segunda-feira, 31 de março de 2025

Enraizado


O velho recebe
Seu trigésimo bisneto.
Enraizado está.

老人が受け取る
彼の歳の誕生日。
根付いています。

Elilson José Batista, em O Sol dá têmpera à espada-de-são-jorge

Vontade de içar a bandeira branca

4 de Setembro

Às vezes, entra-me a vontade de içar a bandeira branca, subir às ameias e dizer: “Rendo-me.” Não que eu me veja como uma fortaleza, bem pelo contrário, mas sei, como se ela fosse ou nela estivesse, que me andam cercando dois cercos: um, já se sabe, é o dos ódios, invejas e mesquinhices que vou aguentando; o outro, que se vai sabendo, é o dos afectos de muitos que me leem, e esse é o que me derrota. Se este tempo da minha vida tivesse de levar um título, bem poderia ser o do filme de Pedro Almodovar: “Que fiz eu para merecer isto?” Dir-me-ão os mais simpáticos: “Bom, alguma coisa fizeste...” Mas isso, uns quantos livros, valerá tanto que mereça a quadra que me foi dedicada por um pastor de ovelhas (seiscentas parece que tem o rebanho) do Alentejo? Esta, lida ontem na Festa do Avante! e que reza assim:

Tem em conta a luz da mente.
Cada um é como é.
E não pode ser toda a gente
Aquilo que cada um é.

E, como se não fosse bastante, como se não transbordasse já, estava eu depois a assinar livros (três horas ininterruptas de dedicatórias...), aproximam-se duas pessoas, marido e mulher, que colocam diante de mim, com o livro que tinham comprado, um caderninho, um corta-papel e uma nota onde um e outro estavam explicados... O livrinho, feito de papel de sacas de cimento, havia sido escrito por Silvino Leitão Fernandes Costa no campo de concentração do Tarrafal e estava dedicado nestes termos: “Ofereço, ao camarada e amigo T., como prova de consideração.” “T.” era a abreviatura de Teixeira, apelido do homem que estava na minha frente, de seu nome completo José de Sousa Teixeira, preso também, como ele, no Tarrafal. Quanto ao corta-papel, fizera-o Hermínio Martins, ex-marinheiro de um dos barcos que se revoltaram em 8 de Setembro de 1936. Foi ajudante de serralharia do Bento António Gonçalves e morreu antes do 25 de Abril, num sanatório da metrópole. Pensei que tudo isto estava simplesmente a ser-me mostrado, e, ao devolver o livro assinado, restituí também os objectos. Que não, disseram-me, que eram para mim, como lembrança e prova de amizade... Imagine-se como fiquei eu. Agradeci como pude, rodeado pelas dezenas de pessoas que esperavam a sua vez para me pedirem uma assinatura e, com palavras ou sem elas, dizerem que me querem bem.
O livrinho tem dois títulos e compõe-se de quatro partes. O primeiro título, na capa, é “O que será? ...”, o segundo título, na folha seguinte, anuncia “Coisas da vida e próprias dos homens”. A primeira parte transcrevo-a hoje, as outras nos próximos dias (é o mínimo que posso fazer em sinal de gratidão e para que não se perca — se algum dia estes cadernos vierem a ser publicados — a lembrança de um conflito entre amigos e a sua algo extraordinária resolução). Actualizo a ortografia e a pontuação:

Os livros são coisas preciosas tanto por aquilo que dizem como pelo esforço de raciocínio necessário para os fazer.
Depois de feitos, servem de auxílio ao desenvolvimento cerebral do homem.
Conclui-se, pois, que é nos livros onde nós aprendemos tudo quanto desejamos. Tudo depende daquilo que mais nos interessar.
São ainda eles que trazem até nós, duma forma concreta e abreviada, toda a experiência vivida pelos nossos antepassados, da qual nos servimos e serviremos sempre para encarar o futuro.
Quando possuímos um ou mais livros, significa isso que se encontram ao nosso dispor e certamente lê-los-emos tantas quantas vezes quisermos ou necessitarmos para a compreensão do sentido que encerram.
Entretanto, mesmo àqueles que às vezes lemos, embora o seu conteúdo pouco nos interesse, — quer dizer, romances de 4.50 a dúzia, ou coisa semelhante, — alguma coisa nos fica gravada na mente, apesar disso.
Todos nós sabemos que é verdade tal facto.
Bem, mas já vai sendo tempo de mudar de “disco”. “O meu objectivo não é falar sobre livros. Nem sequer fazê-los ou ainda discutir.
Até aqui, simplesmente, pretendo salientar o valor das coisas escritas.
Porém, para melhor concretização, farei um paralelo entre a escrita e a palavra.
Supõe que eu percebo de electricidade a “Potes” e estive durante duas horas a falar-te do assunto. De certo não poderias ter apreendido tudo quanto disse. Mas se escrevesse ficaria ao teu alcance o assunto e dar-lhe-ias as voltas que precisasses.
Agora dirás tu:
“— Mas a que propósito vem isto, não me dizem?
Depois acrescentarás:
Sempre há cada maduro!...
Que mal fiz eu?...
Calma... o resto vai já a seguir.”

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

Um nome a zelar | Seu Pereira e Coletivo 401

Perdedor, vencedor

O perdedor cumprimentou o vencedor. Apertaram-se as mãos por cima da rede. Depois foram para o vestiário, lado a lado. No vestiário, enquanto tiravam a roupa, o perdedor apontou para a raquete do outro e comentou, sorrindo:
Também, com essa raquete…
Era uma raquete importada, último tipo. Muito melhor do que a do perdedor. O vencedor também sorriu, mas não disse nada. Começou a descalçar os tênis. O perdedor comentou, ainda sorrindo:
Também, com esses tênis…
O vencedor quieto. Também sorrindo. Os dois ficaram nus e entraram no chuveiro. O perdedor examinou o vencedor e comentou:
Também, com esse físico…
O vencedor perdeu a paciência.
Olha aqui — disse. — Você poderia ter um físico igual ao meu, se se cuidasse. Se perdesse essa barriga. Você tem dinheiro, senão não seria sócio deste clube. Pode comprar uma raquete igual à minha e tênis melhores do que os meus. Mas sabe de uma coisa? Não é equipamento que ganha jogo. É a pessoa. É a aplicação, a vontade de vencer, a atitude. E você não tem uma atitude de vencedor. Prefere atribuir sua derrota à minha raquete, aos meus tênis, ao meu físico, a tudo menos a você mesmo. Se parasse de admirar tudo que é meu e mudasse de atitude, você também poderia ser um vencedor, apesar dessa barriga.
O perdedor ficou em silêncio por alguns segundos, depois disse:
Também, com essa linha de raciocínio…

