quinta-feira, 6 de junho de 2024

Empirismo

Parte da sabedoria do corpo é a sabedoria de ensinar. O corpo sabe ensinar, naturalmente, da mesma forma como a centopeia sabe andar, sem tropeçar. Onde foi que a mãe aprendeu a ensinar o filho a andar? Em lugar algum. A arte de ensinar a andar, sem saber ela já sabia. O corpo sabe sem precisar pensar. O corpo é sábio. O corpo é educador por graça, de nascimento. Não precisa de aulas de pedagogia. Veja o caso da linguagem. Procurei muito, mas não consegui encontrar coisa que se comparasse à linguagem em dificuldade para ser ensinada e aprendida: a quantidade enorme de palavras que têm de ser memorizadas, os gêneros, as concordâncias, a ordem, os tempos verbais, essa teia complexíssima de leis, as sutilezas do humor que vive nas ambiguidades (uma linguagem sem ambiguidades seria uma linguagem só para transmissão de informações, e não para comunicação humana; seria uma linguagem sem risos), a música do falar... No entanto, os que ensinam não se valem de teorias sobre a aquisição de linguagem, nada sabem sobre uma suposta pedagogia do falar, e não sabem que estão ensinando: são o pai, a mãe, o avô, a tia, a empregada, o jardineiro... E os que estão aprendendo, as crianças, não sabem que estão aprendendo, não são colocadas em salas de aulas para ser informadas e para aprender um saber sobre a linguagem. Os “professores” jamais falam de substantivos, subjuntivos, conjunções e preposições. E a aprendizagem é assombrosamente eficiente – sem necessidade de qualquer processo de avaliação. As crianças não aprendem saberes sobre a linguagem. Elas simplesmente aprendem a falar. Já nós, adultos, que vamos às escolas de língua para aprender uma língua estrangeira, e aprendemos a língua através dos saberes, nunca falamos a outra língua direito, temos de pensar, falamos com sotaque, e erramos a todo momento, a despeito de sabermos as regras da gramática.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

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