[…]
O
bispo assumira o seu ministério quando o marquês já se havia
afastado da vida pública, e mal se tinham visto. Além disso, era um
homem condenado por sua má saúde, com um corpanzil que o impedia de
se socorrer a si mesmo, e corroído por uma asma maligna que punha à
prova suas crenças. Não comparecera a numerosas efemérides,
públicas em que sua ausência era inconcebível, e nas poucas onde
aparecia mantinha, uma distância que o ia convertendo pouco a pouco
num ser irreal.
O
marquês o tinha visto algumas vezes, sempre de longe e em público,
mas a lembrança que lhe ficou dele foi de uma missa concelebrada à
qual assistiu debaixo de pálio e carregado em liteira por
dignitários do governo. Pelo corpo enorme e o aparato dos
ornamentos, parecia à primeira vista um ancião colossal, mas o
rosto glabro de traços exatos, com uns estranhos olhos verdes,
conservava intacta uma beleza sem idade. No alto da liteira, tinha um
nimbo mágico de Sumo Pontífice, e os que o conheciam de perto
sentiam também o brilho de sua sabedoria e sua consciência do
poder.
O
palácio onde vivia era o mais antigo da cidade, com dois andares de
vastos espaços e em ruínas, dos quais o bispo não ocupava nem a
metade de um. Ficava junto à catedral e tinha em comum com esta um
claustro de arcos enegrecidos e um pátio com um poço em ruínas
entre capinzais desertos. Até a fachada imponente de pedra lavrada e
seus portões de madeiras inteiriças revelavam os estragos do
abandono.
O
marquês foi recebido na porta principal por um diácono índio
Distribuiu esmolas miúdas entre os grupos de mendigos que se
arrastavam no vestíbulo, e penetrava na penumbra fresca da casa
quando soaram na catedral e ressoaram em seu ventre as badaladas
enormes das quatro da tarde. O corredor central estava tão escuro
que ele seguia o diácono sem vê-lo, vigiando cada passo para não
tropeçar em estátuas mal colocadas e em escombros atravessados. No
fim do corredor havia uma pequena antessala iluminada por uma
claraboia. O diácono parou, pediu ao marquês que esperasse sentado
e prosseguiu pela porta contígua. O marquês ficou de pé,
esquadrinhando na parede principal um grande retrato a óleo de um
jovem militar com o uniforme de gala dos alferes do rei. Só ao ler a
placa de bronze na moldura descobriu que era o retrato do bispo
jovem.
O
diácono abriu a porta para convidá-lo a entrar, e o marquês não
precisou mover-se para ver outra vez o bispo, agora quarenta anos
mais velho que no retrato. Era muito maior e mais imponente do que
diziam, embora sufocado pela asma e vencido pelo calor. Suava aos
borbotões e se balançava muito devagar numa cadeira de balanço
filipina, abanando-se com um leque de folha de palmeira e com o corpo
inclinado para a frente no esforço de respirar melhor. Calçava uns
botinões de roceiro e vestia uma camisola de fazenda grossa com
pedaços puídos pelos abusos do sabão. Notava-se à primeira vista
a sinceridade de sua pobreza. Entretanto, o mais notável era a
pureza dos seus olhos, que só podia entender-se como um privilégio
da alma.
Deixou
de balançar-se logo que viu o marquês à porta e fez-lhe um sinal
afetuoso com o leque.
— Entre,
Ygnacio — disse. — A casa é sua.
O
marquês enxugou na calça o suor das mãos, transpôs a porta e
viu-se num terraço ao ar livre, debaixo de um dossel de campânulas
amarelas e samambaias pendentes. Dali se avistavam as torres de todas
as igrejas, os telhados vermelhos das casas principais, os pombais
adormitados pelo calor, as fortificações militares perfiladas
contra o céu de vidro, e o mar ardente. O bispo estendeu com
benevolência sua mão de soldado, e o marquês beijou-lhe o anel.
Devido
à asma, sua respiração era forte e pedregosa, e suas frases
perturbadas por suspiros inoportunos e por uma tosse áspera e
breve, mas nada afetava sua eloquência. Logo estabeleceu um
intercâmbio fácil de miudezas cotidianas. Sentado diante dele, o
marquês agradeceu aquele preâmbulo de consolação, tão rico e
prolongado que foram surpreendidos pelas badaladas das cinco. Mais
que um som, foi uma trepidação, que fez vibrar a luz da tarde, e o
céu se encheu de pombas assustadas.