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

Canto XII – Polícia e ladrão


Parece criança, Nando. Esquece essa arma, vamos conversar. Antes do pessoal chegar. O pessoal já vem. Eu aviso para a sua mãe que tudo acabou bem.
Esse tiro na perna não foi nada. Não adianta ser teimoso, cara. Lembra? Quando a gente montava em cavalo de vassoura. Voava do telhado. Entrava dentro do quadrado da escada. Ali, a gente guiava o nosso carro. Dentro da escada, entre os degraus da escada, lembra?
Por favor, deixa essa arma largada, vamos conversar. Me ajuda a lembrar: o dia que a gente foi roubar a dona da padaria. Era muita chata a dona da padaria, por isso a gente foi lá.
Era noitinha. Você sabia como entrar na padaria porque o seu tio trabalhava de confeiteiro, lembra? Os bolos que ele fazia e que a gente comia? Até que desconfiaram que ele tava fazendo bolo para bandido. Esconder 38 na rosquinha de coco. Seu tio quase foi preso, coitado. Que molecagem, Lembra? Que assalto!
A gente conseguiu entrar pela garagem, me parece. A gente chupou picolé, comeu bolachas Maria. A gente tomou guaraná e mascou chiclete. A gente nem queria sair mais de lá. A gente pegou moeda. Tudo porque a gente não gostava da dona da padaria. Ela sempre dizia que a gente roubava alguma coisa: um pirulito. Bala na maior cara dura.
A gente não tinha ainda essa cara dura que ela dizia, não tinha. Por isso que você teve a ideia da gente virar ladrão de verdade. E ir à padaria, no outro dia, só para olhar o desespero da broaca. Lembra? Serviço de gente grande, ela nem desconfiaria. A gente entrou de máscara. Feita de jornal. E a gente levou um apito junto. Para que era mesmo o apito, Nando?
Fala, Nando. Escuta: a gente é amigo desde muito tempo e não pode ficar aqui, brigando. Você é teimoso demais, Nando. Sempre foi. Lembra?
Quando pulava na lama só para fugir da escola. O seu negócio era jogar bola. Eu nunca fui bom de bola. Gostava era de te ver jogando e driblando. Eu torcia por você, Nando, sempre torci. Todo mundo tinha medo de você em campo. Não sei. As coisas se complicaram depois que seu pai morreu. Depois que incendiaram o barracão. Bateram na sua mãe. Corri lá para ver se você escapou do fogo.
Ali, sim, você ganhou uma cara dura, de demônio. Saindo do fogo e chorando. Chorando muito. Alguma coisa fumaçando no peito, sei lá. Eu entendo.
Eu só não entendo a gente perdendo tempo com essa intriga. Daqui a pouco o pessoal chega, Nando. Porra, há quanto tempo! Não era bem assim que eu queria te encontrar. Os dois aqui, deitados, como naquele dia. Logo depois do roubo da padaria. A gente ficou em cima da laje, de barriga cheia, imaginando como seria a vida em outros planetas. Lembra? Se existiam favelas em outros planetas. Se era legal morar na Lua.
Porra, Nando, não complica. Parece criança. Já falei para você esquecer, não adianta se arrastar na grama. Já perdemos muito sangue, Nando. Para que apontar essa arma para a minha cabeça, amigo? Não aponta.

Marcelino Freire, em Contos Negreiros

De velhas e novas tábuas

6.

Ó meus irmãos, quem é primogênito sempre será sacrificado.124 Mas agora somos nós os primogênitos.
Todos nós sangramos em secretos altares de sacrifícios, todos nós assamos e ardemos em honra de velhos ídolos.
O que temos de melhor ainda é jovem: isso atrai os velhos paladares. Nossa carne é tenra, nossa pele é somente uma pele de cordeiro: — como não atrairíamos velhos sacerdotes de ídolos?
Dentro de nós mesmos ainda habita ele, o velho sacerdote de ídolos, que assa para banquete o que temos de melhor. Ah, meus irmãos, como não seriam vítimas os primogênitos?
Mas assim é nossa maneira; e eu amo aqueles que não querem preservar a si mesmos. Amo com todo o meu amor aqueles que declinam: pois eles passam para o outro lado. —

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

domingo, 30 de março de 2025

Obviedades

 

Desventurada Família Humana

Li em alguns ensaios sobre minha poesia que a permanência no Extremo Oriente influiu em determinados aspectos de minha obra, especialmente em Residencia en la Tierra. Na verdade, meus únicos versos daquele tempo foram os de Residencia en la Tierra, mas, sem me atrever a sustentá-lo de forma peremptória, digo que isso da influência me parece um equívoco.

Todo o esoterismo filosófico dos países orientais, confrontado com a vida real, se revelava como um subproduto da inquietude, da neurose, da desorientação e do oportunismo ocidentais; quer dizer, da crise de princípios do capitalismo. Na Índia não havia, naquela época, muitos lugares para contemplações do umbigo profundo. Uma vida de brutais exigências materiais, uma condição colonial sedimentada na mais intensa abjeção, milhões de mortos cada dia, de cólera, de varíola, de febres e de fome, organizações feudais desequilibradas por sua imensa população e sua pobreza industrial, imprimiam à vida uma grande ferocidade na qual os reflexos místicos desapareciam.

Quase sempre os núcleos teosóficos eram dirigidos por aventureiros ocidentais, sem faltar americanos do Norte e do Sul. Não resta dúvida que entre eles havia gente de boa-fé, mas a maioria explorava um mercado barato onde se vendiam, a preços altos, amuletos e fetiches exóticos, envoltos em embalagem metafísica. Essa gente enchia a boca com o Dharma e a Poga. Encantava-os a ginástica religiosa, impregnada de vazio e palavrório.

Pablo Neruda, em Confesso que Vivi

Aconteceu na ilha de Cat

Conversa de mulher que diz que vem, mas não vem, e talvez ainda venha, deixa um homem completamente no ora-veja, olhando a cara preta do telefone, sem cabeça para trabalhar nem coragem de sair. Liguei o rádio, coisa que raramente faço. Numa estação qualquer, um sujeito com voz de evangelista se dirigia a mim, querido irmão, e tomava intimidades, dizia que eu estava atolado em pecados, principalmente em concupiscência. Ah, quem me dera! Quem me dera concupiscenciar a esmo nesta sexta-feira chuventa e quase fria. Será que o telefone não vai tocar? Abri a carta de uma leitora. Ela me perguntava se resolver palavras cruzadas era bom para enriquecer o vocabulário. Não sei; também não sei se vale a pena enriquecer o vocabulário, talvez seja melhor a gente reduzi-lo, usar somente poucas palavras e usá-las muito pouco. Mas a carta me deu uma inspiração doentia: matar o tempo com palavras cruzadas. Fui à esquina, comprei três revistinhas especializadas. Quando eu ia chegando de volta, o telefone estava tocando.

