terça-feira, 6 de junho de 2017

Al desapontado

Os homens acabaram de comer, depositaram seus pratos sobre a mesa e entornaram pela garganta o último gole de café; depois saíram, o pai e Tom, e o reverendo e Noah e o avô, e foram andando em direção ao caminhão, evitando o monte de móveis, as armações de madeiras das camas, a maquinaria do moinho de vento, o velho arado. Pararam ao lado do caminhão e tocaram as bordas de pinho, novas, do veículo.
Tom abriu o capô e espiou para o grande motor, besuntado de óleo. O pai aproximou-se, e disse:
O teu irmão Al examinou antes da gente comprar e diss’que era bom.
Que é que ele sabe disso? — fez Tom. — Ele é um menino ainda.
Ele trabalhou para uma companhia. Guiou caminhões no ano passado. Já sabe um bocado do ofício. É um rapaz esperto, sabe até ajustar um motor, Al sabe.
Onde é que ele tá agora? — perguntou Tom.
Bem — disse o pai —, ele tá rodando por aí. Já está um rapagão com seus dezesseis anos, só pensa em moças e máquinas. Um moleque dos bons. Já faz uma semana que não vem em casa.
O avô, apalpando o tórax, conseguiu enfiar os botões da camisa azul nas casas da camisa de meia. Seus dedos sentiram que algo não estava certo, mas não se preocupou muito com isso. E continuou a explorar o labirinto das roupas.
Eu era pior — disse. — Era muito pior, um demônio que ocê nem imagina — disse radiante. — Então, tinha uma reunião campestre em Sallisaw quando eu tinha a idade do Al, um pouco mais do que ele. Ele é um menino ainda, não entende de nada, mas eu era um pouco mais velho. Tinha umas quinhentas pessoas nessa reunião e uma porção de moças.
O senhor continua sendo um demônio, avô — disse Tom.
Bom, na verdade sou, mas não sou mais o que era, nem a sombra. Queria estar na Califórnia, onde posso apanhar laranjas quando quiser. Ou então uvas. São coisas que eu nunca tive bastante. Vou pegar um grande cacho de uvas e esfregar ele na cara e deixar que o suco escorra pela barba abaixo.
Onde está o tio John? Onde está a Rosasharn? E a Ruthie e o Winfield? Ninguém falou deles ainda — inquiriu Tom.
É porque ninguém perguntou — falou o pai. — John foi até Sallisaw com um carregamento de mercadoria para vender: uma bomba, ferramentas, galinhas, tudo que a gente trouxe lá da nossa casa. Levou a Ruth e o Winfield com ele. Saiu de madrugada.
Engraçado como eu não encontrei ele — disse Tom.
Bom, foi porque ocê veio pela estrada, não foi? Ele tomou outro caminho, em Cowlington. E a Rosasharn tá morando com o pessoal do Connie. É mesmo, cê nem sabe que a Rosasharn casou com o Connie Rivers. Lembra do Connie? É um sujeito direito. E a Rosasharn tá pra ter criança, daqui uns três, quatro ou cinco meses. Já tá bem inchada. Ela tá muito bem.
Jesus! — exclamou Tom. — Rosasharn era uma criancinha. E agora vai ter um bebê! Quanta coisa aconteceu nesses quatro anos que tive fora! Quando é que o senhor pensa em partir pro Oeste, meu pai?
Bom, a gente tem que vender as coisas primeiro. Se o Al voltar logo, eu acho que a gente pode carregar o caminhão e partir amanhã ou depois. Não temos bastante dinheiro ainda, e o pessoal diz que é perto de três mil quilômetros daqui até a Califórnia. Quanto mais cedo a gente partir, mais certo chega lá. O dinheiro escorre das mãos que nem água. Cê trouxe algum dinheiro?
Pouca coisa. Como foi que o senhor conseguiu dinheiro?
Bom — disse o pai —, a gente vendeu as coisas todas lá de casa e todo mundo andou apanhando algodão na safra, até o avô.
Se foi! — disse o avô.
A gente juntou uns duzentos dólares. O caminhão custou setenta e cinco, e eu e o Al serramos ele pra fazer uma carroceria maior. O Al ia ajeitar as válvulas, mas como andou farreando por aí ainda não pôde fazer. Acho que temos uns cento e cinquenta dólares pra sair daqui. O diabo são esses pneus velhos; não sei se vão aguentar a viagem toda. A gente tem dois estepes que não valem nada. Vamos ter problema nessa viagem, eu tenho certeza.
