[
3 ]
O
afeto entre os dois meninos cresceu com o passar dos anos. É
possível que parte do sentimento de Charles fosse de desprezo, mas
era um desprezo protetor. Aconteceu de um dia, à tardinha, os
meninos jogarem peewee, um jogo novo para eles, no pátio
perto da porta de entrada. Uma pequena vareta pontuda era colocada no
chão e golpeada perto da extremidade com um bastão. A vareta subia
ao ar e então era arremessada com outro golpe de bastão o mais
longe possível.
Adam
não era bom em jogos. Mas, por algum acaso do olho e tempo certos,
ele venceu o irmão no peewee. Por quatro vezes jogou o peewee
mais longe do que Charles. Era uma nova experiência para ele e
sentiu um calor tomar conta de si e por isso não observou nem
percebeu o ânimo do irmão como geralmente o fazia. Na quinta vez
que golpeou o peewee, a vareta voou zunindo como uma abelha
até bem longe no campo. Virou-se feliz para encarar Charles e
subitamente sentiu um calafrio no peito. O ódio no rosto de Charles
o assustou.
— Acho
que foi pura sorte — disse sem jeito. — Aposto que eu não
consigo fazer de novo.
Charles
colocou o seu peewee no chão, golpeou-o e, quando a vareta
subiu, tentou o arremesso, mas errou. Charles aproximou-se lentamente
de Adam, seus olhos frios e esquivos. Adam afastou-se aterrorizado.
Não ousava dar as costas e correr porque o irmão podia alcançá-lo.
Recuou lentamente, os olhos assustados, a garganta seca. Charles
chegou mais perto e o golpeou no rosto com o seu bastão. Adam cobriu
o nariz que sangrava com as mãos e Charles bateu de novo e acertou-o
com o bastão nas costelas, tirando-lhe o fôlego, bateu na sua
cabeça e o fez desmaiar. E enquanto Adam jazia inconsciente no chão,
Charles chutou com força sua barriga e foi embora.
Depois
de algum tempo, Adam recobrou os sentidos. Respirava com dificuldade
porque o peito doía. Tentou ficar sentado e caiu de novo por causa
dos músculos doloridos da barriga. Viu Alice espreitando e havia
algo em seu rosto que ele nunca vira antes. Não sabia o que era, mas
não era nada brando ou fraco, e podia ser ódio. Ela percebeu que
ele a olhava, fechou as cortinas e desapareceu. Quando Adam
finalmente se levantou do chão e caminhou, todo curvado, até a
cozinha, encontrou uma bacia de água quente à sua espera e uma
toalha limpa ao lado. Podia ouvir sua madrasta tossindo no seu
quarto.
Charles
tinha uma grande qualidade. Nunca se arrependia — jamais. Nunca
mencionou a surra, aparentemente nunca pensou nela de novo. Mas Adam
decidiu que nunca mais ganharia de novo — em nada. Sempre sentira o
perigo no seu irmão, mas agora entendia que nunca mais deveria
ganhar a não ser que estivesse preparado para matar Charles. Charles
não se arrependeu. Simplesmente sentiu-se realizado.
Charles
não contou ao pai sobre a surra, e Adam também não, e certamente
Alice também não contou e, no entanto, ele parecia saber. Nos meses
que se seguiram ficou mais gentil com Adam. Sua conversa com ele
tornou-se mais suave. Não o castigou mais. Quase toda noite
passava-lhe um sermão, mas sem violência.
E
Adam sentiu mais medo da gentileza do que sentia da violência, pois
lhe parecia que estava sendo treinado como num sacrifício, quase
como se fosse submetido à bondade antes da morte, como as vítimas
destinadas aos deuses eram afagadas e lisonjeadas para que pudessem
seguir felizes para a pedra da imolação sem ultrajar os deuses com
infelicidade.
Cyrus
explicou suavemente a Adam a natureza de um soldado. E embora seu
conhecimento viesse de uma pesquisa mais do que da experiência, ele
era exato. Contou ao filho da triste dignidade que pode caber a um
soldado, como ele é necessário à luz de todos os fracassos do
homem — a punição por nossas fraquezas. Talvez Cyrus descobrisse
essas coisas em si mesmo enquanto as contava. Era muito diferente da
atitude belicosa de agitar bandeiras e proferir gritos dos seus dias
de juventude. As humilhações são empilhadas sobre um soldado,
dizia Cyrus, a fim de que ele possa, quando a ocasião chegar, não
se ressentir demais da humilhação final — uma morte sem sentido e
suja. E Cyrus falava com Adam sozinho e não permitia que Charles
ouvisse.
Cyrus
levou Adam para caminhar com ele num fim de tarde e as conclusões
sombrias de todo o seu pensamento e de todo o seu estudo saíram e
extravasaram com uma espécie de terror denso sobre o filho. Ele
disse:
— Quero
que saiba que um soldado é o mais sagrado de todos os humanos porque
é o mais testado... o mais testado de todos. Vou tentar lhe contar.