Quando consegui abrir a porta e corri para atender, ele parou de tocar; bolas! Peguei um dicionário, entreguei-me de corpo e alma às palavras cruzadas.

Enfrentei cerca de 20 problemas; isto não é vantagem, porque as tais revistinhas trazem no fim, para ajudar a gente, uma lista de palavras difíceis. Estimada leitora: decifrar palavras cruzadas ajuda muito a enriquecer o vocabulário... de decifrador de palavras cruzadas.

Explico-me: as pessoas que fazem palavras cruzadas têm um vocabulário especial, e não apenas um vocabulário como uma História, uma Geografia e todo um tipo de cultura. Para elas as palavras não têm o sentido comum que nós, os leigos, entendemos, mas um sentido especial, cavado no dicionário, de preferência em um dicionário especializado em palavras cruzadas. A princípio a gente acha difícil — antigo navio de combate é ram; arrieira é má; filho de Jacó é Gad; rio da Sibéria é Om; da Polônia é Ros; da Holanda é Aa; afluente do Reno é Aar; 10? letra do alfabeto árabe é ra; medida de Amsterdã para líquidos é aam; medida sueca é só am; e — coisa espantosa! — luz que emana da ponta dos dedos é od; dificílimo, como se vê. Mas não tanto: porque os rios são sempre aqueles mesmos, o cabo do Canadá, Or, a cidade da Caldéia é sempre Ur, a antiga cidade da ilha de Creta é sempre Aso, por mais cretinizante que isto possa parecer. Em matéria de tecidos, tudo o que você precisa saber é que um tecido fino como escumilha chama-se ló; provavelmente você sabe que pedra de moinho é mó, mas esta palavra só aparece nos problemas mais fáceis, nos outros o que se usa é cano de moinho, cal. No terreno da coreografia, não quebre a cabeça: espécie de dança é sempre ril; e porco é sempre to, uma das ilhas Lucaias é exatamente, infalivemente, Cat. Imagino que haja outras Lucaias, mas só aquela é usada, assim como do calendário hebreu só usamos o derradeiro mês, Adar, e de todo o material de guerra antigo dos turcos só enfrentamos uma flecha denominada oc; o único abrigo para o gado é ramada; gato selvagem é marisco; nadar é remar; e folha de palma é ola. Enfim, adquiri preciosos conhecimentos e pensei mesmo em escrever um conto começando assim: “Na ilha de Cat, vestida de ló, ela dançava o ril, e das pontas de seus dedos emanava o od, quando chegou um ram vindo de Or com turcos atirando ocs...” Mas felizmente o telefone tocou.

Rubem Braga, em Recado de primavera

“Os Alquimistas Estão Chegando” (2025), de Jorge Ben Jor

Páscoa

Velhice

é um modo de sentir frio que me assalta

e uma certa acidez.

O modo de um cachorro enrodilhar-se

quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.

Divido o dia em três partes:

a primeira pra olhar retratos,

a segunda pra olhar espelhos,

a última e maior delas, pra chorar.

Eu, que fui loura e lírica,

não estou pictural.

Peço a Deus,

em socorro da minha fraqueza,

abrevie esses dias e me conceda um rosto

de velha mãe cansada, de avó boa,

não me importo. Aspiro mesmo

com impaciência e dor.

Porque sempre há quem diga

no meio da minha alegria:

põe o agasalho’

tens coragem?’

por que não vais de óculos?’

Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,

quero o que desse modo é doce,

o que de mim diga: assim é.

Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,

ganhar uma poesia em pergaminho.

Adélia Prado, em Bagagem

Voltando para casa

 

Nunca vi os corvos saindo da árvore de manhã, mas todo fim de tarde, cerca de meia hora antes de escurecer, eles começam a chegar, voando de todos os cantos da cidade. Talvez alguns deles cumpram regularmente o papel de convocar o bando, descendo dos céus em voos rasantes ao longo de quarteirões a fim de chamar os outros para voltar para casa, ou talvez cada um deles faça um voo ao redor da área onde se encontra para reunir os desgarrados antes de rumar para a árvore. Passei tanto tempo observando que seria de esperar que eu já soubesse a essa altura. Mas só vejo corvos, dezenas deles, virem voando de longe de todas as direções e uns cinco ou seis voando em círculos como sobre o O’Hare, chamando, chamando, e então, numa fração de segundo, tudo fica em silêncio de repente e não se vê mais corvo nenhum. A árvore parece um bordo comum. Não há como você saber que há tantos pássaros lá.

Por acaso, eu estava na minha varanda da frente quando os vi pela primeira vez. Eu tinha acabado de chegar do centro da cidade e estava usando meu tanque de oxigênio portátil, sentada no balanço da varanda para ver a luz do fim da tarde. Normalmente eu me sento na varanda dos fundos, onde a mangueira do meu tanque normal alcança. Às vezes assisto ao noticiário nessa hora ou preparo o jantar. O que quero dizer é que eu poderia facilmente não ter a menor ideia de que aquele bordo fica cheio de corvos ao pôr do sol.

Será que todos vão embora juntos depois, para dormir em alguma outra árvore num ponto mais alto do monte Sanitas? Talvez, porque eu me levanto cedo e costumo ir me sentar perto da janela que dá para o sopé das montanhas e nunca vi os corvos saindo da árvore. No entanto, vejo cervos subindo as colinas do monte Sanitas e de Dakota Ridge e a luz rosada do sol nascente brilhando sobre as rochas. Se há neve e está muito frio, um reflexo avermelhado surge no alto das montanhas, quando os cristais de gelo transformam a cor da manhã num rosa de vitral, neon cor de coral.

Claro, é inverno agora. A árvore está sem folhas e não há corvos. Estou apenas pensando nos corvos. Caminho com dificuldade, então os poucos quarteirões colina acima seriam demais para mim. Eu poderia ir de carro, imagino, como Buster Keaton, que pedia para o chofer levá-lo até o outro lado da rua. Mas acho que estaria escuro demais a esta hora para ver os pássaros dentro da copa da árvore.

