quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Ruído de passos

Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
Quando é que passa?
Passa o quê, minha senhora?
A coisa.
Que coisa?
A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
Não importa, minha senhora. É até morrer.
Mas isso é o inferno!
É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? essa falta de vergonha?
E o que é que eu faço? ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
Não há remédio, minha senhora.
E se eu pagasse?
Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
E... e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?
É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.
A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.
Clarice Lispector, in A via crucis do corpo

Nenhum comentário:

Postar um comentário