Veja só, em toda a história os homens foram ensinados que matar
outro homem é uma coisa má e inaceitável. Todo homem que mata deve
ser destruído porque matar é um grande pecado, talvez o pior pecado
que conhecemos. E então nós pegamos um soldado e colocamos o
assassinato na sua mão e dizemos: “Use-o bem, e use-o com
sabedoria.” Não colocamos nenhum freio sobre ele. Siga em frente e
mate tantos dos seus irmãos, segundo um certo tipo de classificação,
quantos for capaz. E nós o recompensaremos por isso porque é uma
violação do seu treinamento inicial.
Adam
umedeceu seus lábios secos, tentou perguntar e não conseguiu,
tentou de novo.
— Por
que eles têm de fazer isto? — disse. — Por quê?
Cyrus
ficou profundamente comovido e falou como nunca tinha falado antes.
— Não
sei — disse. — Estudei e talvez tenha aprendido como são as
coisas, mas ainda não me aproximei sequer de saber por que são
assim. E você não deve esperar que as pessoas entendam o que fazem.
Tantas coisas são feitas instintivamente, como a abelha faz mel,
como a raposa mergulha as patas num regato para enganar os cães. Uma
raposa não é capaz de dizer por que o faz e qual abelha se lembra
do inverno ou espera que ele volte? Quando eu soube que você tinha
de ir, pensei em deixar o futuro aberto para que você pudesse
desenterrar suas próprias descobertas, mas depois pareceu melhor se
eu pudesse protegê-lo com o pouco que sei. Você deve ir em breve,
já chegou à idade.
— Não
quero ir — disse Adam rapidamente.
— Você
irá em breve — prosseguiu seu pai, sem lhe dar ouvidos. — E
quero lhe contar para que não se surpreenda. Primeiro vão tirar
suas roupas, mas irão mais longe do que isso. Vão arrancar qualquer
dignidade que você tenha. Você vai perder o que considera seu
direito decente de viver e de ser deixado em paz para viver. Vão
fazê-lo viver, comer, dormir e defecar perto de outros homens. E
quando o vestirem de novo, você não será capaz de se distinguir
dos outros. Não poderá sequer usar um retalho ou pregar uma nota
com alfinete no seu peito para dizer “Este sou eu, separado do
resto”.
— Não
quero fazer isto — disse Adam.
— Depois
de um tempo — prosseguiu Cyrus —, você não vai pensar nada que
os outros também não pensem. Não vai conhecer nenhuma outra
palavra que os outros não falem. E tudo o que fizer vai fazer porque
os outros fazem. Sentirá o perigo na menor das diferenças, um
perigo para todo grupo de homens que pensa igual e age igual.
— E
se eu não fizer? — perguntou Adam.
— Sim
— disse Cyrus —, às vezes isso acontece. De vez em quando
aparece um homem que não quer fazer o que é exigido dele. E sabe o
que acontece? Toda a máquina se devota friamente à destruição da
diferença. Eles arrasam o seu espírito e os seus nervos, seu corpo
e sua mente, com bastões de ferro até que a perigosa diferença
deixe você. E, se no fim você acaba não cedendo, eles o vomitam e
deixam-no fedendo do lado de fora; sem ser parte deles e, no entanto,
sem estar livre. É melhor aderir a eles. Só fazem isso para se
proteger. Uma coisa tão triunfalmente ilógica, tão belamente sem
sentido, que nenhum Exército pode permitir que qualquer
questionamento a enfraqueça. Dentro dela, se você não quiser
medi-la com outras coisas para compará-la ou ridicularizá-la, vai
encontrar, lenta e seguramente, uma razão, uma lógica e uma espécie
de terrível beleza. Um homem que consegue aceitá-la nunca é um
homem pior, e às vezes é um homem muito melhor. Ouça bem o que
digo, porque meditei muito sobre o assunto. Existem alguns homens que
enfrentam o triste massacre da vida de soldado, se entregam, e se
tornam homens sem rosto. Mas esses já não tinham muito rosto desde
o início. E talvez você seja assim. Mas existem outros que
enfrentam o desafio, submergem no atoleiro comum e depois se erguem
mais alto do que antes, porque... porque perderam um pouco da vaidade
e ganharam todo o ouro da companhia e do regimento. Se você é capaz
de descer tão baixo, será capaz de se erguer ainda mais alto do que
pode conceber, e conhecerá uma alegria sagrada, um companheirismo
quase como aquele de uma companhia celestial de anjos. Então você
conhecerá a qualidade dos homens, ainda que sejam inarticulados.
Mas, antes de ter caído até o fundo, nunca poderá saber disso.
Enquanto
caminhavam de volta para casa, Cyrus virou à esquerda e entrou no
quintal entre as árvores, e estava anoitecendo. Subitamente, Adam
disse:
— Está
vendo aquele toco ali? Eu costumava me esconder entre as raízes e às
vezes ia lá só porque me sentia infeliz.
