Corria
a notícia de que no Bar Danúbio, pelos poderes de uma máquina
vinda da capital, a água mole estava sendo transformada em coisa
dura. Dura e fria, que podia ser chupada, na ponta de um pauzinho,
nos mais variados sabores e cores, tal como se chupa bala ou
rapadura. O picolé, como era chamado, tornou-se assunto obrigatório
de todas as rodas de homens e de comadres, e a sua descrição era
levada pela boca de cavaleiros e andarilhos até os lugares mais
distantes da serra, das vargens e das beiradas de rio. Seus relatos
eram ouvidos com assombro pelos jovens, que gostavam de novidades; e
com desconfiança pelos velhos, que imaginavam que aquilo não
passava de uma troça e diziam que a água, por determinação de
Deus Todo-Poderoso, estava destinada a ser mole para sempre. Se
sucedido semelhante fosse verdade, só se fosse por obra do
Coisa-Ruim, ou se o fim do mundo estivesse chegando, com a revirada
geral das coisas. O próximo passo, argumentavam, seria a pedra virar
água, e isto seria o dilúvio. Os portadores da novidade não se
davam por vencidos, e exibiam, num gesto de triunfo, os pauzinhos que
traziam guardados na algibeira.
“Pois
aqui está a prova, pra ninguém duvidar. Este é o pauzinho do
picolé, é nele que se segura. Tem de muitas cores, vermelho,
amarelo, branco; com gosto de groselha, abacaxi e coco...”
O
Bar Danúbio, que de costume só atraía uns poucos que ali iam para
beber pinga e para conversa fiada, de repente ficou que nem gruta
onde aparece a Virgem. Vinha gente de todos os lugares, em romaria,
para ver e chupar “o milagre”. Até o vigário da paróquia ficou
agradecido, porque a igreja ficou pequena para a quantidade de gente
que vinha da roça para a santa missa, não por repentina devoção,
mas porque depois da missa era a hora do picolé que se fabricava no
Bar Danúbio.
Meu
pai, digno herdeiro do espírito moderno da dona Sophia, numa de suas
viagens à capital da república, Rio de Janeiro, terno de linho
branco e chapéu panamá, calor de 40 graus, o suor escorrendo pelo
rosto, assentou-se numa sorveteria na avenida Rio Branco, para chupar
um picolé. Deu-se conta, de um estalo, que aquela delícia ainda não
se encontrava em sua terra. Não pensou duas vezes. Saiu dali direto
para a fábrica de máquinas de picolé e fechou negócio. E logo a
cidadezinha ficou em polvorosa com a chegada da novidade. Quem não
saía, saiu. Quem não sorria, sorriu...
Enganam-se
aqueles que pensam que o Diano fizesse essas coisas por raciocínios
comerciais. De jeito nenhum. A ideia de ganhar dinheiro não lhe
passou nem uma vez pela cabeça enquanto negociava a máquina, no Rio
de Janeiro. Ele não nascera para ficar rico. Enriquecera por
acidente. A única coisa que queria era ver a alegria dos outros. No
fundo, era uma criança que queria ser amada e, para isto, seria
capaz de dar qualquer festa... Claro que a riqueza ajudava. E agora,
vendo aquele mundaréu de gente que se comprimia diante da máquina
de picolé, ele se sentia como um deus. Pois não será isto mesmo?
Que Deus é uma criança que quer dar uma grande festa? Se houvesse
eleição para prefeito, é certo que ele seria eleito. Mas nunca
quis. Pra que ser prefeito, se do jeito como estava podia distribuir
felicidade?
O
vendedor não parava de distribuir picolés para os fregueses
sorridentes. Todo mundo chupava picolé e ria. Menos um, que chupava
picolé de cara triste. O Diano não aguentou. Não podia ver ninguém
infeliz.
“Não
está gostando?”, perguntou.
“Tô!”,
respondeu o roceiro de embornal pendurado no ombro.
“Então,
por que a cara triste?”
“Tô
pensano na muié e nas criança. Ficaro em casa. Num pudero vi. Num
vão chupá picolé. Teim dó deis...”
O
Diano se comoveu com aquele pai e pensou que era hora de fazer mais
gente feliz.
“O
senhor mora longe?”
“Duas
légua, na direção da serra...”
“Eu
vou dar um jeito...”
O
Diano, que não acreditava que coisa alguma fosse impossível, tomou
as providências. Procurou uma caixinha de madeira, mandou buscar
serragem na serraria, embrulhou em papel-manteiga uma dúzia de
picolés de todas as cores, acondicionou tudo, fechou, amarrou e
entregou o pacote para o roceiro espantado.
“Está
aqui. Ajeita isto no embornal...”
“Quanto
é que é?”
“Não
é nada não...”
“Então,
Deus lhe pague...”
E
enquanto o roceiro descia a rua, montado em sua égua velha, o Diano
sorria imaginando a festa, a mulher e a criançada chupando picolé.
“Marialva,
Firmino, Toninho, Aninha...”
Fazia
mais de duas horas que ele andava, apressando a cavalgadura, sol a
pino, imaginando a alegria da família chupando picolé.
A
casa nem bem aparecera e já o homem anunciava:
“Óia
o que tô trazeno. Picolé pra todo mundo!”
Foi
um alvoroço. A criançada correu. A mulher ficou espiando. Ele
desmontou de um salto e notou que o embornal estava molhado, melado.
Mas nem ligou. De que vale um embornal molhado quando se tem doze
picolés dentro de uma caixa, coloridos e frios, à espera?
Pegou
o canivete de cortar fumo, cortou o barbante, desembrulhou a caixa,
abriu a tampa…
Rubem Alves, em O Velho que Acordou Menino

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