quinta-feira, 14 de novembro de 2024

À leste do Éden


[ 3 ]

O afeto entre os dois meninos cresceu com o passar dos anos. É possível que parte do sentimento de Charles fosse de desprezo, mas era um desprezo protetor. Aconteceu de um dia, à tardinha, os meninos jogarem peewee, um jogo novo para eles, no pátio perto da porta de entrada. Uma pequena vareta pontuda era colocada no chão e golpeada perto da extremidade com um bastão. A vareta subia ao ar e então era arremessada com outro golpe de bastão o mais longe possível.
Adam não era bom em jogos. Mas, por algum acaso do olho e tempo certos, ele venceu o irmão no peewee. Por quatro vezes jogou o peewee mais longe do que Charles. Era uma nova experiência para ele e sentiu um calor tomar conta de si e por isso não observou nem percebeu o ânimo do irmão como geralmente o fazia. Na quinta vez que golpeou o peewee, a vareta voou zunindo como uma abelha até bem longe no campo. Virou-se feliz para encarar Charles e subitamente sentiu um calafrio no peito. O ódio no rosto de Charles o assustou.
Acho que foi pura sorte — disse sem jeito. — Aposto que eu não consigo fazer de novo.
Charles colocou o seu peewee no chão, golpeou-o e, quando a vareta subiu, tentou o arremesso, mas errou. Charles aproximou-se lentamente de Adam, seus olhos frios e esquivos. Adam afastou-se aterrorizado. Não ousava dar as costas e correr porque o irmão podia alcançá-lo. Recuou lentamente, os olhos assustados, a garganta seca. Charles chegou mais perto e o golpeou no rosto com o seu bastão. Adam cobriu o nariz que sangrava com as mãos e Charles bateu de novo e acertou-o com o bastão nas costelas, tirando-lhe o fôlego, bateu na sua cabeça e o fez desmaiar. E enquanto Adam jazia inconsciente no chão, Charles chutou com força sua barriga e foi embora.
Depois de algum tempo, Adam recobrou os sentidos. Respirava com dificuldade porque o peito doía. Tentou ficar sentado e caiu de novo por causa dos músculos doloridos da barriga. Viu Alice espreitando e havia algo em seu rosto que ele nunca vira antes. Não sabia o que era, mas não era nada brando ou fraco, e podia ser ódio. Ela percebeu que ele a olhava, fechou as cortinas e desapareceu. Quando Adam finalmente se levantou do chão e caminhou, todo curvado, até a cozinha, encontrou uma bacia de água quente à sua espera e uma toalha limpa ao lado. Podia ouvir sua madrasta tossindo no seu quarto.
Charles tinha uma grande qualidade. Nunca se arrependia — jamais. Nunca mencionou a surra, aparentemente nunca pensou nela de novo. Mas Adam decidiu que nunca mais ganharia de novo — em nada. Sempre sentira o perigo no seu irmão, mas agora entendia que nunca mais deveria ganhar a não ser que estivesse preparado para matar Charles. Charles não se arrependeu. Simplesmente sentiu-se realizado.
Charles não contou ao pai sobre a surra, e Adam também não, e certamente Alice também não contou e, no entanto, ele parecia saber. Nos meses que se seguiram ficou mais gentil com Adam. Sua conversa com ele tornou-se mais suave. Não o castigou mais. Quase toda noite passava-lhe um sermão, mas sem violência.
E Adam sentiu mais medo da gentileza do que sentia da violência, pois lhe parecia que estava sendo treinado como num sacrifício, quase como se fosse submetido à bondade antes da morte, como as vítimas destinadas aos deuses eram afagadas e lisonjeadas para que pudessem seguir felizes para a pedra da imolação sem ultrajar os deuses com infelicidade.
Cyrus explicou suavemente a Adam a natureza de um soldado. E embora seu conhecimento viesse de uma pesquisa mais do que da experiência, ele era exato. Contou ao filho da triste dignidade que pode caber a um soldado, como ele é necessário à luz de todos os fracassos do homem — a punição por nossas fraquezas. Talvez Cyrus descobrisse essas coisas em si mesmo enquanto as contava. Era muito diferente da atitude belicosa de agitar bandeiras e proferir gritos dos seus dias de juventude. As humilhações são empilhadas sobre um soldado, dizia Cyrus, a fim de que ele possa, quando a ocasião chegar, não se ressentir demais da humilhação final — uma morte sem sentido e suja. E Cyrus falava com Adam sozinho e não permitia que Charles ouvisse.
Cyrus levou Adam para caminhar com ele num fim de tarde e as conclusões sombrias de todo o seu pensamento e de todo o seu estudo saíram e extravasaram com uma espécie de terror denso sobre o filho. Ele disse:
