em geral se espichavam. Imaginei-a compondo histórias curtas, a folhear o dicionário, entregue a ocupações semelhantes às minhas — e aproximei-a; encareci-lhe depois o mérito — e afastei-a. Se ela estivesse próxima, não me seria possível concluir a veneração que se ia maquinando.
Situei-a além dos lagos azuis, considerei-a mais perfeita que as moças do folhetim. Duas vezes por dia, no caminho da escola, retardava o passo diante de uma casa baixa, envesgava o olhar para as janelas, ordinariamente desertas, seguia com alívio e desânimo. Se via a pequena, acovardava-me, balbuciava um cumprimento — e distanciava-me, raspando as paredes, batendo nas ombreiras das portas, sacudindo uma pilha de livros segura por dois cadarços. Andava mergulhado num devaneio. Queria libertar-me, examinar a rua, desviar-me dos transeuntes; a imagem repelida voltava, transformava-se em ideia fixa, agradável e dolorosa.
As inquietações que me enchiam as noites eram quase palpáveis, tinham feições — e cabelos negros me acariciavam o rosto, um sopro me inteiriçava.
Sensações desencontradas, assaltavam-me: ardia-me a cabeça, os dedos tiritavam, frios como gelo. Impossível suportar o contato dos lençóis. Erguia-me sufocado, ia balançar-me devagar na rede. Já não acendia o candeeiro. Temia privar-me do fantasma, recuperar a calma. E a leitura me enfastiava: um mês a arrastar-me no Sonho de Zola, sem nenhum desejo de chegar ao fim, interpretando a narrativa a meu jeito. A bordadeira de paramentos, que se confundia com as santas de Jacques de Voragine, convertia-se em Laura, e eu a contemplava, personagem de romance também, num andaime, junto ao muro de uma catedral. Descia daí, retomava a individualidade, entretinha-me com a garota em longas conversas.
Não conseguiria dizer alto a décima parte daquilo: expressava-me a custo, afligia-me buscando as palavras, baralhava os assuntos e tinha um leve defeito de pronúncia: engolia dd e tt. A voz abafada, cortada de hiatos, inaudível. O discurso que fiz na Amor e Caridade foi um desastre: na vizinhança da tribuna findava o burburinho. Quando Mário Venâncio teimava em reputar-me um embrião de novelista, retraía-me duvidoso: não seria capaz de arranjar um diálogo.
Ali, na escuridão, a língua perra se desligava, perguntas e respostas afluíam claras. Essas entrevistas eram curiosas. Havia em Laura a boca vermelha, o sorriso cândido. Longas pestanas lhe ensombravam os olhos, as varandas da rede mudavam-se em cabeleira negra. Só. Laura não tinha corpo — e aí se originou o meu tormento. Eu suprimira as indecências. Embrulhara com ódio O Cortiço em muitas dobras de papel grosso, amarrara-o em muitas voltas de barbante forte, escondera-o por detrás dos outros volumes, na prateleira inferior da estante. Apontavam no romance passagens cruas — e a contaminação me horrorizava. Do naturalismo apenas conservava O Sonho, e não queria supor, com Mário Venâncio, que a bordadeira de paramentos fosse degenerada.
Certo não existia alma em Laura; indignava-me, porém, reduzi-la a um organismo sujeito as exigências comuns. Livrei-me do apuro fluidificando-a.
Graciliano Ramos, in Infância