quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Bons livros ruins


Não faz muito tempo, uma editora me incumbiu de escrever a introdução para a reimpressão de um romance de Leonard Merrick. Essa editora, ao que parece, vai relançar uma série de romances menores e até certo ponto esquecidos do século xx. Trata-se de um serviço valioso nestes tempos carentes de livros, e invejo muito a pessoa cujo trabalho será vasculhar as caixas de livros, baratos, à caça de seus exemplares preferidos da meninice.
Um tipo de livro que dificilmente produzimos nos dias de hoje, mas que floresceu com enorme riqueza no fim do século XIX e início do século XX, é o que Chesterton chamou de “bom livro ruim”: ou seja, o tipo de livro sem pretensões literárias, mas que continua legível depois de obras mais sérias terem perecido. Com certeza, livros notáveis nessa linha são Raffles [nome do ladrão “cavalheiro”, personagem de uma série de romances de Ernest William Hornung] e as histórias de Sherlock Holmes, cujos lugares foram preservados, enquanto inúmeros “romances desajustados”, “documentos humanos” e “denúncias terríveis” disso e daquilo caíram no merecido esquecimento. (Quem envelheceu melhor: Conan Doyle ou George Meredith?) Quase na mesma classificação coloco os primeiros contos de Richard Austin Freeman — “The singing bone” [O osso canoro] e “The eye of Osiris” [O olho de Osíris], entre outros —, Max Carrados, de Ernest Bramah, e, baixando um pouco o nível, o thriller tibetano de Guy Boothby, Dr. Nikola, uma espécie de versão escolar de Travels in Tartary [Viagens na Tartária], de Evariste-Regis Huc, que provavelmente faria de uma visita real à Ásia Central um anticlímax desolador.
Mas, afora thrillers, havia os escritores bem-humorados menores do período. Por exemplo, Pett Ridge — embora eu reconheça que seus livros já não pareçam de todo legíveis —, Edith Nesbit (The treasure seekers [Os caçadores de tesouro]), George Birmingham, que foi bom enquanto permaneceu longe da política, o pornográfico Arthur Binstead (o “Pitcher” de Pink ’Un and the pelican [O rosado e o pelicano]) e, se livros americanos podem ser incluídos, as histórias do menino Penrod, de Newton Booth Tarkington. Superior a esses era Barry Pain. Creio que ainda se encontram alguns dos escritos bem-humorados de Pain, mas, para quem topar com ele, recomendo um livro que hoje deve ser raríssimo: The octave of Claudius [A oitava de Cláudio], um brilhante exercício do macabro. De uma época um pouco posterior, houve Peter Blundell, que escreveu na veia de William Wymark Jacobs sobre cidades portuárias do Extremo Oriente e que de forma inexplicável parece bastante esquecido, apesar de ter recebido um elogio de H. G. Wells em texto publicado.
No entanto, todos os livros a que me referi são abertamente literatura de “escapismo”. Constituem agradáveis refúgios em nossa memória, cantos sossegados por onde a mente pode vagar curiosa de vez em quando, mas que quase não pretendem ter algo a ver com a vida real. Existe outro tipo de bom livro ruim com intenções mais sérias que acho que nos fala alguma coisa sobre a natureza do romance e os motivos de sua decadência atual. Durante os últimos cinquenta anos, houve uma série de escritores — alguns deles continuam a escrever — que é totalmente impossível chamar de “bons” de acordo com qualquer padrão literário, mas que são romancistas genuínos e parecem alcançar sinceridade em parte por não se deixarem inibir pelo bom gosto. Nessa categoria coloco o próprio Leonard Merrick, W. L. George, John Davys Beresford, Ernest Raymond, May Sinclair e — num nível um pouco mais baixo, mas ainda essencialmente semelhante — Arthur Stuart-Menteith Hutchinson.
Muitos deles foram escritores prolíficos, com uma produção de qualidade certamente variada. Em cada caso, penso em um ou dois livros excepcionais: por exemplo, Cynthia, de Merrick; A candidate for truth [Um candidato à verdade], de John Davys Beresford; Caliban, de W. L. George; The combined maze [O labirinto combinado], de May Sinclair; e We, the accused [Nós, os acusados], de Ernest Raymond. Em cada um desses, o autor foi capaz de se identificar com os personagens que imaginou, sentir com eles e solicitar compreensão em nome deles, com uma espécie de abandono que pessoas mais hábeis teriam dificuldade de alcançar. Eles ressaltam o fato de que o refinamento intelectual pode ser uma desvantagem para um romancista, assim como seria para um comediante do teatro de variedades.