Quero que saiba que um soldado é o mais sagrado de todos os humanos porque é o mais testado... o mais testado de todos. Vou tentar lhe contar. Veja só, em toda a história os homens foram ensinados que matar outro homem é uma coisa má e inaceitável. Todo homem que mata deve ser destruído porque matar é um grande pecado, talvez o pior pecado que conhecemos. E então nós pegamos um soldado e colocamos o assassinato na sua mão e dizemos: “Use-o bem, e use-o com sabedoria.” Não colocamos nenhum freio sobre ele. Siga em frente e mate tantos dos seus irmãos, segundo um certo tipo de classificação, quantos for capaz. E nós o recompensaremos por isso porque é uma violação do seu treinamento inicial.
Adam umedeceu seus lábios secos, tentou perguntar e não conseguiu, tentou de novo.
Por que eles têm de fazer isto? — disse. — Por quê?
Cyrus ficou profundamente comovido e falou como nunca tinha falado antes.
Não sei — disse. — Estudei e talvez tenha aprendido como são as coisas, mas ainda não me aproximei sequer de saber por que são assim. E você não deve esperar que as pessoas entendam o que fazem. Tantas coisas são feitas instintivamente, como a abelha faz mel, como a raposa mergulha as patas num regato para enganar os cães. Uma raposa não é capaz de dizer por que o faz e qual abelha se lembra do inverno ou espera que ele volte? Quando eu soube que você tinha de ir, pensei em deixar o futuro aberto para que você pudesse desenterrar suas próprias descobertas, mas depois pareceu melhor se eu pudesse protegê-lo com o pouco que sei. Você deve ir em breve, já chegou à idade.
Não quero ir — disse Adam rapidamente.
Você irá em breve — prosseguiu seu pai, sem lhe dar ouvidos. — E quero lhe contar para que não se surpreenda. Primeiro vão tirar suas roupas, mas irão mais longe do que isso. Vão arrancar qualquer dignidade que você tenha. Você vai perder o que considera seu direito decente de viver e de ser deixado em paz para viver. Vão fazê-lo viver, comer, dormir e defecar perto de outros homens. E quando o vestirem de novo, você não será capaz de se distinguir dos outros. Não poderá sequer usar um retalho ou pregar uma nota com alfinete no seu peito para dizer “Este sou eu, separado do resto”.
Não quero fazer isto — disse Adam.
Depois de um tempo — prosseguiu Cyrus —, você não vai pensar nada que os outros também não pensem. Não vai conhecer nenhuma outra palavra que os outros não falem. E tudo o que fizer vai fazer porque os outros fazem. Sentirá o perigo na menor das diferenças, um perigo para todo grupo de homens que pensa igual e age igual.
E se eu não fizer? — perguntou Adam.
Sim — disse Cyrus —, às vezes isso acontece. De vez em quando aparece um homem que não quer fazer o que é exigido dele. E sabe o que acontece? Toda a máquina se devota friamente à destruição da diferença. Eles arrasam o seu espírito e os seus nervos, seu corpo e sua mente, com bastões de ferro até que a perigosa diferença deixe você. E, se no fim você acaba não cedendo, eles o vomitam e deixam-no fedendo do lado de fora; sem ser parte deles e, no entanto, sem estar livre. É melhor aderir a eles. Só fazem isso para se proteger. Uma coisa tão triunfalmente ilógica, tão belamente sem sentido, que nenhum Exército pode permitir que qualquer questionamento a enfraqueça. Dentro dela, se você não quiser medi-la com outras coisas para compará-la ou ridicularizá-la, vai encontrar, lenta e seguramente, uma razão, uma lógica e uma espécie de terrível beleza. Um homem que consegue aceitá-la nunca é um homem pior, e às vezes é um homem muito melhor. Ouça bem o que digo, porque meditei muito sobre o assunto. Existem alguns homens que enfrentam o triste massacre da vida de soldado, se entregam, e se tornam homens sem rosto. Mas esses já não tinham muito rosto desde o início. E talvez você seja assim. Mas existem outros que enfrentam o desafio, submergem no atoleiro comum e depois se erguem mais alto do que antes, porque... porque perderam um pouco da vaidade e ganharam todo o ouro da companhia e do regimento. Se você é capaz de descer tão baixo, será capaz de se erguer ainda mais alto do que pode conceber, e conhecerá uma alegria sagrada, um companheirismo quase como aquele de uma companhia celestial de anjos. Então você conhecerá a qualidade dos homens, ainda que sejam inarticulados. Mas, antes de ter caído até o fundo, nunca poderá saber disso.
Enquanto caminhavam de volta para casa, Cyrus virou à esquerda e entrou no quintal entre as árvores, e estava anoitecendo. Subitamente, Adam disse:
Está vendo aquele toco ali? Eu costumava me esconder entre as raízes e às vezes ia lá só porque me sentia infeliz.
Vamos lá ver o lugar — disse seu pai. Adam o levou até o local e Cyrus baixou os olhos para ver o buraco em forma de ninho entre as raízes. — Eu sabia disso há muito tempo — disse ele. — Certa vez, quando você ficou um longo tempo sem aparecer, achei que tinha encontrado um lugar assim e o encontrei porque sabia o tipo de lugar de que precisaria. Vê como a terra está amassada e a grama esmagada? E enquanto estava sentado aqui você arrancava pedaços de casca e os quebrava em pedacinhos. Soube que era este o lugar quando topei com ele.
Adam olhou para o seu pai, admirado.
O senhor nunca veio aqui à minha procura — disse ele.
Não — respondeu Cyrus. — Eu não faria isso. Não se deve pressionar demais um ser humano. Eu não faria isso. Sempre se deve deixar um escape a um homem antes da morte. Lembre-se disso! Eu sabia, creio eu, como o estava pressionando. Não queria empurrá-lo para o abismo.
Afastaram-se das árvores inquietos. Cyrus disse:
Há tantas coisas que quero lhe contar. Esqueço a maior parte delas. Quero lhe dizer que um soldado abre mão de tanta coisa para conseguir um pouco de volta. Desde o dia em que nasce é ensinado por toda circunstância, por toda lei, regra e direito, a proteger sua própria vida. Começa com aquele grande instinto e tudo o confirma. E então se torna um soldado e deve aprender a violar tudo isso: deve aprender friamente a se expor ao risco de perder a própria vida sem ficar louco. E se você for capaz de fazer isto, alguns não conseguem, então terá o maior dom de todos. Escute, filho — disse Cyrus com sinceridade. — Quase todos os homens têm medo e nem mesmo sabem o que causa o seu medo: sombras, perplexidades, perigos sem nomes e números, o medo de uma morte sem rosto. Mas se você puder se preparar para encarar não sombras, mas uma morte real, descrita e reconhecível, por bala, sabre ou lança, então nunca mais precisará ter medo, pelo menos não do mesmo jeito de antes. Então você será um homem, distinto dos outros homens, seguro de si enquanto outros homens podem chorar de terror. Essa é a grande recompensa. Talvez seja a única recompensa. Talvez seja a pureza final toda cercada de sujeira. Está quase escuro. Quero falar com você de novo amanhã à noite, quando nós dois tivermos pensado sobre o que eu lhe contei.
Mas Adam disse:
Por que não fala com meu irmão? Charles deverá ir. Ele é bom nisso, muito melhor do que eu.
Charles não vai para o Exército — disse Cyrus. — Não haveria sentido nisso.
Mas seria um melhor soldado.
Só por fora — disse Cyrus. — Não por dentro. Charles não tem medo e por isso jamais aprenderia algo sobre coragem. Nada sabe fora de si mesmo, por isso nunca poderia absorver as coisas que tentei lhe explicar. Colocá-lo num exército seria dar vazão a coisas em Charles que precisam ser refreadas, não desencadeadas. Eu não ousaria deixá-lo ir.
Adam se queixou.
O senhor nunca o puniu, deixou que levasse sua vida, elogiou-o, não o perseguiu, e agora o deixa ficar fora do Exército.
Parou, assustado com o que tinha dito, receando a raiva ou o desprezo ou a violência que suas palavras poderiam detonar.
Seu pai não respondeu. Continuou caminhando para longe das árvores, a cabeça tão baixa que o queixo repousava no peito, e o sobe-e-desce do seu quadril quando a perna de pau tocava no chão era monótono. A perna de pau descrevia um semicírculo para o lado quando chegava a sua vez.
Estava completamente escuro agora, e a luz dourada dos lampiões brilhava através da porta aberta da cozinha. Alice veio até a porta e espiou, à procura deles, e então ouviu os passos desiguais se aproximando e voltou à cozinha.
Cyrus foi até o alpendre da cozinha antes de parar e erguer a cabeça.
Onde está você? — perguntou.
Aqui, bem atrás do senhor, bem aqui.
Você fez uma pergunta. Acho que vou ter de responder. Talvez seja bom e talvez seja ruim respondê-la. Você não é muito esperto. Não sabe o que quer. Não tem a impetuosidade necessária. Deixa os outros pisarem em você. Às vezes acho que é um fraco e que nunca chegará sequer a cocô de cachorro. Isso responde à sua pergunta? Eu amo mais você. Sempre amei. Pode ser uma coisa ruim de lhe dizer, mas é verdade. Amo você mais do que todos. Se não, por que me teria dado o trabalho de magoá-lo? Agora cale a boca e vá cear. Falarei com você amanhã à noite. Minha perna está doendo.

John Steinbeck, em À leste do Éden

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