terça-feira, 12 de novembro de 2024

Conversa de compra de passarinho

Entro na venda para comprar uns anzóis, e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, cocando o calcanhar de um pé com o dedo de outro: “Quarenta.” O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro-do-brejo que está cantando. O velho: — Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa; o velho lhe serve cachaça, recebe, dá o troco, volta-se para mim: “O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha: — Quer vinte e cinco pode botar lá dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto: — Quanto é o coleiro?
Ah, esse não tenho para venda, não...
Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “O senhor dá trinta...” O velho cala-se, minha nota na mão: — Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: “O senhor diga...”. Viro a minha cachaça, fico apreciando o coleiro.
Não quer vinte e cinco vá embora, menino.
Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha lá para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo: — Passarinho dá muito trabalho...
O velho atende outro freguês, lentamente.
O senhor querendo dar 500 cruzeiros, é seu. Por trás dele o pescador de bigodes brancos me faz sinal para não comprar. Finjo espanto: “QUINHENTOS cruzeiros?”
Ainda a semana passada eu rejeitei 600 por ele. Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando suas especialidades. Faço uma pergunta sorna: “Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “Não tenho tempo para pegar passarinhos.”
Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha.
Quanto terá recebido esse menino desconhecido por aquele coleiro especial?
No Rio eu compro um papa-capim mais barato...
Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
Mas QUINHENTOS cruzeiros?
Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo Afinal digo com a voz fria, seca: “Dou 200 pelo coleiro, 50 pela gaiola.”
O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por 300 o senhor leva tudo.”
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um coleiro-do-brejo não tem preço.
Que o coleiro-do-brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos, quando ele, o velho, estiver rachando lenha no Inferno, o burrinho, o menino e o coleiro vão entrar no Céu — trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

Rubem Braga, em A traição das elegantes

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