segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Bandolim

Raimundo da Silva Duprat, o único barão de Duprat, nasceu em Pernambuco e foi prefeito de São Paulo na primeira década do século XIX. Não sei se foi um bom prefeito. Aliás, não é do barão nem do ex-prefeito que quero falar. Mas, para chegar ao assunto, devo mencionar a rua Barão de Duprat, próxima ao formigueiro humano da Vinte e Cinco de Março. Agora que citei a rua, o barão e o político, passo para o brasileiro comum.
Eu o conheci em dezembro de 1998, duas semanas antes da minha primeira noite natalina em São Paulo. Tinha ido à Vinte e Cinco de Março para fazer uma pesquisa de campo sobre imigrantes árabes e armênios que se estabeleceram há mais de um século na famosa rua comercial e seus arredores. Andava pela rua Barão de Duprat quando me deparei com um vendedor de água mineral. Gritava “Ááááágua, água mineral geladinha, mineraaaaal”. O homem suava, os gritos desesperados me deram tanta sede que pedi uma garrafa. Ofereceu duas: que eu escolhesse a mais gelada.
Quanto custa?”
Oitenta centavos.”
E quanto você ganha por cada garrafa?”
Vinte centavos.”
Era um homem de uns cinquenta anos de idade. Vinte centavos por garrafa.
Quantas ele vendia por dia?
Quando Deus tá de bem comigo, mais de trinta.”
Fiquei por ali, na calçada da Barão de Duprat, observando o vendedor de água mineral. Magro e pálido, sua força estava na voz. E a voz significava: vontade de sobreviver. Mas não parecia triste nem derrotado. Quando a polícia se aproximava, ele segurava a caixinha de isopor, pegava um microfone velho e começava a cantar um chorinho. Que voz! Reconheci um dos chorinhos porque é um dos hinos de São Paulo: “Jamais te esquecerei”, do grande compositor e violonista Antônio Rago. Quando a polícia se afastava, ele colocava a caixa de isopor no chão e o canto era substituído pelos gritos.
Perguntei o nome dele.
Nome? Pode me chamar de Bandolim.”
Voltei para a Barão de Duprat nos sábados seguintes, mas não ouvi os gritos nem o chorinho. Terminei de fazer a pesquisa, passou o Natal, o século ficou para trás e perdi Bandolim de vista.
Oito anos depois, no dia 12 de dezembro, quando eu atravessava uma pracinha escondida em Pinheiros, vi um velho sentado na grama. Triste, entre dois violões toscos e belos. Quando me aproximei, reconheci Bandolim. Mas ele não me reconheceu. Em 1998, eu era apenas um transeunte, um dos compradores de uma garrafinha de água mineral. Aquele homem que gritava para sobreviver e depois cantava na presença dos policiais era inconfundível. Envelhecera. Malvestido e mais pobre do que no outro Natal. Mas Bandolim não era mendigo. Ainda não. Ele mesmo fabricava os violões. Havia quatro anos morava nas praças e ruas de São Paulo, catando pontas e placas de madeira, latas e pedaços de arame. Com esse lixo fazia seus violões e os vendia por dez reais. Ou por quinze, quando dava sorte.
Não cantava mais?
Minha voz ficou pequena”, ele disse, sem vontade. “Não canto mais.”
Observei os dois violões, decidido a comprá-los.
Por quê?”
Porque eu tocava e cantava para ela.”
Sua mulher?”
Bandolim me encarou e murmurou:
Minha amada. Ela sumiu…”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Nenhum comentário:

Postar um comentário