Apesar
do quadro negro de uma cúpula política e intelectual desvairada e
grossa e de um povo abandonado a seu próprio destino, ainda havia
ali, no país, naquele espantoso verão de 1955, uma considerável
energia vital, uma exaltada alegria de viver, acentuada, em alguns
lugares e num ou noutro indivíduo, ainda mais possuído do gozo
pleno de um extraordinário senso lúdico tropical. Estávamos,
poderíamos nos considerar como estando, num dos últimos redutos do
ser humano. Depois disso viria o fim, não, como todos pensavam, com
um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria, não, como
todos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de
todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem
se amesquinharia, vítima da mesquinharia do seu semelhante, cada dia
menos atento a um gesto de gentileza, a um ato de beleza, a um olhar
de amor desinteressado, a uma palavra dita com uma precisa
propriedade. E tudo começou a ficar densamente escuro, porque tudo
era terrivelmente patrocinado por enlatadores de banha, fabricantes
de chouriço e vendedores de desodorante, de modo que toda a pretensa
graça da vida se dirigia apenas à barriga dos gordos, à tripa dos
porcos, ou, no máximo de finura e elegância, às axilas das damas.
Millôr
Fernandes, in O livro vermelho
dos pensamentos de Millôr
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