Entre os
homens, alguns há que possuem naturalmente um excelente caráter e
que assimilam sem necessidade de longa instrução os princípios
tradicionais, que abraçam a via da moralidade desde o primeiro
momento em que dela ouvem falar; do meio destes é que surgem aqueles
gênios que concitam em si toda a gama de virtudes, que produzem eles
mesmos virtudes. Mas aos outros, àqueles que têm o espírito
embotado, obtuso ou dominado por tradições errôneas, a esses há
que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais ainda: se transmitirmos
os preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles
atingirão o mais alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao
bem; se o fizermos aos outros, os de natureza mais fraca,
ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções erradas. Por
aqui podes ver como são necessários os princípios básicos. Temos
instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e
atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela
indolência podem ser eliminados se primeiro não removermos as
respectivas causas, ou seja, a admiração infundada ou o receio
infundado.
Enquanto
tivermos em nós esses instintos, bem poderás dizer: “estes são
os teus deveres para com teu pai, ou para com os filhos, ou para com
os amigos, ou para com os teus hóspedes” — o espírito de lucro
será sempre uma causa de hesitações. Um homem bem pode saber que
se deve lutar pela pátria, mas o medo convencê-lo-á do contrário;
pode saber que se deve suar em benefício dos amigos até a última
gota de suor, mas o comodismo impedi-lo-á de o fazer; pode saber que
a maior ofensa para uma mulher casada é o marido ter uma amante, mas
a sensualidade o impelirá a arranjar uma. Por conseguinte, de nada
servirá dar conselhos práticos se primeiro se não removem os
obstáculos a que esses conselhos sejam seguidos, do mesmo modo que
de nada serve pormos à vista e ao alcance de alguém armas que não
poderá usar porque lhe não desamarramos primeiro as mãos! Para que
a alma possa pôr em prática os conselhos que lhe damos, devemos
primeiro desamarrá-la! Imaginemos alguém que procede como deve ser:
pode não proceder assim com frequência, pode não proceder assim
com constância, porque não sabe por que motivo procede como deve
ser. Às vezes, por mero acaso ou em virtude da prática, podemos
desenhar linhas retas, mas não temos à mão uma régua que permita
verificar se são realmente retas as linhas que julgamos tais. Um
homem que seja bom por acaso não dá garantias de que será sempre
bom!
Sêneca,
in Cartas a Lucílio
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