De
repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
– Capitu!
E
no quintal:
– Mamãe!
E
outra vez na casa:
– Vem
cá!
Não
me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às
tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas,
apenas inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça
não as rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro.
Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe,
quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem
taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e
fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um
lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as
bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela
com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do doutor João
da Costa; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe que mostrasse a
língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava
o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas
sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do
médico.
– Capitu!
– Mamãe!
– Deixa
de estar esburacando o muro; vem cá.
A
voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos
fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão
andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço,
empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro,
voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se
quisesse esconder alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente
levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me
inquieta:
– Que
é que você tem?
– Eu?
Nada.
– Nada,
não; você tem alguma coisa.
Quis
insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e
coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca
fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos,
alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado.
Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma
à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos
claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas
com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas
com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava
sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns
pontos.
– Que
é que você tem? Repetiu.
– Não
é nada, balbuciei finalmente.
E
emendei logo:
– É
uma notícia.
– Notícia
de quê?
Pensei
em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão
que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se
não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e
rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista
não sei como…
– Então?
– Você
sabe…
Nisto
olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo
ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e
lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los
de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu
acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e
apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o
que era.
Machado de Assis, em Dom Casmurro
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