quarta-feira, 31 de maio de 2017

Detenção (trecho)


Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal. A cozinheira da Senhora Grubach, a dona da pensão, que lhe levava o pequeno-almoço todos os dias por volta das oito horas, não apareceu desta vez. Isto nunca tinha acontecido. K. aguardou mais um pouco; apoiado na almofada da cama, viu a velha senhora que morava em frente da sua casa a observá-lo com uma curiosidade completamente inacostumada; mas depois, sob o efeito simultâneo da surpresa e da fome, tocou a campainha. Bateram logo à porta e entrou um homem que ele nunca vira naquela casa. Era esbelto e, no entanto, de constituição sólida, trajava uma roupa preta muito justa que, à semelhança das roupas de viagem, possuía diversas pregas, algibeiras, botões e um cinto, em consequência do que, sem que se conseguisse designar-lhe o uso, parecia particularmente prático.
Quem é o senhor? – perguntou K., soerguendo-se na cama.
Mas o homem ignorou a pergunta, como se fosse obrigatório aceitar a sua aparição e respondeu simplesmente:
Chamou alguém?
Anna deve trazer-me o meu pequeno-almoço – disse K. e começou por tentar, conservando o silêncio, graças a um esforço de atenção e de reflexão, descobrir quem podia ser aquele homem.
Mas este último não se expôs muito tempo ao seu olhar; voltou-se para a porta e entreabriu-a para dizer a alguém que, visivelmente, se encontrava mesmo ali atrás:
Ele quer que Anna lhe traga o pequeno-almoço.
Um riso breve ecoou então na sala contígua; ao ouvi-lo, ficava-se com a certeza de que várias pessoas tinham participado nele. Embora o desconhecido não pudesse revelar assim nada que ele não soubesse já, insistiu em dizer a K. num tom de declaração:
É impossível.
Seria a primeira vez – disse K. saltando da cama para enfiar rapidamente as calças. – Vou ver que espécie de gente se encontra aqui ao lado, e como é que a Senhora Grubach me vai explicar este incômodo.
Para dizer a verdade, ocorreu-lhe logo ao espírito que não deveria ter dito isto em voz alta, e que reconhecia assim de certo modo um direito de olhar ao desconhecido; mas isto não lhe parecia agora muito importante. No entanto, foi assim que este se apercebeu das suas intenções, porque disse:
Não prefere permanecer aqui?
Não quero permanecer aqui nem que o senhor me dirija a palavra, enquanto não se tiver apresentado.
Foi com boa intenção – disse o desconhecido ao mesmo tempo que abria a porta.
Na sala contígua, onde K. entrou mais devagar do que desejava, tudo parecia, à primeira vista, exatamente como na véspera à noite. Era o salão da Senhora Grubach, talvez houvesse hoje naquela divisão sobrecarregada de móveis, de napperons, de porcelanas e de fotografias, um pouco mais de espaço do que habitualmente, mas não se dava por isso imediatamente, ainda menos porque a diferença principal resultava da presença de um homem sentado próximo da janela aberta, com um livro, e que erguia agora os olhos.
Deveria ter permanecido no seu quarto! Franz não lho disse?
Sim, e o que é que o senhor quer? – replicou K., cujo olhar se desviou do recém-chegado para o denominado Franz, que tinha ficado no limiar da porta, regressando, depois, novamente ao outro.
Através da janela aberta, ainda se avistava a velha senhora que, com uma curiosidade deveras senil, se havia aproximado da janela, agora mesmo em frente, para continuar a observar tudo.
Vou dizer à Senhora Grubach... – principiou K., parecendo fugir à influência dos dois homens, todavia a boa distância dele, e quis avançar.
Não – disse o homem próximo da janela, atirando o livro para cima de uma mesa e levantando-se. – O senhor não tem o direito de ir-se embora, porque está detido.
Tem todo o ar disso – retorquiu K. – Mas então porquê? – perguntou em seguida.
