quinta-feira, 6 de junho de 2024

Capítulo dois (excerto final)


[…]

O bispo assumira o seu ministério quando o marquês já se havia afastado da vida pública, e mal se tinham visto. Além disso, era um homem condenado por sua má saúde, com um corpanzil que o impedia de se socorrer a si mesmo, e corroído por uma asma maligna que punha à prova suas crenças. Não comparecera a numerosas efemérides, públicas em que sua ausência era inconcebível, e nas poucas onde aparecia mantinha, uma distância que o ia convertendo pouco a pouco num ser irreal.
O marquês o tinha visto algumas vezes, sempre de longe e em público, mas a lembrança que lhe ficou dele foi de uma missa concelebrada à qual assistiu debaixo de pálio e carregado em liteira por dignitários do governo. Pelo corpo enorme e o aparato dos ornamentos, parecia à primeira vista um ancião colossal, mas o rosto glabro de traços exatos, com uns estranhos olhos verdes, conservava intacta uma beleza sem idade. No alto da liteira, tinha um nimbo mágico de Sumo Pontífice, e os que o conheciam de perto sentiam também o brilho de sua sabedoria e sua consciência do poder.
O palácio onde vivia era o mais antigo da cidade, com dois andares de vastos espaços e em ruínas, dos quais o bispo não ocupava nem a metade de um. Ficava junto à catedral e tinha em comum com esta um claustro de arcos enegrecidos e um pátio com um poço em ruínas entre capinzais desertos. Até a fachada imponente de pedra lavrada e seus portões de madeiras inteiriças revelavam os estragos do abandono.
O marquês foi recebido na porta principal por um diácono índio Distribuiu esmolas miúdas entre os grupos de mendigos que se arrastavam no vestíbulo, e penetrava na penumbra fresca da casa quando soaram na catedral e ressoaram em seu ventre as badaladas enormes das quatro da tarde. O corredor central estava tão escuro que ele seguia o diácono sem vê-lo, vigiando cada passo para não tropeçar em estátuas mal colocadas e em escombros atravessados. No fim do corredor havia uma pequena antessala iluminada por uma claraboia. O diácono parou, pediu ao marquês que esperasse sentado e prosseguiu pela porta contígua. O marquês ficou de pé, esquadrinhando na parede principal um grande retrato a óleo de um jovem militar com o uniforme de gala dos alferes do rei. Só ao ler a placa de bronze na moldura descobriu que era o retrato do bispo jovem.
O diácono abriu a porta para convidá-lo a entrar, e o marquês não precisou mover-se para ver outra vez o bispo, agora quarenta anos mais velho que no retrato. Era muito maior e mais imponente do que diziam, embora sufocado pela asma e vencido pelo calor. Suava aos borbotões e se balançava muito devagar numa cadeira de balanço filipina, abanando-se com um leque de folha de palmeira e com o corpo inclinado para a frente no esforço de respirar melhor. Calçava uns botinões de roceiro e vestia uma camisola de fazenda grossa com pedaços puídos pelos abusos do sabão. Notava-se à primeira vista a sinceridade de sua pobreza. Entretanto, o mais notável era a pureza dos seus olhos, que só podia entender-se como um privilégio da alma.
Deixou de balançar-se logo que viu o marquês à porta e fez-lhe um sinal afetuoso com o leque.
Entre, Ygnacio — disse. — A casa é sua.
O marquês enxugou na calça o suor das mãos, transpôs a porta e viu-se num terraço ao ar livre, debaixo de um dossel de campânulas amarelas e samambaias pendentes. Dali se avistavam as torres de todas as igrejas, os telhados vermelhos das casas principais, os pombais adormitados pelo calor, as fortificações militares perfiladas contra o céu de vidro, e o mar ardente. O bispo estendeu com benevolência sua mão de soldado, e o marquês beijou-lhe o anel.
Devido à asma, sua respiração era forte e pedregosa, e suas frases perturbadas por suspiros inoportunos e por uma tosse áspera e breve, mas nada afetava sua eloquência. Logo estabeleceu um intercâmbio fácil de miudezas cotidianas. Sentado diante dele, o marquês agradeceu aquele preâmbulo de consolação, tão rico e prolongado que foram surpreendidos pelas badaladas das cinco. Mais que um som, foi uma trepidação, que fez vibrar a luz da tarde, e o céu se encheu de pombas assustadas.
