sábado, 12 de novembro de 2016

Uma cama real para Sinha Vitória

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Fotograma do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos

Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se com a comparação.
Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - “Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos abrira-lhe uma ferida - e a viagem reaparecera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio. Fabiano era ruim.
- Mal-agradecido.
Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação? Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas dos olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.
Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas de pucumã do teto; Baleia, sob o jirau, coçava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas ideias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.
Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.
Nesse ponto as ideias de Sinha Vitória seguiram outro caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundéu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.
- Ladrona.
Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os ossos.
Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, quesempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas

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