Encontro
o amigo Mário em seu escritório, à volta com papéis e barbantes,
fazendo um grande embrulho. São encomendas e presentes que vai
mandar para sua gente em Santa Catarina. Inábil e carinhosamente ele
compõe o grande embrulho, que sai torto e frágil.
Não
me proponho a ajudá-lo, porque sou seu irmão em falta de jeito.
Aparece,
a certa altura, um rapazinho, que olha em silêncio a faina de Mário.
Este compreende a ironia e compaixão do tímido sorriso do rapaz e,
com um gesto, pede sua ajuda. Em meio minuto, o moço desmancha tudo
e faz daquele embrulho informe e explosivo um pacote simples, sólido
e firme.
Mas
não estou pensando nessa qualidade que sempre me pareceu milagrosa,
essa certeza das mãos em ordenar as coisas para nós rebeldes e
desconjuntadas, para esses privilegiados, obedientes e fáceis. Penso
nas mãos que, em uma praia distante, vão desembrulhar essas coisas;
na alegria com que no fundo da província a gente recebe os
presentes.
Quando
meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos,
os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as
malas e valises que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior
não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério
numeroso das malas, na surpresa do que ia surgindo. Uma grande parte,
que despertava exclamações deliciadas das mulheres, não nos
interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas
coloridas, joias e bugigangas femininas. A mais distante das primas
e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ganhar um
pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e
se derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos. Além dos
presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou
daquilo, um» sapatinho de tal número para combinar com aquele
vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais.
Se
esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os
brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram
visões sensacionais. Jogos de papelões coloridos, coisas de lata
com molas imprevistas, fósforos de acender sem caixa, abridores de
latas, sopa juliana seca, isqueiro, torradeiras de pão, coisas
elétricas, brilhantes e coloridas — todo o mundo mecânico
insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também
programas de cinema, cardápios de restaurantes...
Seriam,
afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos
estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação.
Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a
mesa ou pelo chão o conteúdo da última valise, e distribuídos
todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo aturdidos por aquela
sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a
conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam
histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio,
da última comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença
dos nossos parentes de Vila Isabel — ainda ficávamos tontos,
pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão
distante.
Aos
9 anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha
irmã. Voltei muitas vezes; estou sempre voltando. Aqui já me
aconteceram coisas. Mas o grande encanto e o máximo prestígio do
Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos
assombrados do menino da roça.
Rubem Braga, em A traição das elegantes
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