É horrível — disse o bispo. — Cada hora me ressoa nas entranhas como um tremor de terra.
A frase surpreendeu o marquês, pois era o mesmo que ele pensara quando soaram as quatro. Ao bispo aquilo pareceu uma coincidência natural.
As ideias não são de ninguém — disse. Com o indicador, desenhou no ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: — Andam voando por aí, como os anjos.
Uma freira de serviço trouxe uma jarra de duas asas com frutas picadas num vinho espesso e uma bacia de águas fumegantes que impregnavam o ar de um cheiro medicinal. O bispo aspirou o vapor com os olhos fechados, e quando emergiu do êxtase era outro: dono absoluto de sua autoridade.
Fizemos-te vir — disse ao marquês — porque sabemos que estás precisando de Deus e te fazes de distraído.
A voz tinha perdido suas tonalidades de órgão e seus olhos recobraram o fulgor terreno. O marquês tomou de um trago a metade do copo de vinho para ficar à vontade.
Vossa Senhoria Ilustríssima deve saber que carrego comigo a maior desgraça que um ser humano pode sofrer — disse, com uma humildade desconcertante. — Deixei de crer.
Já sabemos, filho — replicou o bispo sem surpresa, — Como não íamos saber! Disse-o com certa alegria, porque também ele, aos vinte anos, quando alferes do rei no Marrocos, tinha perdido a fé, em meio ao fragor de um combate. “Foi a certeza fulminante de que Deus tinha deixado de ser” disse. Aterrado, entregara-se a uma vida de oração e penitência.
Até que Deus teve pena de mim e me indicou o caminho da vocação”, concluiu.
O essencial não é que não creias, mas que Deus continue crendo em ti, E sobre isso não há dúvida, pois em sua diligência infinita foi Ele quem nos iluminou para te oferecermos este alívio.
Eu queria aguentar minha desgraça em silêncio — disse o marquês.
Pois muito mal o conseguiste — disse o bispo. — É um segredo público que tua pobre filha rola pelo chão, tomada de convulsões obscenas e ladrando em gíria de idólatras. Não são sintomas inequívocos de uma possessão demoníaca? O marquês estava espantado.
Que quer dizer? — Que entre as numerosas espertezas do demônio é muito frequente a de assumir a aparência de uma doença imunda para se introduzir num corpo inocente — disse. — E uma vez dentro, não há força humana que o faça sair.
O marquês explicou as características médicas da mordida do cachorro, mas o bispo encontrava sempre uma explicação a seu favor.
Perguntou o que sem dúvida sabia até demais.
Sabes quem é Abrenuncio? — Foi o primeiro médico que viu a menina disse o marquês.
Eu queria ouvir isso de tua própria voz.
Sacudiu uma sineta que mantinha a seu alcance, e apareceu logo um sacerdote de seus trinta anos, como se fosse um gênio libertado da garrafa. Foi apresentado como o padre Cayetano Delaura, nada mais, pelo bispo, que o mandou sentar. Vestia uma batina caseira, por causa do calor, e calçava uns botinões iguais aos do bispo. Era intenso, pálido, de olhos vivazes, cabelo muito preto com uma mecha branca na frente. Sua respiração breve e suas mãos quentes não pareciam de um homem feliz.
Que sabemos de Abrenuncio — perguntou-lhe o bispo.
O padre Delaura não precisou pensar.
Abrenuncio de Sã Pereira Cão — disse, como que soletrando o nome.
E em seguida dirigiu-se ao marquês: — Por certo tem conhecimento, senhor marquês, do que o último sobrenome significa na língua dos portugueses.
A rigor, prosseguiu Delaura, não se sabia se aquele era o seu nome verdadeiro. De acordo com os expedientes do Santo Ofício, era um judeu português expulso da península e amparado aqui por um governador agradecido, a quem curou uma hérnia de duas libras com as águas depurativas de Turbaco. Falou de suas receitas mágicas, da audácia com que vaticinava a morte, de uma presumível pederastia, de suas leituras libertinas, de sua vida sem Deus. Contudo, a única acusação concreta que lhe haviam feito era de ressuscitar um alfaiatezinho remendão de Getsemaní. Houve testemunhos sérios de que já estava amortalhado e no caixão quando Abrenuncio ordenou que se levantasse. Por sorte, o próprio ressuscitado afirmou perante tribunal do Santo Ofício que em nenhum momento perdera a consciência. “Isso o salvou da fogueira!” disse Delaura. E, por último, referiu-se ao episódio do cavalo morto no morro de São Lázaro e sepultado em terra sagrada.
