quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A violência de um coração

Uma escritora inglesa, Virginia Woolf, querendo provar que mulher nenhuma, na época de Shakespeare, poderia ter escrito as peças de Shakespeare, inventou para este último uma irmã que se chamaria Judith.
Judith teria o mesmo temperamento que seu irmãozinho William, e a mesma vocação.
Na verdade, seria outro Shakespeare, só que, por delicada fatalidade da natureza, seria mulher.
Antes, em poucas palavras, Virginia Woolf descreveu a vida do próprio William:
Frequentara escolas, estudara em latim Ovídio, Virgílio, Horácio, além de absorver os outros princípios de cultura de sua época.
Em menino, caçara coelhos, perambulara pelas vizinhanças, espiara bem o que queria espiar, armazenando infância (isso digo eu).
Como rapazinho, foi obrigado a casar-se, por questão de honra, um pouco apressadamente demais.
O casamento forçado e prematuro fez nascer nele uma grande vontade de escapar.
E ei-lo a caminho de Londres, em busca da sorte.
Como depois foi posteriormente bem provado, William tinha gosto por teatro. Começou então por empregar-se como “olheiro” de cavalos, à porta de um teatro. Passou a imiscuir-se entre os atores. Conseguiu ser um deles. Frequentou o mundo, aguçou a experiência e as palavras ao ter contato com as ruas e o povo, ganhou acesso ao palácio da rainha e terminou sendo aquele que pelos séculos se chamará sempre William Shakespeare.
E Judith?
Para começo de conversa, Judith não seria mandada para a escola, pois era menina.
E ninguém lê latim sem ao menos ter aprendido as declinações. É verdade que, tendo tanta avidez por aprender, às vezes pegava nos livros do irmão. Os pais intervinham: mandavam-na cerzir meias ou vigiar o assado.
Não era por mal, mas adoravam-na e queriam que ela se tornasse no futuro uma verdadeira mulher. Eis que chega a época de casar. Judith ainda não queria. E, igual ao irmão, sonhava com o amplo mundo. Negou-se a casar-se. Então apanhou do pai, que era bom pai e queria a sua felicidade, e viu correrem as lágrimas da mãe, que era suave e sofria pelo destino da filha.
Em luta contra tudo – pois é preciso não esquecer que Judith tinha o mesmo ímpeto de seu irmão William – em luta contra tudo, ela arrumou uma trouxa de roupa e fugiu para Londres.
Também Judith gostava de teatro. Parou à porta de um, disse que queria trabalhar com os artistas, ser um deles. Foi uma risada geral, todos logicamente imaginaram outra coisa diante daquela mocinha inexperiente e ingênua.
Sem dinheiro, sem comida, sem emprego, restava-lhe andar pelas ruas.
Finalmente alguém – e era um homem – teve pena dela. Através da qual, quero dizer, da pena, em breve Judith esperava um filho.
Até que, numa noite de inverno, ela se matou.
E assim acaba a história que não existiu.
Quem”, diz Virginia Woolf, “poderá calcular o calor e a violência de um coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?”

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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