Tomemos, por exemplo, We, the accused, de Ernest Raymond — uma história de homicídio estranhamente sórdida e convincente, baseada talvez no caso Crippen [médico londrino que em 1910 matou a mulher, Cora Crippen]. Acho que se beneficia bastante do fato de que o autor capta apenas em parte a patética vulgaridade das pessoas sobre quem escreve e por isso não as despreza. Talvez até — como An american tragedy [Uma tragédia americana], de Theodore Dreiser — se beneficie um pouco da forma canhestra e prolixa como é escrito; detalhes se acumulam sobre detalhes, quase nem há uma só tentativa de seleção, e com isso se constrói pouco a pouco um efeito de crueldade terrível e excruciante. O mesmo ocorre em A candidate for truth. Nesse caso não há mesmo caráter canhestro, mas há a mesma capacidade de encarar com seriedade os problemas das pessoas comuns. O mesmo ocorre em Cynthia e na primeira parte de Caliban. Grande parte do que W. L. George escreveu eram tolices da pior qualidade, mas neste livro específico, baseado na carreira do britânico Alfred Northcliffe, conseguiu fazer algumas descrições memoráveis e verdadeiras da vida da classe média baixa de Londres. Partes do livro são provavelmente autobiográficas, e uma das vantagens dos bons escritores ruins é não terem vergonha de escrever autobiografia. O exibicionismo e a autocomiseração são as perdições do romancista, mas se ele tiver muito medo disso o talento criativo pode sofrer.
A existência da boa literatura ruim — o fato de podermos nos entreter, ficar irrequietos ou mesmo emocionados com um livro que nosso intelecto simplesmente se recusa a levar a sério — é um lembrete de que arte não é a mesma coisa que cerebração. Imagino que, por qualquer critério que se possa conceber, Carlyle seria considerado mais inteligente do que Trollope. No entanto Trollope continua legível, e Carlyle não: apesar de toda a sua engenhosidade, não teve sequer a perspicácia de escrever num inglês direto e de fácil compreensão. Nos romancistas, quase tanto quanto nos poetas, é difícil identificar a ligação entre inteligência e força criativa. Um bom romancista pode ser um prodígio de autodisciplina como Flaubert ou um intelectual disperso como Dickens. Talento suficiente para originar dezenas de escritores comuns foi despejado nos pretensos romances de Wyndham Lewis, por exemplo Tarr ou Snooty baronet [O baronete arrogante]. No entanto, exigiria um esforço enorme ler um desses livros do começo ao fim. Falta-lhes uma qualidade indefinível, uma espécie de vitamina literária que existe até num livro como If winter comes [Se o inverno chegar, de Hutchinson].
Talvez o exemplo máximo do bom livro ruim seja A cabana do pai Tomás [de Harriet Beecher Stowe]. É um livro risível sem essa intenção, cheio de incidentes melodramáticos absurdos; é também profundamente emocionante e essencialmente verdadeiro; difícil dizer qual qualidade pesa mais do que a outra. Mas A cabana do pai Tomás tenta, afinal, ser sério e tratar do mundo real. Que tal os escritores francamente escapistas, os fornecedores de sensações fortes e humor “leve”? Que tal Sherlock Holmes, Vice-versa [de F. Anstey], Drácula [de Bram Stoker], Helen’s babies [de John Habberton] ou As minas do rei Salomão [de Henry Rider Haggard]? São todos livros absurdos, é indiscutível, livros que nos predispõem a caçoar deles, e não a nos entreter com eles, e que mal foram levados a sério mesmo pelos autores; mas sobreviveram e talvez continuem a sobreviver. Tudo o que podemos dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que precisemos de distração de vez em quando, a literatura “leve” tem lugar reservado; e também podemos dizer que existe a pura habilidade, ou graça inata, que pode ter mais valor de sobrevivência do que a erudição ou o poder intelectual. Existem canções do teatro de variedades que são poemas melhores do que a quase totalidade do conteúdo que integra as antologias:

Vem pra onde beber custa quase nada,
Vem pra onde a caneca é quase uma tina,
Vem pra onde o patrão é mais camarada,
Vem pro bar que fica logo ali na esquina!1

Ou também:

Dois olhos bem roxinhos —
Oh, mas que maçada!
Só por falar com a pessoa errada,
Dois olhos bem roxinhos!2

Eu preferiria ter escrito um desses versos a, digamos, “The blessed damozel” [A donzela abençoada, de Dante Gabriel Rossetti] ou “Love in the valley” [Amor no vale, de George Meredith]. E como prova do que digo, aposto que A cabana do pai Tomás sobreviverá às obras completas de Virginia Woolf ou de George Moore, embora não conheça critério estritamente literário que mostre onde reside a superioridade.
Tribune, novembro de 1945.

1 Come where the booze is cheaper,/ Come where the pots hold more,/ Come where the boss is a bit of a sport,/ Come to the pub next door! (N. T.)
2 Two lovely black eyes —/ Oh, what a surprise!/ Only for calling another man wrong,/ Two lovely black eyes! (N. T.)

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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