Ele o amava como a um ser humano — observou o marquês.
Foi uma afronta à nossa fé, senhor marquês — disse Delaura. — Cavalos de cem anos não são coisa de Deus.
O marquês se alarmou com o fato de que uma brincadeira privada tivesse chegado aos arquivos do Santo Ofício. Esboçou uma tímida defesa: — Abrenuncio é um maldizente, mas, com toda a humildade, acredito que daí à heresia vai uma grande distância.
A discussão teria sido azeda e interminável se o bispo não os recolocasse no rumo perdido.
Digam o que disserem os médicos — falou a raiva nos humanos costuma ser uma das muitas astúcias do Inimigo.
o marquês não entendeu. A explicação que recebeu foi tão dramática que parecia o prelúdio de uma condenação ao fogo eterno.
Por sorte — concluiu o bispo —, embora o corpo da menina seja irrecuperável, Deus nos deu os meios para salvar sua alma.
A opressão do anoitecer ocupou o mundo. O marquês viu a primeira estrela no céu cor de malva, e pensou em sua filha, sozinha na casa sórdida, arrastando o pé ferido pelos embustes dos curandeiros . Perguntou com sua natural modéstia.
Que devo fazer? O bispo explicou ponto por ponto. Autorizou-o a usar seu nome em cada gestão sobretudo no convento de Santa Clara, onde devia internar a menina com urgência.
Deixa-a em nossas mãos — concluiu. — Deus fará o resto. Despediu-se o marquês mais preocupado do que ao chegar. Da janela da carruagem contemplou as ruas desoladas, os meninos tomando banho nus nas poças o lixo espalhado pelos abutres. Virando uma esquina, avistou o mar, sempre em seu lugar, e a incerteza o assaltou.
Com o toque do ângelus, chegou à casa em trevas, e pela primeira vez desde a morte de dona Olalla rezou em voz alta: O anjo do Senhor anunciou a Maria. As cordas da tiorba ressoavam no escuro como no fundo de um poço. O marquês seguiu às apalpadelas o rumo da música até o quarto da filha. Lá estava ela, sentada na cadeira do toucador, com a túnica branca e a cabeleira solta até o chão, tocando um exercício primário que aprendera com ele. Não podia acreditar que fosse a mesma que deixara ao meio-dia prostrada pela inclemência dos curandeiros, salvo se tivesse acontecido um milagre.
Foi uma ilusão instantânea. Sierva María notou sua chegada, parou de tocar e recaiu na aflição.
Acompanhou-a toda a noite. Ajudou-a na liturgia de ir para a cama com um sem-jeito de papai improvisado. Pôs-lhe pelo avesso a camisola, que ela precisou tirar para vesti-la pelo direito. Foi a primeira vez que a viu nua, e doeu-lhe ver as suas costelas aparecendo, os peitinhos em botão, a penugem tenra. O tornozelo inflamado tinha um halo ardente.
Enquanto a ajudava a se deitar, a menina continuava padecendo sozinha com um queixume quase inaudível, e veio-lhe num sobressalto a certeza de que a estava ajudando a morrer.
Sentiu a premência de rezar pela primeira vez desde que perdera a fé. Foi até o oratório procurando com todas as forças recuperar o deus que havia abandonado, mas era inútil; a incredulidade resiste mais que a fé, porque os sentidos é que a sustentam. Escutou a menina tossir várias vezes na fresca da madrugada, e foi ao seu quarto. Ao passar, viu entreaberta a porta da alcova de Bernarda.
Empurrou a porta, na ânsia de compartilhar suas dúvidas. Ela estava dormindo no chão, de bruços, e roncando com fragor. O marquês parou, com a mão na aldraba, e não a acordou. Falou para ninguém: “Tua vida pela dela!”. E logo emendou: “Nossas duas vidas de merda pela dela, caralho!” A menina dormia. O marquês a viu imóvel e murcha, e se perguntou se preferia vê-la morta ou submetida ao castigo da raiva. Arrumou o mosquiteiro para que os morcegos não a sangrassem, cobriu-a para que não continuasse tossindo e permaneceu velando junto à cama, com o gozo novo de que a amava como nunca havia amado neste mundo. Então tomou a decisão de sua vida, sem consultar a Deus nem a ninguém.
