quinta-feira, 30 de julho de 2020

Meu novo viver

A bem dizer sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. Já morreu o antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar. Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração, seja em compartimento do governo, seja em sala de desembargador. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito:
Seu filho de égua, que pensa que é?
Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto do primeiro leite. Como fosse dado a fazer garatujações e desabusado de boca, lá num inverno dos antigos, Simeão coçou a cabeça e estipulou que o neto devia ser doutor de lei:
Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.
Então, para aprimorar tais inclinações de nascença, caí nas garras da prima Sinhá Azeredo, parenta encalhada na prateleira, uma vez que casamento não achou por ser magricela e devota. Morava em nação de chuva — um oco de coruja chamado Sossego, onde só dava presença bicho penado. De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio de coruja, asa de caburé, fora outros atrasos dos ermos. Metida nos livros de devoção, Sinhá Azeredo não tinha outra aptidão do que ensinar ao parente sabedoria ligada aos anjos do céu. Saía da prima um cheiro de vela, um bafo de coisa de oratório. De tardinha, sumia no quarto das devoções enquanto eu ficava na soletração da cartilha. Sinhá conhecia toda a raça de ventos e para cortar as maldades e miasmas deles possuía reza da maior força. Por mal dos meus pecados, o que a prima mais apreciava era conversa de assombração, de meninos desbatizados que morriam sem o benefício da água benta ou de herege esquentado em fogueira de frade. Lambia os beiços de cera e ameaçava:
Criança sem religião acaba no fogo dos hereges.
Meus dias no Sossego findaram quando fui pegado em delito de sem-vergonhismo em campo de pitangueiras. A parda vasquinha dessa intimidade de mato ganhou dúzia e meia de bolos e eu recriminação de fazer um frade de pedra verter lágrima. Simeão, sujeito severoso, veio do Sobradinho aquilatar o grau de safadeza do neto. Levei solavanco de orelha, fui comparado aos cachorros dos currais e por dois dias bem contados fiquei em galé de quarto escuro. No rabo dessa justiça, meu avô deliberou que eu devia tomar rumo da cidade:
Na mão dos padres eu corto os deboches desse desmazelado.
Atrás da saia da prima Sinhá, lá uma tarde, viajei para o meu novo viver. Como era tempo de chuva, dormi no balanço do trem. Quando dei conta do andado, já a cidade apresentava suas casas e um povinho apressado corria no debaixo dos guarda-chuvas. O homenzinho das passagens, aparecido na porta do vagão, avisou:
Campos! Campos dos Goitacazes!
Anos passei no bem-bom da rua da Jaca, em chácara de fruteira e casa avarandada. A prima na devoção dos oratórios e eu na vadiagem, com enganos de que esmerava no aprendizado das letras e o que menos Ponciano fazia era aparecer na escola dos frades. Passava semanas em velhacaria de pular muro atrás dos bicos-de-lacre e coleirinhos. O avô Simeão, enterrado no sem-fim dos pastos, não podia acompanhar as capetagens do neto. De mês em mês, assim mesmo na época das águas, é que pisava calçada da rua da Jaca. Sem tirar a espora, vinha saber dos meus adiantamentos no ensino dos padres. Mostrava a Simeão as obrigações de leitura. Ele, quebrado da vista, balangava a cabeça e dizia folheando a livrarada:
Muita instrução, muita instrução.
Nesse entrementes, eu já graúdo de quinze anos, uma tosse comprida jogou a prima Sinhá na cama, do qual sofrimento nunca mais teve modos de sair. Deu de andar encafuada em cobertor, só nariz de fora. Afinou ainda mais e num agosto de chuva foi embora na asa de um vento encanado. Uma quinzena vencida, já a parenta bem enterrada e melhor encomendada em missa de muito altar, ouvi o seu tossir doente no quarto do oratório. De castiçal em punho, apareci para saber, se fosse o caso, das necessidades da falecida. Capaz que precisasse de um carneiro mais aparatoso ou um par de ladainhas em reforço ao seu bem-estar no céu. Inquiri a visão por duas vezes, como manda a lei dessas ostentações da noite:
