Já
escrevi, aqui e em não sei mais lá em quantas publicações, a
respeito do Sete de Janeiro, mas receio que bem poucos lembrem
qualquer coisa da verdadeira data magna da independência brasileira.
Meu avô, o coronel Ubaldo Osório, historiador, patriota e orador
cívico, nunca se resignou com tal injustiça e quem o ouvia
desdenhar do Sete de Setembro logo se contaminava com sua indignação.
Devia ser feriado nacional, pois é a data em que os itaparicanos
expulsaram definitivamente o opressor lusitano e a ilha se tornou, no
longínquo 1823, quiçá o primeiro solo realmente brasileiro. Bem
sei que outras cidades, notadamente no Recôncavo Baiano, reivindicam
a mesma glória, mas advirto aos que assim pensam, em qualquer parte
do orbe terrestre, que o fantasma de meu avô, com o sobrolho cerrado
e as bochechas panejando de cólera, virá assombrá-los, tão certo
quanto o domingo vem depois do sábado.
O
coronel Ubaldo, também aqui já ocasionalmente mencionado, era um
homem de convicções sólidas e enérgicas. Convicções tão
enraizadas que, de forma para mim admirável, a realidade não as
alterava em absoluto. Por exemplo, ele nunca acreditou na existência
da televisão. Quando a televisão chegou à Bahia, aí pelo começo
da década de 60, a família, mesmo acossando-o em massa, jamais
conseguiu que ele assistisse a um segundo de televisão. Não podia
evitar ver os aparelhos desligados, mas escutava com mal disfarçado
desdém explicações de como ali apareceriam pessoas, paisagens
vivas e assim por diante.
— Creio,
creio — dizia ele volta e meia, tentando despachar o palestrante. —
Creio muito.
— Não,
o senhor está duvidando, eu conheço o senhor. Mas é verdade. Eu
vou ligar um instantinho para o senhor ver.
— Não
ligue esta merda, que eu saio desta casa e nunca mais ponho os pés
aqui!
Pronto,
ninguém ligava. E, se ele, nas raríssimas ocasiões em que passava
alguns dias conosco (levava garrafões de água da ilha, pois não
bebia água nenhuma que não fosse de lá, nem mesmo em forma de
chá), notasse que estavam assistindo à televisão na sala, não
passava por lá. Se tinha de passar, passava olhando ostensivamente
para o lado e cantarolando, certamente para encobrir o som que saía
do aparelho. Se já estava na sala e alguém ligava a TV, saía
imediatamente. Se insistissem, usava uma variante da defesa padrão.
— Creio,
creio — repetia, já fora da sala. — Creio muitíssimo. Um dia
destes eu assisto com vocês, podem deixar.
Nunca
assistiu, é claro, assim como nunca tocou em qualquer aparelho
elétrico. Não precisava estar ligado a nenhuma tomada. Ele não
queria aproximação e, quando precisava sair com uma lanterna de
pilha para iluminar o caminho, chamava um dos numerosíssimos membros
de seu staff, porque ele mesmo não punha a mão naquele
negócio. Quando a prefeitura de Itaparica instalou um gerador a óleo
que fornecia energia do escurecer até mais ou menos as dez da noite,
minha avó, sob os resmungos dele e ameaças de se refugiar na
fazenda para nunca mais voltar, pôs lâmpadas na casa. Ele acabou
gostando, porque tornava ler bem menos penoso que à luz de um
candeeiro, mas jamais chegou perto de um fio ou interruptor. Chamava
alguém.
— Acenda
a lâmpada incandescente — dizia ele, visivelmente tenso e ansioso
enquanto a operação não chegava ao final, e hoje tenho a impressão
de que achava que, daquela vez, alguma coisa ia explodir.
Tampouco
achou necessário viajar a lugar algum, embora falasse com
desenvoltura sobre cidades, costumes e até comida de outros países.
Mas nunca saiu da ilha e, quando lhe diziam que havia praias bonitas
em outros lugares, praias até mais bonitas que as da ilha, afirmava
que se tratava de uma impossibilidade e encerrava severamente a
discussão. A mesma coisa quando lhe falavam sobre avanços
tecnológicos que nem pensávamos em ver ainda. Sentenciava que era
tudo mentira e proibia que o interlocutor continuasse a perturbá-lo
com aquela conversa para néscios. Uma vez um sujeito quis tirar o
que na época se chamava “um instantâneo” de meu avô (que não
era tão instantâneo assim, porque as máquinas ainda tinham muitas
limitações e às vezes os preparativos demoravam) e foi posto para
fora de casa. Ele só admitia ser fotografado depois de fazer a
barba, tomar um banho e se arrumar com paletó e gravata e um toque
de água-de-cheiro, que minha avó nunca esquecia.
Tirar
retrato só limpo e cheiroso e bem apresentado.
E
assim viveu meu avô. Já em dezembro se ouviam, num murmúrio
ininteligível, as palavras candentes com que ele falaria aos
conterrâneos sobre o orgulho de ser brasileiro e o orgulho de, como
se isso não fosse suficiente, ser itaparicano. Escrevia às vezes
andando pela casa e fazendo pausas súbitas, em que uma palavra mais
sonorosa ou um jogo sintático feliz o deixavam quase em êxtase. Só
não conseguiu que o Sete de Janeiro virasse feriado nacional e muito
menos da Independência.
Quer
dizer, isso até hoje. Porque hoje, levantada a bola da data, não
vou deixar nem que ela toque no chão, emendo direto: amanhã é
feriado nacional, a verdadeira data da Independência. Engulam esta,
fluminenses, cariocas, paulistas, mineiros ou quem mais se apresente.
Pronto, vô, está feito, a verdade foi finalmente proclamada numa
gazeta de grande circulação, no melhor país do mundo, como o
senhor sempre quis. E continuamos a ser o melhor país do mundo. Para
os mesmos, mas melhor ainda que antes.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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