Vários
anos de debate se passaram antes que a reforma do Judiciário fosse
aprovada em 2005. Entre outras coisas, criou-se o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), órgão estranho à estrutura histórica do
Judiciário brasileiro. Não demorou para que questionamentos sobre a
sua constitucionalidade fossem levados ao STF. Na ocasião, a corte
rejeitou a ideia de que, em decorrência da independência judicial,
juízes devam controlar a si mesmos somente por meio de corregedorias
estaduais, sem nenhum monitoramento central. Ao menos no discurso, o
STF considerou tal reforma compatível com as cláusulas pétreas da
Constituição e abraçou a opção do constituinte. O CNJ
sobreviveu. Sem muito alarde, porém, a contrarreação judicial
persistiu.
Passados
mais de cinco anos de seu nascimento, as competências do CNJ
permanecem sob intensa pressão. Recentemente, contudo, esse quase
silencioso conflito ganhou outra estatura. A opinião pública
despertou para um problema que permanecia incubado, e, em face de
numerosas evidências de improbidade judicial que vieram à tona nos
últimos meses, parece não estar disposta a negociar a
constitucionalidade dos poderes de investigação do CNJ. O que
deveria ser apenas mais um caso rotineiro de controle, pelo STF, da
atuação do CNJ tornou-se, do dia para a noite, um evento
politicamente explosivo.
A
opinião pública, dizem, é instituição enganosa. Não passaria de
um mito inventado para facilitar a manipulação ideológica e dar
coerência narrativa a fatos políticos que não enxergamos nem
explicamos. Debaixo de sua aparente impessoalidade, estariam
escondidos os projetos de dominação de meia dúzia de poderosos.
Para esses céticos, o que há, ou o que lemos e ouvimos no espaço
público, são opiniões individuais mais ou menos desencontradas,
distintas de uma entidade fictícia, com autoridade moral própria,
chamada “opinião pública”.
O
mundo político seria menos complicado sem ela. Mas não foi com base
nesse ceticismo que regimes democráticos foram concebidos.
Democracias constitucionais adotaram uma intrincada rede de
instituições para captar e processar não somente um, mas vários
tipos de opinião pública, que operariam em tempos e sintonias
diversos. Grosso modo, o Legislativo e o Executivo canalizariam, por
meio de eleições periódicas, a opinião pública cotidiana, tão
oscilante quanto impulsiva. Já uma corte constitucional, distanciada
dos ciclos eleitorais, trabalharia num ritmo que fomenta uma opinião
pública mais refletida e de longo prazo, baseada nos valores e
princípios da Constituição. O controle judicial serviria para
conter a taquicardia e volatilidade da opinião pública do primeiro
tipo. Protegeria a democracia, costuma-se dizer, contra os germes de
sua autodestruição.
É
por aí que se dá sentido a uma maquinaria institucional que, bem ou
mal, tenta traduzir na prática as várias facetas do ideal de
“governo do povo”. E há nesse arranjo um detalhe: a corte
constitucional não é apenas o regente dessa opinião pública mais
densa, mas sim é controlada por tal opinião. Pesquisas feitas em
várias democracias, das mais às menos estáveis, mostram que a
capacidade real de uma corte de controlar os outros poderes tem
correlação direta com o capital político que ela acumula ao longo
do tempo. Em outras palavras, uma corte que deixa corroer a própria
reputação gradualmente perde força e se marginaliza no sistema
político. Aqueles que se preocupam com o velho dilema de “Quem
guarda o guardião?” ou de “Quem deveria ter a última palavra?”,
receosos com o excessivo poder nas mãos de autoridades não eleitas,
encontram aqui uma potencial resposta.
Uma
dose de realpolitik, portanto, suscita indagações relevantes sobre
o momento por que passa o STF e sobre as consequências que advêm de
suas decisões em casos delicados assim. O STF não deve obediência
ao que pensa a opinião pública da hora. Índices momentâneos de
popularidade não podem pautar sua atuação. Afinal, precisamos dele
justamente para que resista aos deslizes voluntariosos nos quais a
opinião pública cotidiana incorre. Esperamos que ele desconfie das
maiorias. Essa foi, ao menos, a aposta constitucional, e o STF não
costuma economizar retórica para reforçar esse seu papel.
Entretanto,
há algo qualitativamente mais complicado no caso. Aos poucos, vem se
formando uma opinião pública menos apressada, que não cai na
tentação reducionista de classificar qualquer argumento do STF como
mero disfarce de preferências políticas, como um jargão gratuito
que recorre ao juridiquês para encobrir uma realidade mais crua —
o suposto choque entre juízes corporativistas de um lado e
republicanos de outro. Em vez de presumir o cinismo judicial, leva o
STF a sério e quer dialogar por meio dos termos e conceitos
jurídicos em jogo. Tem tanta preocupação com a Constituição
quanto o STF. Informou-se, elaborou bons argumentos e pede ao
tribunal, em contrapartida, a mesma atitude, na mesma linguagem,
independentemente de sua posição final.
Essa
não é uma opinião pública rasteira, fácil de desqualificar. O
STF precisa reagir à altura. Se não por respeito e reciprocidade,
ao menos como ato de prudência política. Infelizmente, ele tem sido
mais defensivo do que autocrítico. Fala bastante (nos jornais, nos
auditórios e nas suas pesadas decisões escritas), mas pouco escuta.
Infantiliza as críticas que recebe, como se fossem feitas por leigos
incapazes de entender o argumento “técnico”. São sinais de
insegurança (ou de excesso de autoconfiança). Entrar numa conversa
mais horizontal, sincera e desarmada com a opinião pública continua
a ser seu maior desafio.
29
de janeiro de 2012
Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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