Nem sei por que puxei este assunto. As pegas-rabudas brilham com uma cintilação verde-azulada contra a neve. Elas têm um grito autoritário parecido. Claro que eu poderia procurar num livro ou telefonar para alguém para descobrir como são os hábitos noturnos dos corvos, mas o que me incomoda é que eu só reparei neles por acidente. O que mais será que eu deixei passar? Quantas vezes na minha vida eu estive, por assim dizer, na varanda dos fundos, e não na varanda da frente? O que será que me disseram que eu não ouvi? Que amor poderia ter existido que eu não senti?

Essas perguntas são inúteis. Eu só vivi tanto tempo porque deixei meu passado para lá. Fechei a porta para tristeza arrependimento remorso. Se eu os deixar entrar, só uma fresta autocomplacente, zás, a porta vai se escancarar rajadas de dor despedaçando meu coração cegando meus olhos de vergonha quebrando copos e garrafas derrubando jarros estilhaçando janelas tropeçando ensanguentada no açúcar derramado e nos cacos de vidro engasgando aterrorizada até que com um último estremecimento e soluço eu torno a fechar aquela porta pesada. E junto os pedaços mais uma vez.

Talvez não seja uma coisa tão perigosa assim, deixar o passado entrar com o prefácio “E se?”. E se eu tivesse falado com Paul antes de ele ir embora? E se eu tivesse pedido ajuda? E se eu tivesse me casado com H? Sentada aqui, olhando pela janela em direção à árvore onde agora não há galhos nem corvos, as respostas para cada “e se” são estranhamente tranquilizadoras. Eles não poderiam ter acontecido, esse “e se”, aquele “e se”. Tudo de bom ou de ruim que aconteceu na minha vida foi previsível e inevitável, sobretudo as escolhas e ações que garantiram que eu viesse a estar agora absolutamente sozinha.

Mas e se eu voltasse bem lá para trás, para antes de nos mudarmos para a América do Sul? E se o dr. Mock tivesse dito que eu não podia sair do Arizona por um ano, que eu precisava de uma terapia extensa e de ajustes regulares no meu colete, talvez até de uma cirurgia para corrigir minha escoliose? Eu poderia ter me juntado à minha família no ano seguinte. E se eu tivesse ficado morando com os Wilson em Patagonia, Arizona, ido semanalmente ao ortopedista em Tucson, lendo Emma ou Jane Eyre nas viagens quentes de ônibus?

Os Wilson tinham cinco filhos, todos já grandes o bastante para trabalhar na mercearia ou na lanchonete da família. Eu trabalhava antes e depois da escola na lanchonete com Dot e dividia o quarto do sótão com ela. Dot tinha dezessete anos e era a filha mais velha. Já era uma mulher, na verdade. Parecia uma mulher saída de um filme, pelo modo como ela sapecava pó de arroz no rosto, lambuzava os lábios de batom e fumava soltando fumaça pelo nariz. Dormíamos juntas no colchão de palha, nos cobríamos com colchas de retalhos velhas. Aprendi que era melhor não incomodá-la, ficar quietinha, fascinada com os cheiros dela. Ela domava o cabelo ruivo encaracolado com óleo Wildroot, besuntava o rosto com Noxzema à noite e passava sempre perfume Tweed nos pulsos e atrás das orelhas. Cheirava a cigarro, suor, desodorante Mum e ao que eu mais tarde descobriria ser sexo. Nós duas cheirávamos a gordura velha porque fazíamos hambúrgueres e batata frita na lanchonete até a hora de fechar, às dez. Voltávamos para casa a pé, atravessando a rua principal e os trilhos do trem, passando rápido pelo salão Frontier e descendo a rua até a casa dos pais dela. A casa dos Wilson era a mais bonita da cidade. Uma casa grande, de dois andares, branca, com uma cerca de estacas, jardim e gramado. A maioria das casas em Patagonia era pequena e feia. Casas provisórias de cidade mineradora pintadas naquele tom esquisito de caramelo das estações de trem de campos de mineração. A maior parte das pessoas trabalhava no alto da montanha, nas minas de Trench e Flux, das quais meu pai tinha sido superintendente. Agora ele era comprador de minérios no Chile, no Peru e na Bolívia. Ele não queria ir, não queria abandonar as minas, não queria parar de trabalhar em minas. Minha mãe, todo mundo, tinha convencido meu pai a ir. Era uma grande oportunidade e nós ficaríamos muito ricos.

Ele pagava à família Wilson pela minha hospedagem e alimentação, mas todos decidiram que seria bom para o meu caráter que eu trabalhasse como todos os outros filhos. A gente dava um duro danado, principalmente Dot e eu, porque trabalhávamos até tarde e depois acordávamos às cinco da manhã. Abríamos a lanchonete para os três ônibus de mineradores que iam de Nogales para a mina de Trench. Os ônibus chegavam com quinze minutos de intervalo entre um e outro; os mineradores só tinham tempo para tomar um ou dois cafés e comer uns donuts. Eles nos agradeciam e acenavam para nós ao saírem, Hasta luego! Nós terminávamos de lavar a louça e fazíamos sanduíches para comer no almoço. Quando a sra. Wilson chegava para tomar conta da lanchonete, íamos para a escola. Eu ainda estava na escola primária no alto da colina. Dot estava no secundário.

Depois que voltávamos para casa à noite, ela saía de novo, às escondidas, para se encontrar com o namorado, Sextus. Ele morava num rancho em Sonoita, tinha parado de estudar para ajudar o pai. Não sei a que horas ela voltava para casa. Eu pegava no sono assim que encostava a cabeça no travesseiro. Assim que estendia o esqueleto na palha. Adorei a ideia do colchão de palha, como em Heidi. A palha era gostosa e tinha um cheiro gostoso. Eu sempre tinha a impressão de que havia acabado de fechar os olhos quando Dot me sacudia para me acordar. Ela já tinha se lavado ou tomado uma chuveirada e se vestido quando me acordava, penteando e enrolando o cabelo e se maquiando. “O que é que você está olhando? Arrume a cama se não tem mais nada pra fazer.” Ela realmente não gostava de mim, mas eu também não gostava dela, então não ligava. No caminho para a lanchonete, ela repetia sem parar que era melhor eu ficar de bico calado com respeito aos encontros dela com Sextus, o seu pai a mataria se soubesse. Se a cidade inteira já não soubesse dos encontros dela com Sextus, eu teria contado para alguém, não para os seus pais, mas para alguém, só porque ela era muito malvada. Era malvada por princípio. Achava que devia odiar aquela criança que tinham enfiado no quarto dela. A verdade era que a gente se entendia bem de outros jeitos, sorria e dava risada, trabalhava bem em conjunto, picando cebola, preparando refrigerantes, virando hambúrgueres. Nós duas éramos rápidas e eficientes, gostávamos de gente, principalmente dos simpáticos mineradores mexicanos que brincavam e mexiam com a gente de manhã. Depois da escola, estudantes e pessoas da cidade iam para lá, para tomar refrigerantes ou sundaes, para ouvir música na jukebox e jogar na máquina de pinball. Servíamos hambúrgueres, cachorro-quente com chili, queijo quente. Também tínhamos salada de atum, de ovo, de batata e de repolho, que a sra. Wilson fazia. No entanto, o prato mais popular era o chili que a mãe de Willie Torres levava para lá todas as tardes. Chili vermelho no inverno, chili verde com carne de porco no verão. Pilhas de tortilhas, que esquentávamos na grelha.

