quinta-feira, 19 de julho de 2018

Danado passando pelo tempo


No que o tempo se danou a passar desatinado por ele, só por ele, logo por ele que demorava a entender as coisas direito, Antônio tentou rezar a Ave-Maria, mas não conseguia chegar no agora e na hora de nossa morte, amém, em parte porque estava doidinho das ideias, em parte porque não sabia mais se agora era agora mesmo, se era a hora da sua morte, amém, ou se não era.
Foi então que percebeu que não era o tempo que estava passando danado por ele, ele é que estava danado passando pelo tempo, como quem olha pela janela de um ônibus que está correndo pra frente, e por um minuto apenas, um cochilo, um nó no entendimento, ou algo parecido, tem a impressão de que o ônibus está parado e é a estrada que está correndo pra trás.
A isso devia se dar um nome difícil, mas o nome não importava, importava a comparação.
Ele, Antônio, era o ônibus, enquanto o tempo era a estrada, um correndo, outro parado, só o que se movia era ele, Antônio, logo ele de quem diziam, que sujeito parado, esse povo já gosta de difamar os outros.
De repente, o tempo parou de passar, num solavanco.
Em melhor dizendo, foi ele que, num solavanco, parou de passar de repente pelo tempo.
Do jeito que vinha embalado, parou de vez, assim, sem nenhum aviso, estremecendo todas as ideias do juízo.
Que aquilo não era agora, disso Antônio tinha certeza.
Morte também não era.
Coisa igual ele nunca tinha visto pela única razão de que coisa igual ainda estava por existir lá no tempo dele.
E se agora não era mais agora, pelo menos não era o agora que ele conhecia, nem era a hora da sua morte, amém, se agora era outro tempo, bem ali, na sua frente, que tempo era esse, ora essa?

Foi chegando logo e perguntando que danado de tempo era aquele.
Era ali por dois mil e pouco.
Mais precisamente 25 anos, seis meses e 17 dias depois do dia em que ele tinha partido, por volta do meio-dia.
A praça, a cidade, o povo, o mundo todo estava em festa.
Havia mesmo de chegar em data importante.
Pelo jeito, havia chegado em cima da hora.
E houve quem lhe entregasse presente, houve quem risse, quem chorasse, houve até quem se descabelasse por ver Antônio de perto.
Enquanto os de lá comemoravam sua partida, os daqui comemoravam sua chegada.
Houve quem gritasse, três vivas pro cabra que mudou o mundo, houve quem os três vivas gritasse, soltaram fogos e tudo, e só então Antônio teve certeza de que aquela festa toda era mesmo pra ele.

Ele nunca podia imaginar que ia encontrar o mundo assim sem nenhum defeito.
Estava tudo perfeito, quem diria, bem que Antônio tinha dito que havia de caprichar no presente.
Por mais que jurasse, por Deus Nosso Senhor, quando voltasse pra trás e contasse o que viu, é claro que iam dizer que era mentira.
Quem já viu disso, menino?
Agora ficou doido de vez.
Deixe de conversa.
Mas esse Antônio já inventa.
Se não dissessem, iam pensar, e, se pensassem, até que não era sem motivo.
Quem havia de julgar que seria possível um negócio daqueles?
Adriana Falcão, in A máquina

Nenhum comentário:

Postar um comentário