A
bem dizer sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que
tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de
muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no
corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da
infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês. Digo,
modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais
de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito
lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. Já morreu o
antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso
de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar. Só de uma
regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar
alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração, seja em
compartimento do governo, seja em sala de desembargador. Trato as
partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual
porte, abro o peito:
— Seu
filho de égua, que pensa que é?
Nos
currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os
anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto do primeiro leite.
Como fosse dado a fazer garatujações e desabusado de boca, lá num
inverno dos antigos, Simeão coçou a cabeça e estipulou que o neto
devia ser doutor de lei:
— Esse
menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e
linguarudo.
Então,
para aprimorar tais inclinações de nascença, caí nas garras da
prima Sinhá Azeredo, parenta encalhada na prateleira, uma vez que
casamento não achou por ser magricela e devota. Morava em nação de
chuva — um oco de coruja chamado Sossego, onde só dava presença
bicho penado. De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio de
coruja, asa de caburé, fora outros atrasos dos ermos. Metida nos
livros de devoção, Sinhá Azeredo não tinha outra aptidão do que
ensinar ao parente sabedoria ligada aos anjos do céu. Saía da prima
um cheiro de vela, um bafo de coisa de oratório. De tardinha, sumia
no quarto das devoções enquanto eu ficava na soletração da
cartilha. Sinhá conhecia toda a raça de ventos e para cortar as
maldades e miasmas deles possuía reza da maior força. Por mal dos
meus pecados, o que a prima mais apreciava era conversa de
assombração, de meninos desbatizados que morriam sem o benefício
da água benta ou de herege esquentado em fogueira de frade. Lambia
os beiços de cera e ameaçava:
— Criança
sem religião acaba no fogo dos hereges.
Meus
dias no Sossego findaram quando fui pegado em delito de
sem-vergonhismo em campo de pitangueiras. A parda vasquinha dessa
intimidade de mato ganhou dúzia e meia de bolos e eu recriminação
de fazer um frade de pedra verter lágrima. Simeão, sujeito
severoso, veio do Sobradinho aquilatar o grau de safadeza do neto.
Levei solavanco de orelha, fui comparado aos cachorros dos currais e
por dois dias bem contados fiquei em galé de quarto escuro. No rabo
dessa justiça, meu avô deliberou que eu devia tomar rumo da cidade:
— Na
mão dos padres eu corto os deboches desse desmazelado.
Atrás
da saia da prima Sinhá, lá uma tarde, viajei para o meu novo viver.
Como era tempo de chuva, dormi no balanço do trem. Quando dei conta
do andado, já a cidade apresentava suas casas e um povinho apressado
corria no debaixo dos guarda-chuvas. O homenzinho das passagens,
aparecido na porta do vagão, avisou:
— Campos!
Campos dos Goitacazes!
Anos
passei no bem-bom da rua da Jaca, em chácara de fruteira e casa
avarandada. A prima na devoção dos oratórios e eu na vadiagem, com
enganos de que esmerava no aprendizado das letras e o que menos
Ponciano fazia era aparecer na escola dos frades. Passava semanas em
velhacaria de pular muro atrás dos bicos-de-lacre e coleirinhos. O
avô Simeão, enterrado no sem-fim dos pastos, não podia acompanhar
as capetagens do neto. De mês em mês, assim mesmo na época das
águas, é que pisava calçada da rua da Jaca. Sem tirar a espora,
vinha saber dos meus adiantamentos no ensino dos padres. Mostrava a
Simeão as obrigações de leitura. Ele, quebrado da vista, balangava
a cabeça e dizia folheando a livrarada:
— Muita
instrução, muita instrução.
Nesse
entrementes, eu já graúdo de quinze anos, uma tosse comprida jogou
a prima Sinhá na cama, do qual sofrimento nunca mais teve modos de
sair. Deu de andar encafuada em cobertor, só nariz de fora. Afinou
ainda mais e num agosto de chuva foi embora na asa de um vento
encanado. Uma quinzena vencida, já a parenta bem enterrada e melhor
encomendada em missa de muito altar, ouvi o seu tossir doente no
quarto do oratório. De castiçal em punho, apareci para saber, se
fosse o caso, das necessidades da falecida. Capaz que precisasse de
um carneiro mais aparatoso ou um par de ladainhas em reforço ao seu
bem-estar no céu. Inquiri a visão por duas vezes, como manda a lei
dessas ostentações da noite:
— Que
penar é esse de tão tardias horas?