Uma das razões por que Dot e eu trabalhávamos tanto e tão rápido é que tínhamos um acordo tácito segundo o qual, depois de lavarmos toda a louça e limparmos a grelha, ela sairia pelos fundos com Sextus e eu me encarregaria de atender os poucos fregueses que costumavam pedir café e torta entre nove e dez horas. Basicamente eu fazia minha lição de casa com Willie Torres.

Willie trabalhava até as nove na contrastaria ao lado. Estávamos na mesma série na escola e eu tinha feito amizade com ele lá. Nas manhãs de sábado eu descia com o meu pai de picape para fazer compras e pegar a correspondência para as quatro ou cinco famílias que moravam na montanha, perto da mina de Trench. Depois de fazer todas as compras e guardar tudo na picape, papai passava na constrataria do sr. Wise. Eles tomavam café, eles conversavam sobre minérios, minas, veios? Desculpe, eu não prestava atenção, Sei qu era sobre minérios. Willie era uma pessoa diferente na constrataria. Ele era tímido na escola, tinha vindo do México com oito anos e, embora fosse mais inteligente que a sra. Boosinger, tinha um pouco de dificuldade de ler e escrever. No primeiro cartão de Valentine’s Day que me deu, Willie escreveu “Seja minha prinseza”. No entanto, ninguém caçoava dele como caçoavam de mim e do meu colete ortopédico, gritando “Madeira!” quando eu entrava na sala, porque eu era muito alta. Ele também era alto; tinha cara de índio, maçãs do rosto salientes e olhos escuros. Usava roupas limpas, mas surradas e pequenas demais para ele; seu cabelo preto era comprido e desigual, cortado pela mãe. Quando li O morro dos ventos uivantes, Heathcliff era como Willie, indômito e corajoso.

Na contrastaria ele parecia saber tudo. Queria ser geólogo quando crescesse. Ele me ensinou a identificar ouro, ouro de tolo e prata. Naquele primeiro dia, meu pai perguntou sobre o que estávamos conversando. Eu mostrei a ele o que eu tinha aprendido. “Isto é cobre. Quartzo. Chumbo. Zinco.”

Que maravilha!”, ele disse, realmente satisfeito. No carro, voltando para casa, eu tive uma aula de geologia sobre todo o terreno até a mina.

Em outros sábados, Willie me mostrou mais pedras. “Esta aqui é mica. Esta é xisto, essa é uma pedra calcária.” Ele me explicou os mapas de mineração. Remexíamos em caixas cheias de fósseis. Ele e o sr. Wise costumavam sair à procura de fósseis. “Ei, olha esse! Olha só essa folha!” Eu não percebia que amava Willie porque a nossa proximidade era muito tranquila, nada tinha a ver com o amor de que as meninas viviam falando, nada tinha a ver com romance ou paixonites ou iih a fulana gosta do beltrano.

Na lanchonete, fechávamos as persianas, sentávamos em frente ao balcão e ficávamos fazendo lição de casa durante aquela última hora, tomando sundaes com calda quente de chocolate. Willie sabia fazer um macete na jukebox para que ela ficasse tocando “Slow Boat to China”, “Cry” e “Texarkana Baby” sem parar. Ele era bom em álgebra e aritmética e eu era boa com palavras, então ajudávamos um ao outro. Nós nos encostávamos um no outro, nossas pernas enroscadas em volta dos bancos. Ele até passava o braço em volta da parte do meu colete que ficava para fora e eu não me importava. Normalmente, se eu percebia que alguém tinha notado o colete debaixo das minhas roupas, eu já passava mal de tanta vergonha.

Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos

sábado, 29 de março de 2025

O Entendedor Anônimo

 

Eu o vi. Nós nos vimos

Quando Carl morreu, muitos me perguntaram – e ainda perguntam – se, nos últimos momentos, ele mudou de ideia e passou a acreditar em algo além desta vida. Se, de alguma forma, nos reencontraríamos depois da morte. Mas Carl enfrentou seu fim com a mesma coragem serena com que viveu: sem ilusões, sem se agarrar a esperanças vazias. A verdadeira tragédia era sabermos que nunca mais nos veríamos.

Mas também havia beleza nisso. Porque enquanto estivemos juntos, por quase vinte anos, nunca subestimamos a brevidade e a preciosidade da vida. Nunca fingimos que a morte era outra coisa senão uma despedida definitiva. Cada instante que dividimos foi um milagre – não no sentido sobrenatural, mas no mais puro e assombroso sentido do acaso.

Que sorte imensa termos nos encontrado, como Carl escreveu em Cosmos, ‘na vastidão do espaço e na vastidão do tempo’. Que privilégio termos compartilhado nossa existência por duas décadas. É isso que me sustenta.

Não me iludo esperando revê-lo um dia. Mas eu o vi. Nós nos vimos. Nós nos encontramos no universo – e isso foi o suficiente. Isso foi maravilhoso.”

Ann Druyan, esposa de Carl Sagan

Meu coração desnudo II


 

4.

Bobagens de Girardin

Temos o hábito de pegar o touro pelos chifres. Peguemos então o discurso pelo fim (7 de novembro de 1863).

Assim, Girardin julga que os chifres dos touros estão plantados em seu traseiro. Confunde os chifres com a cauda.

Que, antes de imitar os Ptolomeus do jornalismo francês, os jornalistas belgas se deem ao trabalho de refletir sobre a questão que estudo há trinta anos em todos os seus aspectos, como o provará o volume que sairá em breve com este título: questões de imprensa; que não se apressem em tratar como soberanamente ridícula* uma opinião que é tão verdadeira quanto é verdadeiro que a Terra gira e que o Sol não gira.”