O sol, quase a pino, queimava como fogo. As sombras da carroceria do caminhão formavam barras negras no solo, e o caminhão tresandava a óleo quente e a panos sujos e engordurados. As poucas galinhas que esgravatavam o chão deixaram o terreiro e procuraram abrigo contra o sol no alpendre das ferramentas. No chiqueiro, os porcos jaziam arquejantes, encostados à cerca, que projetava uma sombra estreita, e de vez em quando grunhiam em um lamento agudo. Os dois cães estavam estirados na poeira vermelha, debaixo do caminhão, a língua gotejante coberta de pó. O pai puxou o chapéu sobre os olhos e acocorou-se no chão. E, como se esta fosse a sua posição natural de observação e pensamento, encarou Tom com ares de crítica, examinando-lhe o boné novo, mas já meio surrado, o terno, os calçados novos.
Cê gastou dinheiro nessas roupas? — perguntou. — São boas demais procê.
Não, eles me deram — disse Tom. — Quando saí, me deram as roupas e a botina. — Pegou o boné e olhou-o com alguma admiração, depois limpou com ele a fronte suarenta e colocou-o descuidadamente, puxando-o pela pala.
O pai observou:
São bonitas essas botinas que eles te deram.
São — concordou Tom. — São muito bonitas, mas não prestam pra se andar num dia quente como o de hoje. — E acocorou-se ao lado do pai.
Noah entrou na conversa, falando arrastadamente:
Quem sabe era melhor a gente botar logo todas as coisas no caminhão... Assim, quando o Al chegar, já...
Eu posso guiar ele, se é isso que vocês querem — disse Tom. — Guiei caminhões em McAlester.
Bom — disse o pai, e seus olhos fixaram-se na estrada. — Se não me engano, aí vem vindo esse moleque pra casa. Olhem só, parece que tá bem cansado.
Tom e o pregador olharam para a estrada. E Al, o farrista, vendo que já tinha sido notado, ergueu os ombros, e veio entrando no terreiro todo empertigado, jactancioso, qual galo de briga, pronto para cantar. Teso, ele se aproximou até reconhecer Tom; aí, mudou a sua expressão de gabola, fanfarrão, a admiração e o respeito surgiram em seus olhos. Toda a fanfarronice caiu por terra. As calças de algodão bem lisas, e um pouco levantadas, para exibirem as botas com saltos, o cinturão de sete centímetros com incrustações de cobre e mesmo as braçadeiras vermelhas sobre a camisa azul e a inclinação boêmia do chapéu não o podiam elevar à envergadura de seu irmão; pois que o seu irmão matara um homem, e ninguém jamais se esqueceria disto. Al sabia que tinha inspirado alguma admiração aos rapazes de sua idade, pelo fato de seu irmão ter assassinado um homem. Ele vira em Sallisaw olharem-no e apontarem-lhe o dedo, dizendo: tá vendo, aquele é o Al; o irmão dele matou um sujeito com uma pá.
E agora Al via, ao aproximar-se humildemente, que seu irmão não era o valentão, o fanfarrão que ele supunha que fosse. Al via os olhos sombrios e pensativos de seu irmão, a calma fria, o rosto duro e inexpressivo, treinado para nada indicar aos guardas da prisão, nem resistência, nem submissão. E instantaneamente Al mudou. Inconscientemente imitou o irmão, e seu rosto bonito tomou uma expressão meditativa; e seus ombros relaxaram. Ele não se lembrava de como Tom era.
Alô — disse Tom. — Puxa, Al, cê tá alto que nem uma árvore. Quase não te reconheço.
Al, com a mão pronta para estendê-la a fim de que o irmão a apertasse, quedou, sugerindo um gesto de homem compenetrado. Tom estendeu a mão e a mão de Al também se estendeu para recebê-la. E isso era uma prova de amor fraternal entre os dois.
Me disseram que ocê era um bicho pra guiar um caminhão — disse Tom.
E Al, sentindo que seu irmão não era um fanfarrão, quis imitá-lo:
Nada disso, conheço muito pouco sobre caminhões — falou.
Ocê farreou um bocado, Al — disse o pai. — Deve estar bem cansado. Bom, cê tem que levar ainda umas coisas pra vender em Sallisaw.
Al olhou para o irmão.
Cê vem comigo? — perguntou, esforçando-se por emprestar um tom de naturalidade à voz.
Não, eu não posso — disse Tom. — Tenho que ajudar aqui. Mas vamos viajar juntos.
Al fingiu dar pouca importância à pergunta:
Cê... cê deu o fora da cadeia, hein, Tom?
Não — disse Tom. — Fui perdoado.
Ah! — E Al ficou um pouco desapontado.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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