Quando
minha filha sofria se preparando para os vestibulares, tendo de
memorizar informações que iam das causas da Guerra dos Cem Anos a
problemas de cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, eu lhe
dizia, como consolo: “Eu lhe juro, minha filha, que, dois meses
depois dos vestibulares, você terá esquecido tudo”. Há um
esquecimento que deriva da inteligência.
Água
fervendo, espaguete cozinhando. Nenhum cozinheiro seria tolo de levar
a água à mesa. O que importa é o espaguete. Para isso existe o
escorredor de macarrão: para deixar passar o que não vai ser
comido. A memória é um escorredor de macarrão: o que não vai ser
comido, ela esquece.
Há
pessoas que não esquecem nada: memória perfeita. Geralmente esse
fenômeno se observa em idiotas.
Depois
do sofrimento dos vestibulares vêm o vômito e a diarreia:
esquecimento. Expulsão das comidas não digeridas. Não por falta de
memória ou inteligência curta. A memória esquece porque quer
esquecer.
A
memória não carrega peso inútil em suas malas. Viaja leve. Leva
sempre duas malas. Numa estão os objetos úteis. Noutra estão os
objetos que dão prazer.
Um
homem que, desejoso de montar uma oficina, comprasse todas as
ferramentas que existem, seria considerado um tolo. Uma oficina se
monta com ferramentas que vão ser usadas. Mas o que nossas escolas
querem é que os alunos carreguem ferramentas que nunca serão
usadas. E depois se queixam de que elas são abandonadas.
Prova
de inteligência não é possuir todas as ferramentas. É possuir as
ferramentas de que se vai necessitar. Sabedoria oriental: “O tolo
soma ferramentas. O sábio diminui as ferramentas”. O importante
não é ter. É saber onde encontrar.
Se
o conhecimento científico de anatomia fosse condição para se fazer
amor, os professores de anatomia seriam amantes insuperáveis. Se o
conhecimento acadêmico da gramática fosse condição para se fazer
literatura, os gramáticos seriam escritores insuperáveis.
Não
me consta que o Kama-Sutra tenha sido escrito por um professor de
anatomia. Não conheço gramático que tenha feito literatura.
Gramática se faz com palavras mortas. Literatura se faz com palavras
vivas. Para se fazer amor com os livros é preciso esquecer da
gramática e aprender a música das palavras. Literatura é música.
Inventaram
um crime atroz, que deveria ser punido: fazer resumo das obras
literárias que vão cair no vestibular, para que o aluno não tenha
de lê-las! Ah! Queria mesmo é ver o resumo que fariam das
escrituras do Manoel de Barros.
Gramática
é necrotério, sala de anatomia, palavras mortas sob a ação do
bisturi da análise. Literatura são as palavras vivas, fazendo o que
elas bem desejam, à revelia de quem escreve. Mas aí eu pergunto:
quem sentirá vontade de fazer amor fazendo a necrópsia da amada
morta?
Jacob
Boehme, teólogo místico, afirmava que Deus é uma criança: Deus só
faz brincar. O Paraíso foi perdido quando a criança deixou de ser
um ser brincante e se transformou em trabalhador sério, adulto. A
felicidade não se encontra nem na vida futura anunciada pelo
protestantismo nem nos sacramentos administrados pelo catolicismo,
mas na transformação desta vida corpórea em alegre brincadeira.
Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba
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