sábado, 12 de novembro de 2016

Olhar de criança

http://pt.wahooart.com/Art.nsf/O/9GZNC5/$File/MauritsCornelisEscher-Puddle.JPG 
Poça D'água, de M. C. Escher 

O senso comum identifica o “infantil” com o “pueril”. Adulto no qual mora uma criança não é digno de confiança. O ideal é o homem maduro, que abandonou as coisas de criança, que trocou o brinquedo pelo trabalho. A psicanálise concorda: o “infantil” é o regressivo, sintoma neurótico a ser analisado.
Na minha psicanálise, os desejos infantis são desejos eternos e divinos. O infantil não é o regressivo: é o eterno, o que sempre foi, o que sempre será, o objeto da saudade e da nostalgia, o objeto perdido que se espera reencontrar no futuro. É dos desejos infantis que surge a poesia. A criança e o poeta falam a mesma língua.
Lá vão pelo caminho a mãe e a criança, que vai sendo arrastada pelo braço — segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela mão. Vão as duas pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo caminho. Pois eu digo que o caminho por que anda a mãe não é o mesmo caminho por que anda a criança. Os olhos da criança vão como borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os lados, tudo é espantoso, tudo é divertido. Pena que a mãe não veja nada do que a criança vê porque seus olhos desaprenderam a arte de ver como quem brinca, ela tem muita pressa, é preciso chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos na criança... Olhando fixamente para o chão, ela procura as pedras no meio do caminho, não por amor ao Drummond, mas para não dar topadas, e procura também as poças d’água, não porque tenha se comovido com o lindo desenho do Escher de nome Poça d’água, uma poça de água suja na qual se refletem o céu azul e os ramos verdes dos pinheiros; ela procura as poças para não sujar o sapato. A pedra do Drummond e a poça de água suja do Escher os adultos não veem, só as crianças e os artistas.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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