terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O STF no tribunal da opinião pública


Vários anos de debate se passaram antes que a reforma do Judiciário fosse aprovada em 2005. Entre outras coisas, criou-se o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão estranho à estrutura histórica do Judiciário brasileiro. Não demorou para que questionamentos sobre a sua constitucionalidade fossem levados ao STF. Na ocasião, a corte rejeitou a ideia de que, em decorrência da independência judicial, juízes devam controlar a si mesmos somente por meio de corregedorias estaduais, sem nenhum monitoramento central. Ao menos no discurso, o STF considerou tal reforma compatível com as cláusulas pétreas da Constituição e abraçou a opção do constituinte. O CNJ sobreviveu. Sem muito alarde, porém, a contrarreação judicial persistiu.
Passados mais de cinco anos de seu nascimento, as competências do CNJ permanecem sob intensa pressão. Recentemente, contudo, esse quase silencioso conflito ganhou outra estatura. A opinião pública despertou para um problema que permanecia incubado, e, em face de numerosas evidências de improbidade judicial que vieram à tona nos últimos meses, parece não estar disposta a negociar a constitucionalidade dos poderes de investigação do CNJ. O que deveria ser apenas mais um caso rotineiro de controle, pelo STF, da atuação do CNJ tornou-se, do dia para a noite, um evento politicamente explosivo.
A opinião pública, dizem, é instituição enganosa. Não passaria de um mito inventado para facilitar a manipulação ideológica e dar coerência narrativa a fatos políticos que não enxergamos nem explicamos. Debaixo de sua aparente impessoalidade, estariam escondidos os projetos de dominação de meia dúzia de poderosos. Para esses céticos, o que há, ou o que lemos e ouvimos no espaço público, são opiniões individuais mais ou menos desencontradas, distintas de uma entidade fictícia, com autoridade moral própria, chamada “opinião pública”.
O mundo político seria menos complicado sem ela. Mas não foi com base nesse ceticismo que regimes democráticos foram concebidos. Democracias constitucionais adotaram uma intrincada rede de instituições para captar e processar não somente um, mas vários tipos de opinião pública, que operariam em tempos e sintonias diversos. Grosso modo, o Legislativo e o Executivo canalizariam, por meio de eleições periódicas, a opinião pública cotidiana, tão oscilante quanto impulsiva. Já uma corte constitucional, distanciada dos ciclos eleitorais, trabalharia num ritmo que fomenta uma opinião pública mais refletida e de longo prazo, baseada nos valores e princípios da Constituição. O controle judicial serviria para conter a taquicardia e volatilidade da opinião pública do primeiro tipo. Protegeria a democracia, costuma-se dizer, contra os germes de sua autodestruição.
É por aí que se dá sentido a uma maquinaria institucional que, bem ou mal, tenta traduzir na prática as várias facetas do ideal de “governo do povo”. E há nesse arranjo um detalhe: a corte constitucional não é apenas o regente dessa opinião pública mais densa, mas sim é controlada por tal opinião. Pesquisas feitas em várias democracias, das mais às menos estáveis, mostram que a capacidade real de uma corte de controlar os outros poderes tem correlação direta com o capital político que ela acumula ao longo do tempo. Em outras palavras, uma corte que deixa corroer a própria reputação gradualmente perde força e se marginaliza no sistema político. Aqueles que se preocupam com o velho dilema de “Quem guarda o guardião?” ou de “Quem deveria ter a última palavra?”, receosos com o excessivo poder nas mãos de autoridades não eleitas, encontram aqui uma potencial resposta.
Uma dose de realpolitik, portanto, suscita indagações relevantes sobre o momento por que passa o STF e sobre as consequências que advêm de suas decisões em casos delicados assim. O STF não deve obediência ao que pensa a opinião pública da hora. Índices momentâneos de popularidade não podem pautar sua atuação. Afinal, precisamos dele justamente para que resista aos deslizes voluntariosos nos quais a opinião pública cotidiana incorre. Esperamos que ele desconfie das maiorias. Essa foi, ao menos, a aposta constitucional, e o STF não costuma economizar retórica para reforçar esse seu papel.
Entretanto, há algo qualitativamente mais complicado no caso. Aos poucos, vem se formando uma opinião pública menos apressada, que não cai na tentação reducionista de classificar qualquer argumento do STF como mero disfarce de preferências políticas, como um jargão gratuito que recorre ao juridiquês para encobrir uma realidade mais crua — o suposto choque entre juízes corporativistas de um lado e republicanos de outro. Em vez de presumir o cinismo judicial, leva o STF a sério e quer dialogar por meio dos termos e conceitos jurídicos em jogo. Tem tanta preocupação com a Constituição quanto o STF. Informou-se, elaborou bons argumentos e pede ao tribunal, em contrapartida, a mesma atitude, na mesma linguagem, independentemente de sua posição final.
Essa não é uma opinião pública rasteira, fácil de desqualificar. O STF precisa reagir à altura. Se não por respeito e reciprocidade, ao menos como ato de prudência política. Infelizmente, ele tem sido mais defensivo do que autocrítico. Fala bastante (nos jornais, nos auditórios e nas suas pesadas decisões escritas), mas pouco escuta. Infantiliza as críticas que recebe, como se fossem feitas por leigos incapazes de entender o argumento “técnico”. São sinais de insegurança (ou de excesso de autoconfiança). Entrar numa conversa mais horizontal, sincera e desarmada com a opinião pública continua a ser seu maior desafio.
29 de janeiro de 2012

Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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