Émile de Girardin

*“Há pessoas que pretendem que nada impede de acreditar que, sendo o céu imóvel, é a Terra que gira em torno de seu eixo. Mas essas pessoas não sentem, em virtude do que se passa em torno de nós, o quanto sua opinião é soberanamente ridícula (πάνυ γελοιότατον).”

Ptolomeu, Almagesto, livro i, cap. vi

Et habet mea mentrita meatum.

Girardin

Charles Baudelaire, em Prosa – Diários

1561 – Vila dos Bergantins

A primeira Independência da América

Foi coroado ontem. Os macacos apareceram, curiosos, entre as árvores. Da boca de Fernando de Guzmán escorria suco de fruta-de-conde e havia sóis em seus olhos. Um após outro, os soldados se ajoelharam frente ao trono de madeira e palha, beijaram a mão do eleito e juraram obediência. Depois assinaram a ata, com nome ou cruz, todos os que não eram mulheres, nem criados, nem índios, ou negros. O escrivão deu fé e testemunho e proclamada ficou a independência.

Os buscadores do El Dorado, perdidos no meio da selva, têm agora o seu próprio monarca. Nada os une à Espanha, a não ser o rancor. Negaram vassalagem ao rei do outro lado do mar:

Não o conheço! – gritou ontem Lope de Aguirre, puro osso e cólera, erguendo sua espada coberta de mofo. – Não o conheço, nem quero conhecê-lo, ou tê-lo, ou obedecê-lo!

Na choça maior da aldeia se instala a corte. À luz de um candelabro, o príncipe Fernando come incessantes broas de mandioca regadas de mel. É servido por seus pajens; entre broa e broa, dá ordens a seus secretários, dita decretos aos escrivãos e concede audiências e mercês. O tesoureiro do reino, o capelão, o mordomo-mor e o mestre-sala vestem gibões em farrapos e têm as mãos inchadas e os lábios partidos. O chefe de campo é Lope de Aguirre, manco, caolho, quase anão, pele queimada, que pelas noites conspira e durante o dia dirige a construção dos bergantins.

Soam os golpes de machados e de martelos. As correntes do Amazonas despedaçaram as naus, mas já duas novas quilhas se erguem na areia. A selva oferece boa madeira. Com o couro dos cavalos, fizeram foles; das ferraduras saíram pregos, pernos e pinças.

Atormentados pelos mosquitos e pernilongos, envolvidos nos vapores da umidade e da febre, os homens esperam que os barcos cresçam. Comem ervas e carne de urubu, sem sal. Já não sobram cães ou cavalos e os anzóis não trazem mais que barro e algas podres; mas ninguém no acampamento duvida que chegou a hora da vingança. Saíram há meses do Peru, em busca do lago onde, conta a lenda, há ídolos de ouro maciço grandes como rapazes, e ao Peru querem regressar, agora, em pé de guerra. Não vão perder nem um dia mais perseguindo a terra da promissão, porque entenderam que já a conhecem e estão fartos de maldizer seu azar. Navegarão o Amazonas, sairão ao oceano, ocuparão a ilha Margarita, invadirão a Venezuela e o Panamá.

Os que dormem, sonham com a prata de Potosí. Aguirre, que jamais fecha o olho que lhe resta, vê essa prata acordado.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Barbra Streisand / Cry Me A River

A Qualidade de Vida Ataca novamente

Claro, eu sabia que não ia durar muito. Há bastante tempo minha qualidade de vida tem sido de baixíssimo nível e, como se sabe, é impossível sobreviver hoje em dia sem cuidar da qualidade de vida. Do contrário, o sujeito morre depois de ler as seções de saúde dos jornais, tamanho é o terrorismo que fazem em relação à qualidade de vida. Devia haver um aviso nessas seções, advertindo que sua leitura contumaz leva a todo tipo de doença imaginável. Eu, apesar das exigências de minha atividade jornalística, procuro evitá-las, mas não adianta porque os efeitos delas se alastram como fogo em mato seco, a começar pela própria família do sofrente.

Minha qualidade de vida, sou obrigado a reconhecer, está um lixo. Não caminho no calçadão, não jogo nem peteca, não frequento academia e não sigo dieta. Pelo contrário, encaro tudo o que faz mal numa boa e soube que a Associação Brasileira de Fabricantes de Porcarias Variadas, de biscoitos recheados que enjoam até criança a doces de origem obscura, planeja me homenagear (aceito, mas quero minha parte em dinheiro, ou então em sorvete). Ou seja, minha qualidade de vida causa grande pena e preocupação entre meus amigos e a pressão começa a exercer seus efeitos — começo a convencer-me de que ninguém pode viver assim com esta minha péssima qualidade de vida, é necessário fazer alguma coisa urgente.

Entre as consequências de minha abominável qualidade de vida, a que mais chama a atenção é a barriga. Admito que, se mulher fosse, me perguntariam com alguma frequência se eu já sabia se era menino ou menina. Mas, viciado nesta minha horrível qualidade de vida, decidi que não moveria uma palha para tirar a barriga. Em primeiro lugar, quem não gosta de mim com barriga não ia passar a gostar se eu a perdesse. Em segundo lugar, se perder a barriga me tornasse parecido com o Sean Connery, certamente valeria a pena. Mas eu vou ficar com a mesma cara de sempre e ainda arriscado a ouvir comentários do tipo “você está inteiraço!”, o que todo mundo sabe que só se fala a velho coroca, querendo dizer que ele continua velho coroca, mas está para a aparência assim como uma uva inteiraça está para uma passa inteiraça. Já se fica humilhado com efusivos comentários de “você está bem, mas está muito bem”, o que também só se diz a velho, ou ex-biriteiro. Inteiraço é demais, é um golpe muito duro de absorver.

Volto ao regime que já me prescreveram. É preferível evitar o sal. Conservas, nem pensar. Frituras são incogitáveis. Proteína animal, só um peitinho de frango ou um peixinho, com cuidado para o primeiro não estar entupido de hormônios afrescalhantes (daí a expressão “frango fresco” e a consequente “galinhas abatidas”, pois, para as galinhas, deve ser meio frustrante só topar com frango fresco, elas só podem ficar muito abatidas com isso) e o segundo não ter mais mercúrio do que termômetro de rinoceronte. Doce, só se você for maluco. Além dos triglicerídeos, diabetes certa, principalmente com a ajuda da barriga grande.