— É
horrível — disse o bispo. — Cada hora me ressoa nas entranhas
como um tremor de terra.
A
frase surpreendeu o marquês, pois era o mesmo que ele pensara quando
soaram as quatro. Ao bispo aquilo pareceu uma coincidência natural.
— As
ideias não são de ninguém — disse. Com o indicador, desenhou no
ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: — Andam voando
por aí, como os anjos.
Uma
freira de serviço trouxe uma jarra de duas asas com frutas picadas
num vinho espesso e uma bacia de águas fumegantes que impregnavam o
ar de um cheiro medicinal. O bispo aspirou o vapor com os olhos
fechados, e quando emergiu do êxtase era outro: dono absoluto de sua
autoridade.
— Fizemos-te
vir — disse ao marquês — porque sabemos que estás precisando de
Deus e te fazes de distraído.
A
voz tinha perdido suas tonalidades de órgão e seus olhos recobraram
o fulgor terreno. O marquês tomou de um trago a metade do copo de
vinho para ficar à vontade.
— Vossa
Senhoria Ilustríssima deve saber que carrego comigo a maior desgraça
que um ser humano pode sofrer — disse, com uma humildade
desconcertante. — Deixei de crer.
— Já
sabemos, filho — replicou o bispo sem surpresa, — Como não íamos
saber! Disse-o com certa alegria, porque também ele, aos vinte anos,
quando alferes do rei no Marrocos, tinha perdido a fé, em meio ao
fragor de um combate. “Foi a certeza fulminante de que Deus tinha
deixado de ser” disse. Aterrado, entregara-se a uma vida de oração
e penitência.
“Até
que Deus teve pena de mim e me indicou o caminho da vocação”,
concluiu.
— O
essencial não é que não creias, mas que Deus continue crendo em
ti, E sobre isso não há dúvida, pois em sua diligência infinita
foi Ele quem nos iluminou para te oferecermos este alívio.
— Eu
queria aguentar minha desgraça em silêncio — disse o marquês.
— Pois
muito mal o conseguiste — disse o bispo. — É um segredo público
que tua pobre filha rola pelo chão, tomada de convulsões obscenas e
ladrando em gíria de idólatras. Não são sintomas inequívocos de
uma possessão demoníaca? O marquês estava espantado.
— Que
quer dizer? — Que entre as numerosas espertezas do demônio é
muito frequente a de assumir a aparência de uma doença imunda para
se introduzir num corpo inocente — disse. — E uma vez dentro, não
há força humana que o faça sair.
O
marquês explicou as características médicas da mordida do
cachorro, mas o bispo encontrava sempre uma explicação a seu favor.
Perguntou
o que sem dúvida sabia até demais.
— Sabes
quem é Abrenuncio? — Foi o primeiro médico que viu a menina disse
o marquês.
— Eu
queria ouvir isso de tua própria voz.
Sacudiu
uma sineta que mantinha a seu alcance, e apareceu logo um sacerdote
de seus trinta anos, como se fosse um gênio libertado da garrafa.
Foi apresentado como o padre Cayetano Delaura, nada mais, pelo bispo,
que o mandou sentar. Vestia uma batina caseira, por causa do calor, e
calçava uns botinões iguais aos do bispo. Era intenso, pálido, de
olhos vivazes, cabelo muito preto com uma mecha branca na frente. Sua
respiração breve e suas mãos quentes não pareciam de um homem
feliz.
— Que
sabemos de Abrenuncio — perguntou-lhe o bispo.
O
padre Delaura não precisou pensar.
— Abrenuncio
de Sã Pereira Cão — disse, como que soletrando o nome.
E
em seguida dirigiu-se ao marquês: — Por certo tem conhecimento,
senhor marquês, do que o último sobrenome significa na língua dos
portugueses.
A
rigor, prosseguiu Delaura, não se sabia se aquele era o seu nome
verdadeiro. De acordo com os expedientes do Santo Ofício, era um
judeu português expulso da península e amparado aqui por um
governador agradecido, a quem curou uma hérnia de duas libras com as
águas depurativas de Turbaco. Falou de suas receitas mágicas, da
audácia com que vaticinava a morte, de uma presumível pederastia,
de suas leituras libertinas, de sua vida sem Deus. Contudo, a única
acusação concreta que lhe haviam feito era de ressuscitar um
alfaiatezinho remendão de Getsemaní. Houve testemunhos sérios de
que já estava amortalhado e no caixão quando Abrenuncio ordenou que
se levantasse. Por sorte, o próprio ressuscitado afirmou perante
tribunal do Santo Ofício que em nenhum momento perdera a
consciência. “Isso o salvou da fogueira!” disse Delaura. E, por
último, referiu-se ao episódio do cavalo morto no morro de São
Lázaro e sepultado em terra sagrada.
