Aos
onze anos experimentei grave desarranjo. Atravessando uma porta,
choquei no batente, senti dor aguda. Examinei-me, supus que tinha no
peito dois tumores. Nasceram-me pêlos, emagreci — e nos banhos
coletivos do Paraíba envergonhei-me da nudez. Era como se o meu
corpo se tivesse tornado impuro e feio de repente. Percebi nele vagas
exigências, alarmei-me, pela primeira vez me comparei aos homens que
se lavavam no rio.
Desejei
avisar a família, consultar o Dr. Mota, cair de cama. Achava-me,
porém, numa grande perplexidade. Nunca usara franqueza com meus
parentes: não me consentiam expansões. Agora a timidez se
exagerava, o caso me parecia inconfessável. E se me atrevesse a
falar ao Dr. Mota, ele iria dizer que o mal não tinha cura.
Refleti,
afirmei que não estava doente; nem precisava deitar-me. Era ruim
deitar-me. Na loja, no colégio, na agência do correio, distraía-me;
à noite ficava horas pensando maluqueiras, rolava no colchão,
contava as pancadas do relógio da sala, buscava o sono debalde.
Levantava-me, acendia a lâmpada de querosene, pegava um romance,
estirava-me na rede, lia até cansar. O espírito fugia do livro:
necessário reler páginas inteiras. Inquietação inexplicável,
depois meio explicável. O diagnóstico pouco a pouco se revelava,
baseado em pedaços de conversas, lembranças de leituras, frases
ambíguas que de chofre se esclareciam e me davam tremuras.
Aquilo
ia passar: os outros rapazes certamente não viviam em tal
desassossego. Mas a ansiedade aumentava, as horas de insônia
dobravam-se, e de manhã o espelho me exibia olheiras fundas, uma
cara murcha e pálida.
Recompus
gradualmente o vestuário. Dispensava luxos, mas não sairia calçado
em tamancos, metido em roupas de algodão, sem colarinho. Obtive um
terno de casimira, chapéu de feltro, sapatos americanos, uma gravata
vermelha.
Não
me animava a exigir mais de uma gravata: meu pai só me permitia,
rigoroso, o suficiente. Isso bastava à minha representação — no
colégio, no quinzenário, nas seções da Instrutora Viçosense, da
Amor e Caridade, que me elegeu para segundo secretário.
Foi
então que vi Laura, num exame. Jovino Xavier fez-lhe perguntas
comuns; notando-lhe a fortaleza, puxou por ela e declarou a análise
sem jaca.
Ouviu
os discursos, recebeu os agradecimentos da professora e elogiou em
demasia a inteligência e o progresso de Laura. Concordei. Invadiu-me
súbita admiração, que em breve se mudou numa espécie de culto.
Mal
percebi o rostinho moreno, as tranças negras, os olhos redondos e
luminosos. O meu ideal de beleza estava nas donzelas finas,
desbotadas, louras, que deslizavam à beira de lagos de folhetim,
batidos pelos raios do luar, cruzados por cisnes vagarosos. Laura não
possuía o azul e o ouro convencionais, mas dividia períodos,
classificava orações com firmeza, trabalho em que as meninas
vulgares em geral se espichavam. Imaginei-a compondo histórias
curtas, a folhear o dicionário, entregue a ocupações semelhantes
às minhas — e aproximei-a; encareci-lhe depois o mérito — e
afastei-a. Se ela estivesse próxima, não me seria possível
concluir a veneração que se ia maquinando.
Situei-a
além dos lagos azuis, considerei-a mais perfeita que as moças do
folhetim. Duas vezes por dia, no caminho da escola, retardava o passo
diante de uma casa baixa, envesgava o olhar para as janelas,
ordinariamente desertas, seguia com alívio e desânimo. Se via a
pequena, acovardava-me, balbuciava um cumprimento — e
distanciava-me, raspando as paredes, batendo nas ombreiras das
portas, sacudindo uma pilha de livros segura por dois cadarços.
Andava mergulhado num devaneio. Queria libertar-me, examinar a rua,
desviar-me dos transeuntes; a imagem repelida voltava,
transformava-se em ideia fixa, agradável e dolorosa.
As
inquietações que me enchiam as noites eram quase palpáveis, tinham
feições — e cabelos negros me acariciavam o rosto, um sopro me
inteiriçava.
Sensações
desencontradas, assaltavam-me: ardia-me a cabeça, os dedos
tiritavam, frios como gelo. Impossível suportar o contato dos
lençóis. Erguia-me sufocado, ia balançar-me devagar na rede. Já
não acendia o candeeiro. Temia privar-me do fantasma, recuperar a
calma. E a leitura me enfastiava: um mês a arrastar-me no Sonho de
Zola, sem nenhum desejo de chegar ao fim, interpretando a narrativa a
meu jeito. A bordadeira de paramentos, que se confundia com as santas
de Jacques de Voragine, convertia-se em Laura, e eu a contemplava,
personagem de romance também, num andaime, junto ao muro de uma
catedral. Descia daí, retomava a individualidade, entretinha-me com
a garota em longas conversas.
Não
conseguiria dizer alto a décima parte daquilo: expressava-me a
custo, afligia-me buscando as palavras, baralhava os assuntos e tinha
um leve defeito de pronúncia: engolia dd e tt. A voz
abafada, cortada de hiatos, inaudível. O discurso que fiz na Amor e
Caridade foi um desastre: na vizinhança da tribuna findava o
burburinho. Quando Mário Venâncio teimava em reputar-me um embrião
de novelista, retraía-me duvidoso: não seria capaz de arranjar um
diálogo.
Ali,
na escuridão, a língua perra se desligava, perguntas e respostas
afluíam claras. Essas entrevistas eram curiosas. Havia em Laura a
boca vermelha, o sorriso cândido. Longas pestanas lhe ensombravam os
olhos, as varandas da rede mudavam-se em cabeleira negra. Só. Laura
não tinha corpo — e aí se originou o meu tormento. Eu suprimira
as indecências. Embrulhara com ódio O Cortiço em muitas
dobras de papel grosso, amarrara-o em muitas voltas de barbante
forte, escondera-o por detrás dos outros volumes, na prateleira
inferior da estante. Apontavam no romance passagens cruas — e a
contaminação me horrorizava. Do naturalismo apenas conservava O
Sonho, e não queria supor, com Mário Venâncio, que a bordadeira de
paramentos fosse degenerada.
Certo
não existia alma em Laura; indignava-me, porém, reduzi-la a um
organismo sujeito as exigências comuns. Livrei-me do apuro
fluidificando-a.
Graciliano
Ramos, in Infância
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