Que penar é esse de tão tardias horas?
Não colhendo resposta, voltei ao gozo dos cobertores e deixei que o tossir continuasse. Depressinha o acontecido pulou o muro e a vizinhança ficou sabedora de que Sinhá aparecia no oratório dos Azeredos Furtados da rua da Jaca. Agregado nenhum, a par da penitência, teve mais ânimo de perambular pelos corredores passada a ave-maria. Até que apareceu a velha Francisquinha, mandada dos confins de Mata-Cavalo, a herança mais pasto adentro de meu avô. Não sei que reza de rebite apresentou Francisquinha no recinto da assombração. De pronto, os lamentos perderam as forças e a penitência deixou de existir, mesmo em noite trevosa de sexta-feira. Eu, que sou perdido da cabeça por uma brincadeira de deboche, sempre relembrava, em presença de alguma tosse, que Francisquinha possuía remédio de grande valimento em incômodo do peito:
É um porrete. Melhor do que poção de doutor formado.
Simeão deu todo poder de mando a Francisquinha, negra de confiança, vinda dos tempos apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade calhava a contento. A velha sabia dar ordem na cozinha, governar sala e saleta. Morava no meio de um bando de negrinhas e afilhadas. Conhecedora da minha fama de maluco por perna de moça, no dobrar das nove horas trancava todas elas nos compartimentos mais protegidos de tramela. Lacrava as portas com esta ponderação severista:
Cuidado com o menino!
O menino era eu, molecote aparentado de palmeira, altão, grosso de braço, comprido de perna, conhecido das arruaças e rabos de arraia da rua das Cabeças, tanto que cursava a patente de alferes por imposição de meu avô, que desejava abrandar meu gênio estouvado:
Na tropa de linha ele perde os desaforos, toma tino de gente.
Engano de Simeão. Era ele desaparecer de volta aos ermos e o neto cair na pândega dos circos de cavalinhos e portas dos Moulin-Rouge. De letra eu nem queria sentir o cheiro. O trabalho que Ponciano mais apreciava era o andar na poeira de um bom rabo de saia, serviço que ainda hoje é de minha especial inclinação. Assim, por causa de um par de tranças de uma tal de dona Branca dos Anjos, apareci em Gargaú, cidadezinha criada e amamentada no areal da costa. Era preciso ter tutano e preparo de coragem para pisar em escondido tão distanciado. Um capitão, meu amigo de vadiagem, garantiu que só pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo eu voltava vivo de lá:
É a terra mais de bugre que já vi.
Pelas prendas e esmerada guarnição traseira da menina Branca dos Anjos lá cheguei em trenzinho de ferro e lombo de canoa. Vi que o amigo capitão não foi exagerado no parecer. Gargaú era bicho do mato, sem nenhuma aptidão para a cortesia. Fechei a cara e procurei a moça do meu bem-querer. A beleza dela morava em casa avarandada, com um jardim de bogari que ainda hoje, tantos anos passados e rolados, remexe em minhas lembranças. Mas foi o pai saber que o neto de Simeão estava na praça, para arrumar ligeirinho o baú e esconder a donzelice de dona Branca no fundo do sertão restinguento. Levou a filha e deixou aviso:
Esse Ponciano de Azeredo Furtado é ladrão de moça solteira. Fogo nele.
Gargaú trancou a porta na minha cara. De noite, por desgraça, o luar da varanda de dona Branca dos Anjos liberou tudo que foi cheiro de bogari. Sabia eu que não tinha mais trança de moça no detrás daquelas paredes, que também olho meu podia dizer adeus para sempre ao andar de cobra da menina. De coração caído, deliberei bater em retirada. Na despedida, já dentro da canoa, fiz umas galhardias e grandezas. Garanti que a ofensa não ia ficar no barro sem resposta:
Vou roubar dona Branca no mês que vem, quando não for mais tempo de lua.
José Cândido de Carvalho, in O Coronel e o Lobisomem

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