— Ele
o amava como a um ser humano — observou o marquês.
— Foi
uma afronta à nossa fé, senhor marquês — disse Delaura. —
Cavalos de cem anos não são coisa de Deus.
O
marquês se alarmou com o fato de que uma brincadeira privada tivesse
chegado aos arquivos do Santo Ofício. Esboçou uma tímida defesa: —
Abrenuncio é um maldizente, mas, com toda a humildade, acredito que
daí à heresia vai uma grande distância.
A
discussão teria sido azeda e interminável se o bispo não os
recolocasse no rumo perdido.
— Digam
o que disserem os médicos — falou a raiva nos humanos costuma ser
uma das muitas astúcias do Inimigo.
o
marquês não entendeu. A explicação que recebeu foi tão dramática
que parecia o prelúdio de uma condenação ao fogo eterno.
— Por
sorte — concluiu o bispo —, embora o corpo da menina seja
irrecuperável, Deus nos deu os meios para salvar sua alma.
A
opressão do anoitecer ocupou o mundo. O marquês viu a primeira
estrela no céu cor de malva, e pensou em sua filha, sozinha na casa
sórdida, arrastando o pé ferido pelos embustes dos curandeiros .
Perguntou com sua natural modéstia.
— Que
devo fazer? O bispo explicou ponto por ponto. Autorizou-o a usar seu
nome em cada gestão sobretudo no convento de Santa Clara, onde devia
internar a menina com urgência.
— Deixa-a
em nossas mãos — concluiu. — Deus fará o resto. Despediu-se o
marquês mais preocupado do que ao chegar. Da janela da carruagem
contemplou as ruas desoladas, os meninos tomando banho nus nas poças
o lixo espalhado pelos abutres. Virando uma esquina, avistou o mar,
sempre em seu lugar, e a incerteza o assaltou.
Com
o toque do ângelus, chegou à casa em trevas, e pela primeira vez
desde a morte de dona Olalla rezou em voz alta: O anjo do Senhor
anunciou a Maria. As cordas da tiorba ressoavam no escuro como no
fundo de um poço. O marquês seguiu às apalpadelas o rumo da música
até o quarto da filha. Lá estava ela, sentada na cadeira do
toucador, com a túnica branca e a cabeleira solta até o chão,
tocando um exercício primário que aprendera com ele. Não podia
acreditar que fosse a mesma que deixara ao meio-dia prostrada pela
inclemência dos curandeiros, salvo se tivesse acontecido um milagre.
Foi
uma ilusão instantânea. Sierva María notou sua chegada, parou de
tocar e recaiu na aflição.
Acompanhou-a
toda a noite. Ajudou-a na liturgia de ir para a cama com um sem-jeito
de papai improvisado. Pôs-lhe pelo avesso a camisola, que ela
precisou tirar para vesti-la pelo direito. Foi a primeira vez que a
viu nua, e doeu-lhe ver as suas costelas aparecendo, os peitinhos em
botão, a penugem tenra. O tornozelo inflamado tinha um halo ardente.
Enquanto
a ajudava a se deitar, a menina continuava padecendo sozinha com um
queixume quase inaudível, e veio-lhe num sobressalto a certeza de
que a estava ajudando a morrer.
Sentiu
a premência de rezar pela primeira vez desde que perdera a fé. Foi
até o oratório procurando com todas as forças recuperar o deus que
havia abandonado, mas era inútil; a incredulidade resiste mais que a
fé, porque os sentidos é que a sustentam. Escutou a menina tossir
várias vezes na fresca da madrugada, e foi ao seu quarto. Ao passar,
viu entreaberta a porta da alcova de Bernarda.
Empurrou
a porta, na ânsia de compartilhar suas dúvidas. Ela estava dormindo
no chão, de bruços, e roncando com fragor. O marquês parou, com a
mão na aldraba, e não a acordou. Falou para ninguém: “Tua vida
pela dela!”. E logo emendou: “Nossas duas vidas de merda pela
dela, caralho!” A menina dormia. O marquês a viu imóvel e murcha,
e se perguntou se preferia vê-la morta ou submetida ao castigo da
raiva. Arrumou o mosquiteiro para que os morcegos não a sangrassem,
cobriu-a para que não continuasse tossindo e permaneceu velando
junto à cama, com o gozo novo de que a amava como nunca havia amado
neste mundo. Então tomou a decisão de sua vida, sem consultar a
Deus nem a ninguém.
