sexta-feira, 31 de julho de 2020

Olhares e sussurros

Já fui gordo, bastante gordo. Temia me tornar um dos sujeitos mais gordos — não digo do mundo, mas da cidade onde moro, pelo menos. Todas as pessoas têm a sua paranoia, a minha era ser gordo. Por isso fiz a tal cirurgia bariátrica. Hoje como uma azeitona e fico saciado.
Decidi fazer isso quando vi a relação das pessoas mais gordas do mundo. Não vou fazer uma relação dos gordos mais gordos, apenas digo que o mais gordo de todos se chamava... não vou dizer o nome dele, só as iniciais, J.B., e pesava cerca de 600 (seiscentos) quilos. Esse J.B. morreu com um edema generalizado ocasionado pelo excesso de gordura. Quando vi a foto dele fiquei traumatizado. Ele se parecia comigo. À noite sofri um horrível pesadelo: eu era o J.B. e não conseguia subir na balança para me pesar; eu era a pessoa mais gorda do mundo. Acordei tremendo de medo. Então fiz a bariátrica.
Pesquisei para saber quem era o melhor especialista nesse ramo. Era um cirurgião chamado doutor Alpendre.
Doutor Alpendre.”
Alpenddre com dois D, dois D. Com um D apenas é um galpão, uma coisa assim.”
Entendi. Mas eu vim aqui porque quero muito fazer a tal cirurgia bariátrica.”
Quantos quilos o senhor pesa?”
Não sei.”
O doutor — não vou repetir o nome dele — tinha uma balança no consultório.
Subi na balança.
Cento e quarenta quilos. Espera, não, não, 145. Vamos ver sua altura... Vou lhe dizer uma coisa, senhor...”
J.B., quer dizer, meu nome é José.”
Senhor José. Metade das pessoas que fazem redução de estômago volta a engordar parcialmente, e 5% ganha todo o peso de novo. Por isso, não adianta apenas se submeter à cirurgia bariátrica: é preciso mudar de hábitos e manter uma reeducação alimentar para o resto da vida. A operação também deve ser a última alternativa para quem precisa emagrecer — seja por obesidade mórbida ou por doenças associadas ao excesso de peso. Ao contrário do que muita gente pensa, o estômago de indivíduos gordos não é maior nem mais elástico que o dos magros. Outra coisa, pessoas magras podem ser gordas por dentro, devido à gordura que armazenam ao redor dos órgãos vitais, coração, fígado, pâncreas. Essa gordura é mais perigosa do que aquela que se aloja sob a pele. Vou ter que fazer uma série de exames laboratoriais e outros.”
O doutor — não vou repetir o nome dele — estava querendo ganhar mais, como todo mundo, aliás. Mas eu não me incomodei com isso, sou rico, tenho muito dinheiro.
Enfim, o doutor — não vou repetir o nome dele —, depois de todos os exames, disse que eu não era gordo por dentro, só por fora. E a cirurgia foi realizada.
Em pouco tempo emagreci mais da metade do meu peso. Tive que comprar roupas novas, até sapatos; as pessoas pensam que o pé não emagrece, emagrece sim.
Então aconteceu algo perturbador. Antes, quando era gordo, eu entrava em qualquer lugar público e as pessoas não me estranhavam. Quando fiquei magro todo mundo me olhava. Demorei a perceber isso. Por exemplo, quando ia a uma exposição de arte — além de gostar de cinema eu gosto muito de pintura e artes plásticas em geral —, as pessoas me olhavam à sorrelfa e sussurravam entre elas “olha ali aquele caveirinha”.
Mas isso não era o pior. Quando fui para a cama com uma... uma... como diria, uma senhora, uma mulher, enfim, uma pessoa do sexo feminino, eu não consegui realizar a intoductio penis intra vas. Existe vergonha maior? Não, não, não existe. Quando eu era gordo isso jamais aconteceu comigo.
Chega de ser caveirinha, chega. Como disse o doutor — não vou repetir o nome dele —, o estômago dilata.
Amanhã vou comer uma feijoada completa: feijão-preto, carne-seca, lombo, rabo de porco, orelha, chispes, paios, linguiça, um montão de torresmo, toucinho defumado, couve cortada em tirinhas, laranjas descascadas e várias pimentas-malaguetas.
Depois de amanhã, vou comer dois quilos de rabada com polenta feita com o melhor fubá misturado com manteiga e queijo.
Caveirinha é o caralho!
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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