domingo, 6 de outubro de 2024

Do espírito de gravidade | 2


Quem um dia ensinar os homens a voar, deslocará todos os marcos de limites; os marcos mesmos voarão pelos ares, e esse alguém batizará de novo a terra — de “a Leve”.
A avestruz corre mais velozmente que o mais ligeiro cavalo, mas também enfia a cabeça pesadamente na terra pesada: assim também o homem que ainda não sabe voar.
Pesadas são, para ele, terra e vida; e assim quer o espírito de gravidade! Mas quem quiser ficar mais leve, tornando-se pássaro, tem de amar a si mesmo: — é o que ensino eu.
Não, decerto, com o amor dos enfermos e alquebrados: pois neles até o amor-próprio cheira mal!
Deve-se aprender a amar a si mesmo — é o que ensino — com um amor são e saudável: de modo a se tolerar estar consigo e não vaguear.
Esse vaguear batiza a si mesmo de “amor ao próximo”: foi com essa expressão que melhor mentiram e fingiram até hoje, especialmente aqueles que pesavam para todos.
E, em verdade, não é este um mandamento para hoje e amanhã, aprender a se amar. Entre todas as artes, é antes a mais sutil, mais astuciosa, a derradeira e mais paciente.
Pois tudo que é de si próprio se acha bem escondido do possuidor; de todas as cavernas de tesouros, a própria é a última a ser escavada — assim dispõe o espírito de gravidade.
Quase no berço já nos dão pesados valores e palavras: “bem” e “mal” — é como se chama esse dote. Por causa dele nos perdoam que vivamos.
E deixam que vão a si as criancinhas, a tempo de impedir que elas amem a si próprias: assim dispõe o espírito de gravidade.
E nós — carregamos fielmente o que nos dão em dote, em duros ombros e por ásperas montanhas! E, se suamos, nos dizem: “Sim, a vida é um fardo!”.
Mas apenas o homem é um fardo para si mesmo! Isso porque carrega nos ombros muitas coisas alheias. Tal como o camelo, põe-se de joelhos e deixa que o carreguem bastante.
Em especial o homem forte, resistente, no qual é inerente a veneração: demasiados valores e palavras pesados alheios põe ele sobre si — e então a vida lhe parece um deserto!
E, em verdade! Também muita coisa própria é difícil de carregar! E muito do interior do homem é como a ostra, ou seja, repugnante, escorregadio e difícil de agarrar —,
de maneira que uma casca nobre, com nobres adornos, precisa interceder a seu favor. Mas também essa arte se deve aprender, a de ter casca, aparência formosa e sagaz cegueira!
E engana sobre muita coisa no homem o fato de muitas cascas serem pobres, tristes, cascas demais. Muita força e bondade oculta não é jamais adivinhada; os mais deliciosos petiscos não acham apreciadores!
As mulheres sabem disso, as mais deliciosas: um pouco mais magra, um pouco mais gorda — oh, quanto destino se acha em tão pouco!
O homem é difícil de descobrir, e descobrir a si mesmo, o mais difícil de tudo; com frequência, o espírito mente acerca da alma. Assim dispõe o espírito de gravidade.
Mas descobriu a si mesmo quem diz: “Este é meu bem e meu mal”: com isso fez calar o anão e toupeira que diz “Bom para todos, mau para todos”.
Em verdade, também não gosto daqueles para quem cada coisa é boa e este mundo é inclusive o melhor. A esses denomino os contentes com tudo.
O contentamento com tudo, que sabe de tudo gostar: este não é o melhor gosto! Respeito os estômagos e línguas rebeldes e exigentes, que aprenderam a dizer “Eu”, “Sim” e “Não”.
Mas tudo mastigar e digerir — isso é uma autêntica maneira de porco! Sempre dizer “I-A” — isso apenas o asno aprendeu, e quem tem seu espírito! —
O amarelo profundo e o vermelho quente: é o que deseja o meu gosto — ele mistura sangue a todas as cores. Mas quem caia sua casa, esse revela uma alma caiada.
Uns enamorados de múmias, outros, de fantasmas; e todos igualmente hostis à carne e ao sangue — oh, como repugnam ao meu gosto! Pois eu amo o sangue.
E não quero viver e estar ali onde todo mundo cospe e escarra: pois esse é meu gosto — preferiria viver entre bandidos e perjuros. Ninguém tem ouro na boca.
Ainda mais repugnantes me são os puxa-sacos; e o mais repugnante animal que encontrei entre os homens denominei parasita: esse não queria amar e, no entanto, queria viver de amor.
Desventurados chamo a todos aqueles que têm uma só escolha: tornar-se maus animais ou maus domadores de animais: entre eles eu jamais levantaria tendas.
Desventurados também chamo aqueles que sempre devem esperar — eles repugnam ao meu gosto: todos os alfandegários, merceeiros, reis e outros guardiães de terras e de lojas.
Em verdade, aprendi também a esperar, e bastante — mas somente a esperar por mim. E sobretudo aprendi a ficar em pé, andar, correr, saltar, escalar e dançar.
Mas este é o meu ensinamento: quem um dia quiser aprender a voar, deve primeiramente aprender a ficar em pé, andar, correr, saltar, escalar e dançar: — não se aprende a voar voando!
Com escadas de corda aprendi a escalar muitas janelas, com pernas ágeis subi em altos mastros: estar sobre altos mastros do conhecimento não me pareceu bem-aventurança pequena, —
cintilar como pequenas flamas sobre altos mastros: uma luz pequena, decerto, mas um grande consolo para navegantes e náufragos perdidos! —
Por muitos caminhos e meios diferentes alcancei minha verdade; não apenas por uma escada subi às alturas de onde meu olho vagueia pelas distâncias que são minhas.
E somente com relutância perguntei pelos caminhos — isto sempre repugnou ao meu gosto! Preferi perguntar e tentear os próprios caminhos.
Um perguntar e tentear era todo o meu andar: — e, em verdade, deve-se aprender também a responder a tal perguntar! Mas este — é meu gosto:
não que seja bom ou seja ruim, mas meu gosto, de que não me envergonho nem escondo.
Este — é o meu caminho, — qual é o vosso?”, assim respondi aos que me perguntaram pelo “caminho”. Pois o caminho — não existe!
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário