segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A Virgem coxa

Mwadia procurava as roupas que o rio arrastara quando soltou um grito. O pastor acorreu, esbaforido. Seus olhos se petrificaram. Entre os verdes sombrios, figurava a estátua de uma mulher branca. Era uma Nossa Senhora, mãos postas em centenária prece. As cores sobre a madeira tinham-se lavado, a madeira surgia, aqui e ali, espontânea e nua. O mais estranho, porém, é que a Santa tinha apenas um pé. O outro havia sido decepado.
Já viu, Mwadia? Esta é a Virgem coxa!
O pastor tocou a estátua. Eram aquelas as mãos que vira em sonhos, as mãos da mulher branca que o visitara em Antigamente.
A mulher não comentou. Em vez disso, ela apontou para um arbusto e um novo sobressalto sacudiu o pastor. Madzero tropeçou no passo que não deu. Pois ali se exibiam as ossadas completas de pessoa humana. O pastor recuou como se, ao ganhar distância, lhe viesse mais entendimento. Desviou o rosto: ao contemplar os ossos ele via o seu próprio esqueleto. Estava decidido a retirar-se, de imediato, daquela floresta quando o gesticular desesperado da mulher lhe revelou uma nova descoberta, brilhando entre o capim.
Veja, marido: uma caixa! Vou abrir!
O pastor se apressou a impedir que Mwadia tocasse na velha caixa. Era um baú de madeira já meio apodrecido. Rápido, o pastor tomou as decisões: o esqueleto ficava; a caixa e a estátua seguiriam com eles. O que tinham que fazer era carregar o burro Mbongolo e sair rapidamente da floresta. Porém, no momento em que abraçou a Virgem, o pastor sentiu-se tomado por uma tontura e zonzeou pelo espaço como um bêbado. Mwadia, atónita, olhou o par e se questionou: o marido dançava com a estátua? Mas foram uns tantos passos embriagados e o pastor desabou no chão, não se desfazendo do abraço da Santa. E assim ficaram, um tempo, um sobre o outro, como se namorassem, ele e a imagem. Até que o homem murmurou, sufocado:
Me ajude, mulher!
Mwadia deu-lhe uma mão. Madzero libertou-se da Virgem Maria, mas permaneceu acabrunhado. A mulher estranhou o deplorável estado do marido. Mais a espantou foi a sombra que se anichara nos seus olhos. E foi o aperto de um ciúme que a fez duvidar: como é que a estátua perturbara tanto assim o seu Zero Madzero?
Estou perturbado, sim , admitiu o homem. Espreite o meu ombro.
Mwadia confirmou no ombro do marido a marca que, antes, o curandeiro tinha detectado. Era uma marca redonda, a impressão do seio da Virgem sobre a carne de Zero.
Passou-se um tempo, o pastor ganhou tento e chamou o burro para iniciar a operação de carregamento. Aflita, a esposa encostou-se ao animal e reagiu nervosamente:
Essas coisas não podem sair daqui, Zero!
Deixe-me fazer o que eu sei que tem que ser feito.
Essas coisas pertencem aqui, ninguém as pode tirar.
Pois eu vou levar a Virgem para onde ela pertence.
O melhor é perguntar a Lázaro. Foi ele que nos deu permissão de vir aqui.
Consultemos Lázaro, sim. Mas uma coisa é certa: a Virgem Maria vai para a igreja. E é você que vai levá-la para Vila Longe.
Eu, marido?
Eu é que não posso. Você bem sabe que não posso voltar lá.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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