segunda-feira, 17 de junho de 2024

Da virtude que apequena | 3.


Ando em meio a esse povo e deixo cair algumas palavras: mas eles não sabem receber nem guardar.
Eles se admiram de que eu não tenha vindo censurar prazeres e vícios; e, em verdade, tampouco vim para acautelar contra batedores de carteiras!
Eles se admiram de que eu não esteja pronto a afinar e aguçar sua esperteza: como se já não tivessem bastantes cabeças espertas, cujas vozes arranham como lápis de lousa!
E, quando eu grito: “Maldizei todos os covardes demônios em vós, que gostam de choramingar, juntar as mãos e rezar”, então eles gritam: “Zaratustra é sem-deus”.
E especialmente seus mestres da resignação gritam isso —; mas justamente a esses eu amo gritar no ouvido: “Sim, sou Zaratustra, o sem-deus!”.
Esses mestres da resignação! Onde quer que seja pequeno, doentio e sarnento eles se enfiam, como piolhos; e apenas meu nojo me impede de esmagá-los.
Muito bem! Eis a minha prédica para os seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o sem-deus, que diz “quem é mais sem-deus do que eu, para desfrutar de seu ensinamento?”.
Eu sou Zaratustra, o sem-deus: onde posso encontrar meus iguais? São meus iguais todos aqueles que dão a si mesmos sua vontade e se desfazem de toda resignação.
Eu sou Zaratustra, o sem-deus: chego a cozinhar todo acaso em minha panela. E somente quando ele está bem cozido eu lhe dou boas-vindas, como meu alimento.
E, em verdade, mais de um acaso me chegou imperiosamente: mas ainda mais imperiosamente lhe falou minha vontade — e logo estava ele de joelhos, a suplicar —
a suplicar abrigo e coração junto a mim, e a dizer lisonjeiramente: “Vê, Zaratustra, somente o amigo procura o amigo!” —
Mas para que falar onde ninguém tem meus ouvidos? Assim, quero gritar aos quatro ventos:
Vós vos tornais cada vez menores, ó gente pequena! Desmoronais, ó amantes do bem-estar! Ainda perecereis —
de vossas muitas pequenas virtudes, de vossas muitas pequenas abstenções, de vossa muita pequena resignação!
Demasiado macio, demasiado indulgente: assim é vosso terreno! Para tornar-se grande, porém, uma árvore deve lançar duras raízes em duras rochas!
Também o que deixais de fazer é parte do tecido do futuro dos homens; também vosso nada é uma teia de aranha e uma aranha que vive do sangue do futuro.
E, quando recebeis, é como se furtásseis, ó pequenos virtuosos; mas ainda entre os malandros diz a honra: “Só se deve furtar quando não se pode roubar”.
É dado” — também isso é um ensinamento da entrega. Mas eu vos digo, ó amantes do bem-estar: é tomado, e cada vez mais será tomado de vós!
Ah, se afastásseis de vós todo meio querer e vos tornásseis decididos à indolência tanto quanto à ação!
Ah, se compreendêsseis minhas palavras: “Fazei então o que quiserdes — mas primeiramente sede capazes de querer!”.
Amai então vosso próximo como a vós mesmos — mas sede antes aqueles que amam a si mesmos
que amam com o grande amor, que amam com o grande desprezo!” Assim fala Zaratustra, o sem-deus. —
Mas para que falar onde ninguém tem meus ouvidos? Aqui ainda é uma hora cedo demais para mim.
Eu sou meu próprio precursor em meio a esse povo, meu próprio canto do galo pelas ruas escuras.
Mas a hora deles está chegando! E também a minha chega! A cada hora eles se tornam menores, mais pobres, mais infecundos — pobres ervas! pobre terreno!
E logo estarão como capim seco e estepe e, em verdade, cansados de si mesmos — e sedentos de fogo mais que de água!
Ó abençoada hora do raio! Ó mistério antes do meio-dia! — Um dia farei deles fogos galopantes e arautos com línguas de fogo: —
deverão anunciar um dia, com línguas de fogo:108 Está chegando, está próximo o grande meio-dia!

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

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