Depois
de andarmos até onde nossas forças aguentaram, paramos para comer,
e a minha avó disse que estávamos indo para o litoral, para Uidá.
Eu não sabia onde ficava Uidá e também não me preocupei em
perguntar, pois estava mais interessada na estrada que nos levaria
até lá, cheia de gente usando panos, cortes de cabelo, marcas de
tribo e pinturas que eu nunca tinha visto antes. A estrada era
colorida e as pessoas também, com os corpos cobertos de poeira
amarela ou vermelha, indo de um lado para o outro, tanto para Savalu
como para Uidá. Ou melhor, na direção de Savalu ou de Uidá,
porque podiam pegar um desvio ou parar no meio do caminho. A maioria
das pessoas não usava nada sobre o corpo, e eu reparava nas mulheres
e pensava que elas não tinham os peitos tão bonitos quanto os da
minha mãe, e nem os homens tinham os membros duros como os dos
guerreiros de Adandozan. As crianças iam nas costas das mulheres, e,
nas cabeças, elas carregavam raízes de inhame, trouxas, fardos de
algodão, tinas de água e muitas outras coisas.
Na
maior parte do tempo seguíamos o rio, mas às vezes desviávamos das
montanhas sagradas, como as formigas tinham feito primeiro com o
riozinho do Kokumo e depois com o riozinho da minha mãe. Mas o rio
de verdade tinha outra cor, cor de barro, e em alguns lugares era
verde, muito verde, cheio de plantas. Às vezes era largo, como se
tivesse vários outros rios dentro dele, separados por pequenas ilhas
de terra ou de mato. As montanhas, de um lado e de outro da estrada,
e, em alguns pontos, embaixo dela, sob os nossos pés, eram altas e
nos cansavam bastante. Talvez por isso, pelo cansaço, quando
passávamos por alguns guerreiros permanecíamos deitadas por mais
tempo do que o realmente necessário. Fazíamos isso para nos
esconder deles, pois poderiam ser os mesmos que tinham estado em
Savalu. Saíamos da estrada e nos jogávamos atrás de uma árvore,
de uma moita ou de uma pedra que pudessem nos proteger, e ficávamos
quietas até que a minha avó dissesse que podíamos nos levantar. Eu
tinha vontade de perguntar se ela e a Taiwo também fechavam os olhos
para ficarem invisíveis. Eu os fechava e tudo desaparecia, como nós
também desaparecíamos dentro do escuro das cavernas onde parávamos
para dormir. Muitas vezes já havia gente lá dentro, mas sempre se
dava um jeito de caber mais. A minha avó estendia um pano no chão e
dormíamos as três dentro de uma outra existência qualquer, naquela
escuridão, sumidas do mundo para o qual voltávamos quando o sol
aparecia. Acho que os lagartos faziam a mesma coisa, e cheguei a
pensar que um deles nos seguiu desde Savalu, pois eram todos muito
parecidos. A pele verde ficava colorida quando o sol lambia as costas
deles, que estendiam as línguas finas e compridas para lamber o sol
também. Nessas horas, erguiam muito as cabeças e mantinham os olhos
fixos em qualquer coisa que também olhasse fixamente para eles,
depois tombavam o pescoço, ora para um lado, ora para o outro. Mas
os olhos continuavam parados, sem se moverem um tanto que fosse, e
nem eu nem a Taiwo jogávamos tão bem quando ficávamos amarradas ao
corpo da minha mãe, no mercado.
Andávamos
devagar e parávamos bastante, e por isso alguns dias se passaram até
não vermos mais montanhas, com a estrada se transformando em uma
linha riscando a floresta, que, mais adiante, também já não
existia mais, substituída por plantações, principalmente de
algodão e de palmeiras. O movimento aumentou e as casas já não
eram mais solitárias, embora aqueles agrupamentos ainda não
pudessem ser chamados de cidades. Em frente a um desses lugarejos, a
minha avó parou para conversar com um canoeiro. Ela deu a ele dois
colares de cauris e disse que dali em diante seguiríamos pelo rio. O
homem remou o resto de tarde, e, quando ficava cansado, deixava a
canoa seguir devagar e sozinha até perder força ou direção. Eram
os momentos de que eu mais gostava, pois tinha tempo de olhar bem
para as coisas, as pessoas e as paisagens, diferentes de tudo que eu
já tinha visto. Quando caiu a noite, o homem disse que não era
seguro seguir viagem, mesmo já estando perto, pois à noite não se
veem as armadilhas dos rios, e eles sempre têm muitas.
Atracamos
para dormir em um descampado e partimos bem cedo na manhã seguinte,
quando a luz do sol começava a dar contornos e colorido às margens
do rio, de onde acenavam para nós as mulheres com os peitos de fora
e as crianças que pescavam batendo as mãos na água para chamar os
peixes, igual ao Kokumo. Todos estavam alegres, menos a minha avó,
que parecia ter esquecido de como é que se sorri. Percebi que a
Taiwo também estava alegre, tanto quanto eu, mas fingia não estar,
pois tínhamos medo ou vergonha, não sei, de que a minha avó nos
visse sorrindo. Sempre que eu me lembrava de segurar o sorriso,
lembrava também da minha mãe e do Kokumo, principalmente quando o
homem parou a canoa e disse que já estávamos entrando em Uidá, que
dali em diante teríamos que seguir a pé. Aconteceu que, ao sair da
canoa, molhei os pés no rio e logo em seguida pisei a terra vermelha
da estrada, e o barro que se formou tinha a mesma cor dos riozinhos
de sangue. Não foi um bom sinal, mas eu não estava preparada para
levar a sério recados como aquele.
A
estrada era ainda mais interessante e bonita, com tanta gente de um
lado para o outro que me pareceu mais movimentada que o mercado de
Savalu, mesmo nos dias mais cheios, nos dias de festa. Havia pessoas
apenas andando, outras comerciando coisas como obi,omi,
aluá, acará, óleo de palma, utensílios de casa, panos coloridos e
fitas para cabelo. Eu queria uma e sabia que a Taiwo também queria,
pois eram fitas muito mais bonitas que as de Savalu. A minha avó
parou e comprou peixe cozido. Eu teria preferido a fita, mas comi.
Depois ela parou em outra barraca, nos mostrou para a mulher que
vendia acarás e ganhamos dois, em nome dos Ibêjis. As pessoas ficam
felizes em dar presentes aos ibêjis, pois é uma maneira de agradar
aos espíritos sagrados.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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