E é tão bom comer capim, a qualidade de vida melhora tanto! Tenho amigos que encaram com a voracidade de um jumento pratarrazes de folhas exóticas, todas com o mesmo não-gosto. Eu mesmo já fiz isso e mal posso esperar o dia em que voltarei a comer tanto capim que talvez assuma a condição de ruminante depois de mais velho. Deve ser um barato, para o velhote, ficar num canto, ruminando umas boas horas seguidas, grande atividade para a terceira idade. E é tudo uma questão de reeducação alimentar, embora os reeducados que conheço me pareçam sempre ter um certo ar de cérebro lavado ou de quem passou por um campo da Revolução Cultural na China.

E, finalmente, como se sabe, nada disso adianta coisa alguma para a qualidade de vida se não for acompanhado escrupulosamente por um programa de atividade física. Mas que tipo? Já tive bicicleta ergométrica, mas nossas desavenças nunca foram resolvidas, de maneira que a doei a alguém que não lembro agora, mas contra quem eu devia ter alguma coisa. Também tive esteira rolante, mas, ao contrário do presidente, prefiro ler a andar na esteira e me sentia sempre um daqueles hamsters que criam em gaiolinhas giratórias, nas quais eles andam sem nunca chegar a lugar algum. E já frequentei brevemente uma academia, mas todo mundo nela me intimidava e comecei a ter pesadelos com máquinas de tortura, de forma que desisti.

Não, meu destino é o calçadão. Só falta ele para completar minha qualidade de vida. Minhas tentativas anteriores foram com certeza prejudicadas pela má vontade e pelas vicissitudes enfrentadas, a maior das quais era o capenguinha, que doravante passarei a ignorar e caminharei altivamente, no meu próprio ritmo quelônio. Já devia ter começado, como estava previsto, na segunda-feira passada. Não comecei. Criei um apego mórbido à minha terrível qualidade de vida atual e me sinto bem melhor, embora saiba que falsamente, sentado aqui, escrevendo ou lendo um livro, do que andando no calçadão. Não, chega de ser anormal, chega de ouvir sermões dos médicos e advertências apocalípticas da família.

Agora meu fim será diferente. Com a atual horrível qualidade de vida que enfrento, viverei aí mais uns quinze anos, tendo alguma sorte. Melhorando minha qualidade de vida, posso viver muito mais, entregando-me aos prazeres de almoçar alface, rúcula, cenoura, tomate e outros vegetais, prolongando uma existência que poderia ter sido estragada por feijoadas, macarronadas, vatapás, sorvetes e pudins, além de diversões doentiamente sedentárias. Segunda-feira, sem falta, capim e calçadão. Felizmente eu minto um pouco, às vezes.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

sexta-feira, 28 de março de 2025

Fernando Pessoa me ajudando

Noto uma coisa extremamente desagradável. Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas, mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Porque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada. Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre o problema da superprodução do café no Brasil terminarei sendo pessoal. Daqui em breve serei popular? Isso me assusta. Vou ver o que posso fazer, se é que posso. O que me consola é a frase de Fernando Pessoa que li citada: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos.”

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

Oeste Outra Vez | Trailer Oficial

Soneto da mulher ao sol

Uma mulher ao sol – eis todo o meu desejo

Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz

A flor dos lábios entreaberta para o beijo

A pele a fulgurar todo o pólen da luz.


Uma linda mulher com os seios em repouso

Nua e quente de sol – eis tudo o que eu preciso

O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso

À flor dos lábios entreabertos para o gozo.


Uma mulher ao sol sobre quem me debruce

Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente

E que ao se submeter se enfureça e soluce


E tente me expelir, e ao me sentir ausente

Me busque novamente – e se deixa a dormir

Quando, pacificado, eu tiver de partir…


A bordo do Andrea C, a caminho da França, 11.1956

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Ansiedade II

  Vida Besta, de Galvão Bertazzi

Filosofia de um Pintor

Hokusai (1760-1849) é considerado, talvez, o maior de todos os pintores japoneses. Aos 74 anos, três anos menos velho do que eu, eis o que ele escreveu:

Desde os seis anos tenho mania de desenhar a forma das coisas. Aos 50 anos, publiquei uma infinidade de desenhos. Mas tudo que produzi antes dos 70 não é digno de ser levado em conta. Aos 73 anos, aprendi um pouco sobre a verdadeira estrutura da natureza dos animais, das plantas, dos pássaros, dos peixes e dos insetos. Com certeza, quando tiver 80 anos, terei realizado mais progressos; aos 90, penetrarei nos mistérios das coisas; aos 100, por certo, terei atingido uma fase maravilhosa, e, quando tiver 110 anos, qualquer coisa que fizer, seja um ponto ou uma linha, terá vida”.

Ah! Como desejo ter a sua esperança ao contemplar os anos da velhice…

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Mechéu

 

Esses tontos companheiros

que me fazem companhia…

Meio de moda.


Isto não é vida!…

É fase de metamorfose.

Do Entreespelho.


Muito chovendo e querendo os moços de fora qualquer espécie nova de recreio, puseram-lhe atenção: feito sob lente e luz espiassem o jogo de escamas de uma cobra, o arruivar das folhas da urtiga, o fim de asas de uma vespa. De enga­no em distância, aparecia-lhes exótico, excluso. Era o sujeito.

Tinha-se no caso de notar e troçar. Reapareceu, passou, pelo terreiro de frente da fazenda, atolava-se pelejando na lama lhôfa do curral. Mechéu, por nome Hermenegildo; explicou-o o fazendeiro Sãsfortes.

Semi-imbecil trabalhava, vivia, moscamurro, raivancudo, se­não de si não gostando de ninguém. Ante tudo enfuriava-se pron­to às mínimas e niglingas — rasgadela na roupa, esbarro involuntário ou nele fixarem olhar, pisar-lhe um porco o pé na hora da ração. Dava-se de não responsável de todo malfeito seu, desordem, descuido. Exigia para si o bom respeito das coisas.

Topou em toco, por exemplo, certa danada vez, quando leva­va aos camaradas na roça o almoço, desceu então o caixote da cabeça, feroz, de fera: para castigar o toco, voltou pela espingarda; já a comida é que mais não achou, que por bichos devorada! — e culpou de tudo a cozinheira. Sempre via o mal em carne e osso. Se quebrava xícara, atribuía-o à guilha da que coara o café; se do prato lavado em água fria não saía a gordura, incriminava o sangrador do suíno ou o salgador do toucinho; se o leite talhava, era por conta de quem buscara as vacas.

Melhor consigo mesmo se entendia, a meio de rangidos e resmungos. — Xiapo montão! — xingava, por diabo grande, gago, descompletado; proseava de ter uma só palavra. Entufava o aspecto, para tantas importâncias; feiancho, mais feio ficava. Opunha ao mundo as orelhas caramujas, comuns, olhos fundos — o esquerdo divergente. Com que, não era um ordinário rosto, fisionomia normal de homem, caricatura? De braços e peito peludos, fechada a barba: o que é ter a natureza na cara. Só se tardada errada em escopo. Seja que imperfeito alorpado.

