sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Uma crítica ao comentário oficial

"Numa aldeia, alguns camponeses que se haviam reunidos para ler os Evangelhos foram dispersados pelos guardas. No domingo seguinte voltaram a se reunir. Então o chefe dos soldados levantou-lhes um processo e levou-os a julgamento. Após um inquérito feito pelo juiz de instrução, o substituto redigiu uma ata de acusação, que o tribunal confirmou. Durante o requisitório foram apresentadas as provas do delito; eram os Evangelhos. Os camponeses foram deportados.
- É horrível! – Concluiu Nekliudov. – Será possível que isto é verdade?
- O que é que nisso o surpreende tanto?
- Tudo. Não falemos já no chefe dos soldados, mero executor e ordens, mas o substituto que redigiu a ata é um homem instruído...
- Aí é que está o erro. Estamos acostumados a creditar que os magistrados são homens modernos, de ideias liberais. Foi assim noutros tempos, mas agora é tudo diferente. São funcionários e apenas estão preocupados em que chegue o dia vinte de cada mês para receberem os seus vencimentos, que gostariam de ver continuamente aumentados. A isto se limitam os seus princípios. Julgam, acusam e condenam quem quer que seja.
- Mas existe alguma lei que permita deportar homens só porque se reúnem para ler os Evangelhos?
- Não só a lei permite deportá-los, mas até condená-los a trabalhos forçados quando se prove que se atreveram a comentar os Evangelhos de maneira diferente daquela que está estabelecida, pois isso constitui uma crítica ao comentário oficial. Ora, o artigo cento e noventa e seis pune com desterro o ultraje à fé ortodoxa.
- Isso não é possível!
- Afirmo-lho. Digo a todo momento aos senhores magistrados – continuou o advogado – que não posso vê-los sem sentir um profundo sentimento de gratidão para com eles, pois, se eu não estou na prisão, nem o senhor, nem toda a gente, é à sua benevolência que o devemos. Quanto a privar qualquer pessoa dos seus direitos civis e a deportá-la para um lugar mais ou menos longínquo, não há nada mais fácil.
- Sendo assim, se tudo depende da disposição do procurador ou das pessoas suscetíveis de aplicar ou não a lei, para que servem os tribunais?
O advogado soltou uma gargalhada."
Leon Tolstoi, in Ressurreição

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