— Vamos
lá ver o lugar — disse seu pai. Adam o levou até o local e Cyrus
baixou os olhos para ver o buraco em forma de ninho entre as raízes.
— Eu sabia disso há muito tempo — disse ele. — Certa vez,
quando você ficou um longo tempo sem aparecer, achei que tinha
encontrado um lugar assim e o encontrei porque sabia o tipo de lugar
de que precisaria. Vê como a terra está amassada e a grama
esmagada? E enquanto estava sentado aqui você arrancava pedaços de
casca e os quebrava em pedacinhos. Soube que era este o lugar quando
topei com ele.
Adam
olhou para o seu pai, admirado.
— O
senhor nunca veio aqui à minha procura — disse ele.
— Não
— respondeu Cyrus. — Eu não faria isso. Não se deve pressionar
demais um ser humano. Eu não faria isso. Sempre se deve deixar um
escape a um homem antes da morte. Lembre-se disso! Eu sabia, creio
eu, como o estava pressionando. Não queria empurrá-lo para o
abismo.
Afastaram-se
das árvores inquietos. Cyrus disse:
— Há
tantas coisas que quero lhe contar. Esqueço a maior parte delas.
Quero lhe dizer que um soldado abre mão de tanta coisa para
conseguir um pouco de volta. Desde o dia em que nasce é ensinado por
toda circunstância, por toda lei, regra e direito, a proteger sua
própria vida. Começa com aquele grande instinto e tudo o confirma.
E então se torna um soldado e deve aprender a violar tudo isso: deve
aprender friamente a se expor ao risco de perder a própria vida sem
ficar louco. E se você for capaz de fazer isto, alguns não
conseguem, então terá o maior dom de todos. Escute, filho — disse
Cyrus com sinceridade. — Quase todos os homens têm medo e nem
mesmo sabem o que causa o seu medo: sombras, perplexidades, perigos
sem nomes e números, o medo de uma morte sem rosto. Mas se você
puder se preparar para encarar não sombras, mas uma morte real,
descrita e reconhecível, por bala, sabre ou lança, então nunca
mais precisará ter medo, pelo menos não do mesmo jeito de antes.
Então você será um homem, distinto dos outros homens, seguro de si
enquanto outros homens podem chorar de terror. Essa é a grande
recompensa. Talvez seja a única recompensa. Talvez seja a pureza
final toda cercada de sujeira. Está quase escuro. Quero falar com
você de novo amanhã à noite, quando nós dois tivermos pensado
sobre o que eu lhe contei.
Mas
Adam disse:
— Por
que não fala com meu irmão? Charles deverá ir. Ele é bom nisso,
muito melhor do que eu.
— Charles
não vai para o Exército — disse Cyrus. — Não haveria sentido
nisso.
— Mas
seria um melhor soldado.
— Só
por fora — disse Cyrus. — Não por dentro. Charles não tem medo
e por isso jamais aprenderia algo sobre coragem. Nada sabe fora de si
mesmo, por isso nunca poderia absorver as coisas que tentei lhe
explicar. Colocá-lo num exército seria dar vazão a coisas em
Charles que precisam ser refreadas, não desencadeadas. Eu não
ousaria deixá-lo ir.
Adam
se queixou.
— O
senhor nunca o puniu, deixou que levasse sua vida, elogiou-o, não o
perseguiu, e agora o deixa ficar fora do Exército.
Parou,
assustado com o que tinha dito, receando a raiva ou o desprezo ou a
violência que suas palavras poderiam detonar.
Seu
pai não respondeu. Continuou caminhando para longe das árvores, a
cabeça tão baixa que o queixo repousava no peito, e o sobe-e-desce
do seu quadril quando a perna de pau tocava no chão era monótono. A
perna de pau descrevia um semicírculo para o lado quando chegava a
sua vez.
Estava
completamente escuro agora, e a luz dourada dos lampiões brilhava
através da porta aberta da cozinha. Alice veio até a porta e
espiou, à procura deles, e então ouviu os passos desiguais se
aproximando e voltou à cozinha.
Cyrus
foi até o alpendre da cozinha antes de parar e erguer a cabeça.
— Onde
está você? — perguntou.
— Aqui,
bem atrás do senhor, bem aqui.
— Você
fez uma pergunta. Acho que vou ter de responder. Talvez seja bom e
talvez seja ruim respondê-la. Você não é muito esperto. Não sabe
o que quer. Não tem a impetuosidade necessária. Deixa os outros
pisarem em você. Às vezes acho que é um fraco e que nunca chegará
sequer a cocô de cachorro. Isso responde à sua pergunta? Eu amo
mais você. Sempre amei. Pode ser uma coisa ruim de lhe dizer, mas é
verdade. Amo você mais do que todos. Se não, por que me teria dado
o trabalho de magoá-lo? Agora cale a boca e vá cear. Falarei com
você amanhã à noite. Minha perna está doendo.
John Steinbeck, em À leste do Éden
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