Não fomos encarregados de lho dizer. Vá para o seu quarto e espere. O processo judicial acaba de ser instaurado, e saberá tudo na altura oportuna. Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente. Mas espero que ninguém, exceto Franz, me ouça, e aliás também ele o trata simpaticamente, à revelia do regulamento. Se continuar a ter tanta sorte como para a designação dos seus guardas, pode ficar sossegado.
K. queria sentar-se, mas reparou agora que nada mais havia na sala, além da cadeira perto da janela.
Em breve compreenderá quanto tudo isto é verdadeiro – disse Franz avançando na sua direção ao mesmo tempo que o outro homem.
Este último, em particular, era nitidamente mais alto do que K. e não parava de bater-lhe no ombro. Ambos examinaram a camisa de noite de K. e disseram que teria agora de usar uma muito menos delicada, mas que eles guardariam aquela com todo o resto da sua roupa, e lha devolveriam se o seu caso terminasse bem.
Mais vale dar-nos as suas coisas do que deixá-las no depósito – disseram eles –, porque no depósito muitas vezes desaparecem e, além disso, vendem todas as coisas decorrido um certo tempo, sem se preocuparem que o respectivo processo esteja ou não concluído. E como estes processos se eternizam, sobretudo nestes últimos tempos! Claro que acabará por receber do depósito o produto da venda, mas por um lado esta importância é já mínima em si, porque no momento da venda não é o montante da oferta que é determinante mas o do suborno; por outro lado, a experiência mostra que o produto destas vendas diminui ao passar de mão em mão e ao longo dos anos.
K. não prestou muita atenção a este discurso; ligava pouco valor ao direito que era talvez ainda o seu de dispor das suas coisas; interessava-lhe muito mais obter esclarecimentos acerca da sua situação; mas na presença daquela gente nem sequer podia refletir, a barriga do segundo guarda – porque só podiam ser guardas – empurrava-o constantemente, quase de modo amigável; contudo, quando erguia os olhos, avistava um rosto muitíssimo mal adequado àquele corpo rechonchudo: seco, ossudo, nariz forte, torcido de um lado, e que trocava por cima dele sinais de conivência com o outro guarda. Que espécie de gente era então esta? De que falavam? A que administração pertenciam? K. vivia no entanto num estado regido pelo Direito, a paz reinava em todo o lado, todas as leis estavam em vigor, quem ousava invadir-lhe a casa? Tinha sempre tendência para levar as coisas de ânimo leve, tanto quanto possível, para só acreditar no pior quando o pior acontecia, para não tomar nenhuma precaução relativamente ao futuro, mesmo quando estava cercado de ameaças. Mas aqui, esta atitude não lhe parecia ser a adequada; claro que se podia considerar este caso como uma brincadeira, uma brincadeira grosseira que, por motivos desconhecidos, talvez porque hoje era o dia do seu trigésimo aniversário, os seus colegas do banco lhe tinham feito, era possível, claro: talvez lhe bastasse rir de certa maneira na cara dos guardas, e eles ririam com ele, talvez fossem homens de recados da esquina da rua, tinham um pouco o ar disso – contudo, quase desde o instante em que avistara o guarda Franz, decidira firmemente não desperdiçar a mínima vantagem que pudesse ter sobre esta gente. O risco de que, depois, dissessem que ele não tinha compreendido a brincadeira, era totalmente desinteressante do seu ponto de vista; em contrapartida – sem que, aliás, tivesse por hábito extrair a lição das suas experiências –, recordava-se de certos casos, em si sem importância, nos quais, ao contrário dos amigos, havia adotado cientemente uma conduta pouco prudente, sem de modo algum encarar as possíveis consequências, e nos quais fora castigado pelo resultado. Isto não devia voltar a acontecer; em todo o caso, desta vez, se era uma comédia, ora bem, desempenharia nela o seu papel.
Por enquanto ainda estava livre.
Franz Kafka, in O processo

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