Deus
mandou Abraão imolar seu único filho, Isaque, e oferecê-lo em
holocausto a Ele sobre uma das montanhas de Moriá. E tomou Abraão a
lenha do holocausto e um cutelo e levou seu filho ao lugar que Deus
lhe dissera. E edificou Abraão ali um altar e amarrou a Isaque e
deitou-o em cima da lenha. E estendeu Abraão sua mão com o cutelo
para imolar seu único filho. Mas um anjo do Senhor lhe bradou desde
os céus “Abraão, Abraão, não estenda tua mão sobre Isaque e
não lhe faça mal. Agora sei que temes a Deus, pois não lhe negaste
teu único filho em holocausto”. E Abraão levantou os olhos e viu
um cordeiro que Deus provera para oferecer em holocausto em lugar do
seu filho, e assim fez. E o anjo do Senhor bradou que a semente de
Abraão se multiplicaria como as estrelas do céu, e subiria à porta
dos seus inimigos, e abençoaria todas as Nações da Terra, porque
Abraão obedecera à voz de Deus.
Muitos
anos depois:
— Eu
ainda sonho com aquele dia, e acordo tremendo.
— Você
era um menino...
— Vejo
o cutelo na sua mão, vejo o seu rosto contorcido pela dor, vejo os
seus olhos cheios d’água...
— Você
era um menino...
— Lembro
de tudo. Lembro dos trovões.
— Era
a voz do anjo, me falando dos céus.
— Não
ouvi a voz do anjo. Ouvi trovões. Só você ouviu a voz do anjo.
— Meu
filho...
— Eu
sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Mas não consigo esquecer.
Sonho com aquele dia todas as noites, e acordo tremendo.
— Você
era um menino.
— Me
lembro das nuvens escuras. De uma revoada de pássaros negros.
Pássaros atônitos, chocando-se no ar. O céu parecendo recuar com o
horror da cena. Um pai imolando um filho!
— Um
sacrifício. Um ritual necessário de sangue. A cerimônia inaugural
da nossa tribo, com os favores do céu.
— Um
horror.
— Uma
história muito maior do que a nossa. Muito maior do que a de um
filho imolado. Hoje sou o pai de nações, o patriarca do mundo,
porque obedeci ao Senhor e minha semente foi abençoada.
— Você
ficou com o poder, eu fiquei com os pesadelos.
— Nossa
tribo foi abençoada. Da minha semente nasceu a nossa glória.
— Você
ficou com a glória, eu fiquei com as marcas das cordas.
— Você
viu o meu rosto contorcido de dor, filho. Viu meus olhos cheios
d’água. Viu que eu estava sofrendo por ter que matá-lo.
— O
fio do cutelo encostou na minha garganta.
— Mas
eu não o matei!
— Porque
Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.
— Meu
filho...
— Eu
sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às
minhas memórias e aos meus pesadelos. Como você sobreviveu ao que
sabe.
— O
que eu sei?
— Que
deve tudo que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um
Deus incerto do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus
inconfiável.
— Ele
estava me testando.
— Então
é pior. Um Deus frívolo e cruel.
— Você
era apenas um menino...
— Me
lembro das nuvens escuras e dos pássaros atônitos. E do céu
recuando diante daquela abominação: um pai matando um filho. E me
lembro dos trovões.
— Era
o anjo do Senhor falando comigo.
— Eram
trovões.
— Obedeci
à voz dos céus porque temo a Deus.
— Mais
razão para temê-lo tenho eu, meu pai, que senti o fio do cutelo na
garganta.
— Na
origem de todos os povos há uma cerimônia de sangue.
— Então
na origem de todos os povos tem uma abominação.
— Esta
conversa se repete, filho. Por quanto tempo ainda a teremos?
— Por
todos os tempos, pai.
Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis
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