"Numa aldeia, alguns camponeses
que se haviam reunidos para ler os Evangelhos foram dispersados pelos guardas. No
domingo seguinte voltaram a se reunir. Então o chefe dos soldados levantou-lhes
um processo e levou-os a julgamento. Após um inquérito feito pelo juiz de
instrução, o substituto redigiu uma ata de acusação, que o tribunal confirmou.
Durante o requisitório foram apresentadas as provas do delito; eram os
Evangelhos. Os camponeses foram deportados.
- É horrível! – Concluiu Nekliudov.
– Será possível que isto é verdade?
- O que é que nisso o surpreende
tanto?
- Tudo. Não falemos já no chefe
dos soldados, mero executor e ordens, mas o substituto que redigiu a ata é um
homem instruído...
- Aí é que está o erro. Estamos acostumados
a creditar que os magistrados são homens modernos, de ideias liberais. Foi assim
noutros tempos, mas agora é tudo diferente. São funcionários e apenas estão
preocupados em que chegue o dia vinte de cada mês para receberem os seus
vencimentos, que gostariam de ver continuamente aumentados. A isto se limitam
os seus princípios. Julgam, acusam e condenam quem quer que seja.
- Mas existe alguma lei que
permita deportar homens só porque se reúnem para ler os Evangelhos?
- Não só a lei permite
deportá-los, mas até condená-los a trabalhos forçados quando se prove que se
atreveram a comentar os Evangelhos de maneira diferente daquela que está
estabelecida, pois isso constitui uma crítica ao comentário oficial. Ora, o
artigo cento e noventa e seis pune com desterro o ultraje à fé ortodoxa.
- Isso não é possível!
- Afirmo-lho. Digo a todo momento
aos senhores magistrados – continuou o advogado – que não posso vê-los sem
sentir um profundo sentimento de gratidão para com eles, pois, se eu não estou
na prisão, nem o senhor, nem toda a gente, é à sua benevolência que o devemos.
Quanto a privar qualquer pessoa dos seus direitos civis e a deportá-la para um
lugar mais ou menos longínquo, não há nada mais fácil.
- Sendo assim, se tudo depende da
disposição do procurador ou das pessoas suscetíveis de aplicar ou não a lei,
para que servem os tribunais?
O
advogado soltou uma gargalhada."
Leon Tolstoi, in Ressurreição