quinta-feira, 30 de julho de 2020

Laura

Aos onze anos experimentei grave desarranjo. Atravessando uma porta, choquei no batente, senti dor aguda. Examinei-me, supus que tinha no peito dois tumores. Nasceram-me pêlos, emagreci — e nos banhos coletivos do Paraíba envergonhei-me da nudez. Era como se o meu corpo se tivesse tornado impuro e feio de repente. Percebi nele vagas exigências, alarmei-me, pela primeira vez me comparei aos homens que se lavavam no rio.
Desejei avisar a família, consultar o Dr. Mota, cair de cama. Achava-me, porém, numa grande perplexidade. Nunca usara franqueza com meus parentes: não me consentiam expansões. Agora a timidez se exagerava, o caso me parecia inconfessável. E se me atrevesse a falar ao Dr. Mota, ele iria dizer que o mal não tinha cura.
Refleti, afirmei que não estava doente; nem precisava deitar-me. Era ruim deitar-me. Na loja, no colégio, na agência do correio, distraía-me; à noite ficava horas pensando maluqueiras, rolava no colchão, contava as pancadas do relógio da sala, buscava o sono debalde. Levantava-me, acendia a lâmpada de querosene, pegava um romance, estirava-me na rede, lia até cansar. O espírito fugia do livro: necessário reler páginas inteiras. Inquietação inexplicável, depois meio explicável. O diagnóstico pouco a pouco se revelava, baseado em pedaços de conversas, lembranças de leituras, frases ambíguas que de chofre se esclareciam e me davam tremuras.
Aquilo ia passar: os outros rapazes certamente não viviam em tal desassossego. Mas a ansiedade aumentava, as horas de insônia dobravam-se, e de manhã o espelho me exibia olheiras fundas, uma cara murcha e pálida.
Recompus gradualmente o vestuário. Dispensava luxos, mas não sairia calçado em tamancos, metido em roupas de algodão, sem colarinho. Obtive um terno de casimira, chapéu de feltro, sapatos americanos, uma gravata vermelha.
Não me animava a exigir mais de uma gravata: meu pai só me permitia, rigoroso, o suficiente. Isso bastava à minha representação — no colégio, no quinzenário, nas seções da Instrutora Viçosense, da Amor e Caridade, que me elegeu para segundo secretário.
Foi então que vi Laura, num exame. Jovino Xavier fez-lhe perguntas comuns; notando-lhe a fortaleza, puxou por ela e declarou a análise sem jaca.
Ouviu os discursos, recebeu os agradecimentos da professora e elogiou em demasia a inteligência e o progresso de Laura. Concordei. Invadiu-me súbita admiração, que em breve se mudou numa espécie de culto.
Mal percebi o rostinho moreno, as tranças negras, os olhos redondos e luminosos. O meu ideal de beleza estava nas donzelas finas, desbotadas, louras, que deslizavam à beira de lagos de folhetim, batidos pelos raios do luar, cruzados por cisnes vagarosos. Laura não possuía o azul e o ouro convencionais, mas dividia períodos, classificava orações com firmeza, trabalho em que as meninas vulgares em geral se espichavam. Imaginei-a compondo histórias curtas, a folhear o dicionário, entregue a ocupações semelhantes às minhas — e aproximei-a; encareci-lhe depois o mérito — e afastei-a. Se ela estivesse próxima, não me seria possível concluir a veneração que se ia maquinando.
Situei-a além dos lagos azuis, considerei-a mais perfeita que as moças do folhetim. Duas vezes por dia, no caminho da escola, retardava o passo diante de uma casa baixa, envesgava o olhar para as janelas, ordinariamente desertas, seguia com alívio e desânimo. Se via a pequena, acovardava-me, balbuciava um cumprimento — e distanciava-me, raspando as paredes, batendo nas ombreiras das portas, sacudindo uma pilha de livros segura por dois cadarços. Andava mergulhado num devaneio. Queria libertar-me, examinar a rua, desviar-me dos transeuntes; a imagem repelida voltava, transformava-se em ideia fixa, agradável e dolorosa.
As inquietações que me enchiam as noites eram quase palpáveis, tinham feições — e cabelos negros me acariciavam o rosto, um sopro me inteiriçava.
Sensações desencontradas, assaltavam-me: ardia-me a cabeça, os dedos tiritavam, frios como gelo. Impossível suportar o contato dos lençóis. Erguia-me sufocado, ia balançar-me devagar na rede. Já não acendia o candeeiro. Temia privar-me do fantasma, recuperar a calma. E a leitura me enfastiava: um mês a arrastar-me no Sonho de Zola, sem nenhum desejo de chegar ao fim, interpretando a narrativa a meu jeito. A bordadeira de paramentos, que se confundia com as santas de Jacques de Voragine, convertia-se em Laura, e eu a contemplava, personagem de romance também, num andaime, junto ao muro de uma catedral. Descia daí, retomava a individualidade, entretinha-me com a garota em longas conversas.
Não conseguiria dizer alto a décima parte daquilo: expressava-me a custo, afligia-me buscando as palavras, baralhava os assuntos e tinha um leve defeito de pronúncia: engolia dd e tt. A voz abafada, cortada de hiatos, inaudível. O discurso que fiz na Amor e Caridade foi um desastre: na vizinhança da tribuna findava o burburinho. Quando Mário Venâncio teimava em reputar-me um embrião de novelista, retraía-me duvidoso: não seria capaz de arranjar um diálogo.
Ali, na escuridão, a língua perra se desligava, perguntas e respostas afluíam claras. Essas entrevistas eram curiosas. Havia em Laura a boca vermelha, o sorriso cândido. Longas pestanas lhe ensombravam os olhos, as varandas da rede mudavam-se em cabeleira negra. Só. Laura não tinha corpo — e aí se originou o meu tormento. Eu suprimira as indecências. Embrulhara com ódio O Cortiço em muitas dobras de papel grosso, amarrara-o em muitas voltas de barbante forte, escondera-o por detrás dos outros volumes, na prateleira inferior da estante. Apontavam no romance passagens cruas — e a contaminação me horrorizava. Do naturalismo apenas conservava O Sonho, e não queria supor, com Mário Venâncio, que a bordadeira de paramentos fosse degenerada.
Certo não existia alma em Laura; indignava-me, porém, reduzi-la a um organismo sujeito as exigências comuns. Livrei-me do apuro fluidificando-a.
Graciliano Ramos, in Infância

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