Às quatro da manhã, quando Sierva Maria abriu os olhos, viu-o sentado ao pé da cama.
Está na hora de irmos — disse o marquês.
A menina se levantou sem mais explicações. O marquês ajudou-a a se vestir para a ocasião. Procurou na arca uns chinelos de veludo, para que o reforço das botinas não lhe machucasse o tornozelo, e encontrou, sem procurá-lo, um vestido de festa que tinha sido da mãe quando criança. Estava desbotado e maltratado pelo tempo, mas era claro que não havia sido usado duas vezes. O marquês vestiu-o quase um século depois em Sierva María por cima dos colares de feitiçaria e do escapulário do batismo. Ficava um tanto apertado, o que de certo modo aumentava sua antiguidade. Também desencavou na arca um chapéu cujas fitas coloridas não tinham nada a ver com o vestido. Estava na justa medida. Por último, acrescentou uma maleta de mão com uma camisola de dormir, um pente de dentes apertados para extrair até as larvas de piolho, e um pequeno breviário da avó, com dobradiças de ouro e capas de nácar.
Era Domingo de Ramos. O marquês levou Sierva María à missa das cinco e ela recebeu de bom grado a palma abençoada sem saber para quê. À saída viram da carruagem o amanhecer. O marquês no assento principal, com a maleta no colo, e a menina impassível no assento em frente, vendo passar pela janela as últimas ruas de seus doze anos. Não manifestou a menor curiosidade por saber para onde a levavam tão cedo vestida de Joana a Louca e com um chapéu de marafona. Depois de uma longa meditação, o marquês lhe perguntou: — Sabes quem é Deus? A menina negou com a cabeça. Havia relâmpagos e trovões remotos no horizonte, o céu estava encoberto, e o mar, crespo. Ao dobrarem uma esquina apareceu-lhes o convento de Santa Clara, alvo e solitário, com três pavimentos de persianas azuis sobre um depósito de lixo numa praia. O marquês apontou com o indicador. "Aí está". Depois mostrou à esquerda — "Verás o mar das janelas, a toda hora" Como a menina não se manifestasse, deu-lhe a única explicação que jamais lhe daria sobre o seu destino: — Vais te acalmar uns dias com as freirinhas de Santa Clara.
Por ser Domingo de Ramos, havia mais mendigos que de costume na porta da roda. Alguns leprosos que com eles disputavam as sobras da cozinha se precipitaram também para o marquês com a mão estendida. A cada um ele deu uma esmola exígua, até onde lhe chegaram as moedas de um quarto de real. A porteira, ao vê-lo com os seus tafetás negros e ver a menina vestida de rainha, adiantou-se para atendê-los. O marquês explicou que levava Sierva María por ordem do bispo. Dada a segurança com que falou, a porteira não teve dúvida. Examinou o aspecto da menina e tirou-lhe o chapéu.
Aqui é proibido chapéu — disse.
Ficou com ele. O marquês quis entregar-lhe também a maleta, que ela recusou: — Aqui não lhe faltará nada.
A trança malfeita se desmanchou quase até o chão. A porteira não acreditou que fosse natural. O marquês tentou enrolá-la. A menina afastou-o e se houve sozinha com uma habilidade que surpreendeu a freira.
Vai ser preciso cortá-la — disse.
É uma promessa à Virgem Santíssima até o dia em que se casar — disse o marquês.
A porteira se inclinou à razão. Tomou Sierva María pela mão, sem lhe dar tempo para uma despedida, e a passou pela porta da roda. Como o tornozelo lhe doía ao caminhar, a menina tirou o chinelo esquerdo. O marquês a viu afastar-se coxeando de pé descalço e com o chinelo na mão. Esperou em vão que num raro instante de compaixão a filha se voltasse para olhá-lo. A última lembrança que lhe ficou foi a da menina acabando de atravessar a galeria do jardim a arrastar o pé ferido, até desaparecer no pavilhão das enterradas vivas.

Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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