Às
quatro da manhã, quando Sierva Maria abriu os olhos, viu-o sentado
ao pé da cama.
— Está
na hora de irmos — disse o marquês.
A
menina se levantou sem mais explicações. O marquês ajudou-a a se
vestir para a ocasião. Procurou na arca uns chinelos de veludo,
para que o reforço das botinas não lhe machucasse o tornozelo, e
encontrou, sem procurá-lo, um vestido de festa que tinha sido da mãe
quando criança. Estava desbotado e maltratado pelo tempo, mas era
claro que não havia sido usado duas vezes. O marquês vestiu-o quase
um século depois em Sierva María por cima dos colares de feitiçaria
e do escapulário do batismo. Ficava um tanto apertado, o que de
certo modo aumentava sua antiguidade. Também desencavou na arca um
chapéu cujas fitas coloridas não tinham nada a ver com o vestido.
Estava na justa medida. Por último, acrescentou uma maleta de mão
com uma camisola de dormir, um pente de dentes apertados para extrair
até as larvas de piolho, e um pequeno breviário da avó, com
dobradiças de ouro e capas de nácar.
Era
Domingo de Ramos. O marquês levou Sierva María à missa das cinco e
ela recebeu de bom grado a palma abençoada sem saber para quê. À
saída viram da carruagem o amanhecer. O marquês no assento
principal, com a maleta no colo, e a menina impassível no assento em
frente, vendo passar pela janela as últimas ruas de seus doze anos.
Não manifestou a menor curiosidade por saber para onde a levavam tão
cedo vestida de Joana a Louca e com um chapéu de marafona. Depois de
uma longa meditação, o marquês lhe perguntou: — Sabes quem é
Deus? A menina negou com a cabeça. Havia relâmpagos e trovões
remotos no horizonte, o céu estava encoberto, e o mar, crespo. Ao
dobrarem uma esquina apareceu-lhes o convento de Santa Clara, alvo e
solitário, com três pavimentos de persianas azuis sobre um depósito
de lixo numa praia. O marquês apontou com o indicador. "Aí
está". Depois mostrou à esquerda — "Verás o mar das
janelas, a toda hora" Como a menina não se manifestasse,
deu-lhe a única explicação que jamais lhe daria sobre o seu
destino: — Vais te acalmar uns dias com as freirinhas de Santa
Clara.
Por
ser Domingo de Ramos, havia mais mendigos que de costume na porta da
roda. Alguns leprosos que com eles disputavam as sobras da cozinha se
precipitaram também para o marquês com a mão estendida. A cada um
ele deu uma esmola exígua, até onde lhe chegaram as moedas de um
quarto de real. A porteira, ao vê-lo com os seus tafetás negros e
ver a menina vestida de rainha, adiantou-se para atendê-los. O
marquês explicou que levava Sierva María por ordem do bispo. Dada a
segurança com que falou, a porteira não teve dúvida. Examinou o
aspecto da menina e tirou-lhe o chapéu.
— Aqui
é proibido chapéu — disse.
Ficou
com ele. O marquês quis entregar-lhe também a maleta, que ela
recusou: — Aqui não lhe faltará nada.
A
trança malfeita se desmanchou quase até o chão. A porteira não
acreditou que fosse natural. O marquês tentou enrolá-la. A menina
afastou-o e se houve sozinha com uma habilidade que surpreendeu a
freira.
— Vai
ser preciso cortá-la — disse.
É
uma promessa à Virgem Santíssima até o dia em que se casar —
disse o marquês.
A
porteira se inclinou à razão. Tomou Sierva María pela mão, sem
lhe dar tempo para uma despedida, e a passou pela porta da roda. Como
o tornozelo lhe doía ao caminhar, a menina tirou o chinelo esquerdo.
O marquês a viu afastar-se coxeando de pé descalço e com o chinelo
na mão. Esperou em vão que num raro instante de compaixão a filha
se voltasse para olhá-lo. A última lembrança que lhe ficou foi a
da menina acabando de atravessar a galeria do jardim a arrastar o pé
ferido, até desaparecer no pavilhão das enterradas vivas.
Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios
Nenhum comentário:
Postar um comentário