Ainda abaixo dele, bobo, bem, meio idiota papudo era ou­tro, o que de alcunha o Gango; tolo tanto, que cheirava as coi­sas, mas nem sabia temer as cobras e os lagartos. Simiava-o esse, obediente mirava por modelo ao Mechéu, maramau, que o tra­tava de menor, sem estimação, exigia do Gango uma ideal excelência, forçando-o à lida, quisesse-o sacado pronto do ovo da estupidez.

Descalço — não suportava as botinas — punha Mechéu nos dias de serviço chapéu de palha; e de lebre, igual ao do Patrão, aos domingos, quando vestia roupa limpa, fazia a barba e saía a passear, a pé, ou, mau cavaleiro, a cavalo. Tinha o seu próprio, Supra-Vento, e arreios, jamais emprestados. Não ia à missa, não, nem bebia cachaça, jurava pelos venenos nas flores, repelia a longe os animais. Sentava-se, se o não viam, comendo às tripas insensatas. Superstição sua única era a de que não varressem ou lhe jogassem água nos pés, o que o impediria de casar. Irava-se, então entonces. Somente aceitava roupa feita para ele especial; modo algum, mesmo nova, a cosida para outro: referia os pelos do peito a ter usado camisa do Neca Velho, vizinho fazendeiro e também hirsuto, nunca porém vestira camisa do Neca. Mechéu, o firme. — Ele faz demais questão de continuar sendo sempre ele mesmo... — um dos moços observou.

Também de fora viera a menina, nenem, ooó, menininha de inéditos gestos, olhava para ela o Gango só a apreciar e bater cabeça. Mechéu pois disse: — Ele é meu parente não! — e a Menininha disse: — Você é bobo não, você é bom... — e mais a Meninazinha formosa então cantou: — Michéu, bambéu... Mi­chéu... bambéu... — pouquinho só, coisa de muita monta, ele se regalou, arredando dali o Gango, impante, fez fiau nele.

Sumo prazia-lhe ouvir debicarem alguém: que fulano fora à casa de baiano e a moça de lá não lhe abrira a porta; beltrano não ia à Vila à noite, por medo dos lobos; sicrano surrara peixa­no que sapecara terciano que sovara marrano, sucessos eis fa­ziam-no rir a pagar, não risada gargalhal, somenos chiada entre quentes dentes, vai vezes engasgava-se até, da ocasiãozada. Malvadezas contra outros o confortavam. A seguir, vigiava, suspeitoso de que sobre ele mesmo também viessem. Mais o exas­perava chamarem-lhe Tatú, apodo herdado do pai.

Tomava-se por infalível nôivo de toda e qualquer derradeira sacudida moça vista, marcava coió o casamento, que em do­min­go fatal sem falta: — Bimingo um... bimingo dois... bimingo três! — dedo e dedo contava. Assaz queria viver mais, e depois dos ou­tros, fora de morte, ficar para semente. Apare­ciam-lhe os cabe­los brancos, e renegava seus fossem, sim de um cavalo ruço do Patrão, por nome Vapor. De si mesmo, de nada nanja duvidava.

Lento o tempo, Mechéu descascava e debulhava milhos no paiol, fazia o Gango fazer. Ele agora estava irado com a chuva, e com o Patrão, que nela não dava jeito. Mas acatava ordens: quando lhe mandaram que viesse, veio. — Louvem-no — e reprovem alguém, outro — que ele de gozo empofa... — ensinou Sãsfortes, fazendeiro.

Mechéu marchava com desajeito, bamba bailava-lhe a perna direita, puxada pela esquerda. Soturno sáfio ante aqueles parou, turvava-se seu ar de desconfiança, inveja, queixa. — Será já em si o “eu” uma contradição? — sob susto e espanto um dos de fora proferiu. Mas, pensavam consigo mesmos, não para o Me­chéu — ilota e especulário. Deixaram-no de lado.

Tardiamente apenas se soube o que a seu respeito valesse; depois, anos.

Mechéu assim, a vida vira assim... — conta a fazendeira, Dona Joaquina, inesquecível, branquinhos os cabelos, azúis o­lhos bondosos.

Tudo o comum, copiado; do borrão do viver.

No que houve que o Gango morreu, chifrado de vaca.

Enquanto entanto o corpo estando presente, Mechéu nem fez caso, ele não tinha pelo Gango nenhum encarecimento, nunca o deixava botar mão no que de seu, nem entrar no cômodo em que assistia, debaixo da casa. Vez ou vez, mandasse o Gango cantarolar, para as escutar, simplórias parlendas, o canto sen­do dele o nome Mechéu mesmo, em falsete, o Gango tal afinado papagaio.

Mas, enterrado aquele, Mechéu aos tentos se estramontou, se cuspindo, se sumia, o boi em transtorno, desacertado do trabalho. — Está andando meio exercitado por aí, não se vê o que ele quer... — vinham dizer, pareceu que descabisbaixo indo obrar o demo em dobro.

Só da patroa Dona Joaquina se aproximou, de vira vez, perguntou ou afirmou: — A menininha não morre, não, nunca! De dó, a Senhora confirmou: — Nunca! — não sabia que menina. De saudade ou falta do Gango, ele houve pingos nos olhos, inqui­riu: — Nem eu!? Rezingava, pois assim, gueta, pataratices, mais frases: sobre os passarinhos, bem apresentados, o sol nas roças, o Supra-Vento, cavalo, ao qual por prima vez agradecesse.

Mas mesmo enfermou, daí, pessoalmente, de novembro para diante, repuxado e esmorecido, se esforçava com um tremor, sua pesadume remédios não paliavam. Ora fim que enfim se fechou no escuro cômodo, por mais de um dia, surgindo no seguinte aceitou o caneco com chá amargo, restava guedelhudado, rebarbado, os olhos mais cavos, demudado das feições.

Decerto não aguentava o que lhe vinha para pensar, nem vencia achar o de que precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no pescoço: gesticulava para nenhum interlocutor; rodou, rodou, no mesmo lugar, passava as mãos nas árvores.

Muito devagar, sempre com cheio o caneco seguro direiti­nho, veio para junto do paredão do bicame, lá sozinho ficou pa­rado um tempo, até ao entardecer. Estava bem diferente, etc., es­perando um tudo diferente.

Não falemos mais dele.

Guimarães Rosa, em Tutameia