Não
colhendo resposta, voltei ao gozo dos cobertores e deixei que o
tossir continuasse. Depressinha o acontecido pulou o muro e a
vizinhança ficou sabedora de que Sinhá aparecia no oratório dos
Azeredos Furtados da rua da Jaca. Agregado nenhum, a par da
penitência, teve mais ânimo de perambular pelos corredores passada
a ave-maria. Até que apareceu a velha Francisquinha, mandada dos
confins de Mata-Cavalo, a herança mais pasto adentro de meu avô.
Não sei que reza de rebite apresentou Francisquinha no recinto da
assombração. De pronto, os lamentos perderam as forças e a
penitência deixou de existir, mesmo em noite trevosa de sexta-feira.
Eu, que sou perdido da cabeça por uma brincadeira de deboche, sempre
relembrava, em presença de alguma tosse, que Francisquinha possuía
remédio de grande valimento em incômodo do peito:
— É
um porrete. Melhor do que poção de doutor formado.
Simeão
deu todo poder de mando a Francisquinha, negra de confiança, vinda
dos tempos apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade
calhava a contento. A velha sabia dar ordem na cozinha, governar sala
e saleta. Morava no meio de um bando de negrinhas e afilhadas.
Conhecedora da minha fama de maluco por perna de moça, no dobrar das
nove horas trancava todas elas nos compartimentos mais protegidos de
tramela. Lacrava as portas com esta ponderação severista:
— Cuidado
com o menino!
O
menino era eu, molecote aparentado de palmeira, altão, grosso de
braço, comprido de perna, conhecido das arruaças e rabos de arraia
da rua das Cabeças, tanto que cursava a patente de alferes por
imposição de meu avô, que desejava abrandar meu gênio estouvado:
— Na
tropa de linha ele perde os desaforos, toma tino de gente.
Engano
de Simeão. Era ele desaparecer de volta aos ermos e o neto cair na
pândega dos circos de cavalinhos e portas dos Moulin-Rouge. De letra
eu nem queria sentir o cheiro. O trabalho que Ponciano mais apreciava
era o andar na poeira de um bom rabo de saia, serviço que ainda hoje
é de minha especial inclinação. Assim, por causa de um par de
tranças de uma tal de dona Branca dos Anjos, apareci em Gargaú,
cidadezinha criada e amamentada no areal da costa. Era preciso ter
tutano e preparo de coragem para pisar em escondido tão distanciado.
Um capitão, meu amigo de vadiagem, garantiu que só pela graça de
Nosso Senhor Jesus Cristo eu voltava vivo de lá:
— É
a terra mais de bugre que já vi.
Pelas
prendas e esmerada guarnição traseira da menina Branca dos Anjos lá
cheguei em trenzinho de ferro e lombo de canoa. Vi que o amigo
capitão não foi exagerado no parecer. Gargaú era bicho do mato,
sem nenhuma aptidão para a cortesia. Fechei a cara e procurei a moça
do meu bem-querer. A beleza dela morava em casa avarandada, com um
jardim de bogari que ainda hoje, tantos anos passados e rolados,
remexe em minhas lembranças. Mas foi o pai saber que o neto de
Simeão estava na praça, para arrumar ligeirinho o baú e esconder a
donzelice de dona Branca no fundo do sertão restinguento. Levou a
filha e deixou aviso:
— Esse
Ponciano de Azeredo Furtado é ladrão de moça solteira. Fogo nele.
Gargaú
trancou a porta na minha cara. De noite, por desgraça, o luar da
varanda de dona Branca dos Anjos liberou tudo que foi cheiro de
bogari. Sabia eu que não tinha mais trança de moça no detrás
daquelas paredes, que também olho meu podia dizer adeus para sempre
ao andar de cobra da menina. De coração caído, deliberei bater em
retirada. Na despedida, já dentro da canoa, fiz umas galhardias e
grandezas. Garanti que a ofensa não ia ficar no barro sem resposta:
— Vou
roubar dona Branca no mês que vem, quando não for mais tempo de
lua.
José
Cândido de Carvalho, in O Coronel e o Lobisomem
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