Hoje
eu saio antes das três, tenho de voltar cedo pro receio do lar. O
negócio agora lá tá complicado, o esquema do fim de semana mudou.
— O
“receio” do lar, é? Essa eu nunca tinha ouvido, é muito boa. De
fato, você tem razão, não é mais o recesso, como já foi. Receio
do lar, é isso mesmo, de certa forma você tem razão.
— De
certa forma, não. Eu tenho razão. E tu te prepara, porque a barra
vai pesar pro teu lado também. Não tou rogando praga, mas te
prepara, porque vai pesar pro teu lado também, é a realidade. Não
é mole, meu camaradinha!
— Teu
prédio já foi assaltado?
— Não,
só arrombado. Dois apartamentos, tudo dentro da normalidade. Mas eu
não estou falando em segurança, é outra coisa. Agora, são mais
quatro lá em casa e, nos fins de semana, às vezes oito, dez, doze,
sei lá, já desisti de contar, só sei que cada fim de semana parece
que aumenta mais.
— Mas
eu pensava que agora você só estava com a Regininha e o Lauro. A
Laís não está casada há não sei quanto tempo e o Lúcio também
não é casado já há mais de cinco anos?
— Tu
tá por fora. Aliás, eu não posso reclamar, porque fui eu mesmo que
resolvi não te contar. A gente vem pra cá no fim de semana pra
esquecer esses troços, esquecer um pouco a vida, jogar conversa
fora.
— Eu
sei, mas tu devia ter me contado. Amigo é para essas coisas.
— É,
tudo bem, eu conto, mas é só desabafo mesmo, porque ninguém pode
fazer nada. A Laís descasou. Você não pode acreditar e nem eu vou
contar tudo agora, porque estou com preguiça, mas descasou porque o
marido descobriu que é boiola. Tu vê um cara de mais de 30 anos,
que namora, faz filhos e aí chega pra mulher de repente e fala que a
dele é homem, que arrumou uma paixão e vai se mandar. E se mandou,
está vivendo com um cara que só você vendo, um gordo careca, de
bigode, só você vendo. O plano deles é casar legalmente, já
disseram que estão na batalha.
— Mas,
mas... Eu estou aqui segurando o queixo. O marido da Laís...
— Já
te falei que não vou contar agora, depois eu conto, é muito
comprido. O fato é que a Laís descasou e o que é que deu? É isso
mesmo que tu tá pensando, ela e os dois filhos. Tá tudo lá em casa
agora.
— Mas
tu falou que são quatro e aí só são três. O Lúcio continua na
dele, né não? Outro dia, ele passou por aqui, mas não entrou.
— Não
entrou porque tá duro e é orgulhoso, como no tempo em que era
executivo. Se ele viesse aqui, eu ia ficar com pena e pagava, mas ele
é orgulhoso. E também tem um pouco de vergonha com o que já anda
me fazendo.
— Mas
o que é que ele aprontou? Ele sempre foi um rapaz equilibrado.
— Bem,
agora está meio desequilibrado. Desempregado, sabe como é. Eu aí
dou uma mesadinha a ele, o que eu posso, até porque a pensão dos
filhos dele não é fácil, a Tina botou pra quebrar em cima dele,
não sobra quase nada no meu orçamento depois de pagar essa pensão.
— Ué,
e é tu que paga a pensão?
— É,
cara, ele não pagava e aí o juiz decretou que os meninos não podem
ficar sem pensão e quem paga sou eu. Agora tem essa graça: o cara
faz filho, não tem dinheiro e a Justiça diz que quem tem de bancar
é o avô.
— É,
não deve estar sendo mole mesmo. E o Lauro não ia casar? Pelo
menos, quando ele casar, é um que sai.
— Ia
casar. Ia! Agora não vai mais. Andou lendo uns livros e umas
reportagens de jornal e entrou numa de metrossexual.
— O
que é metrossexual, não vem me dizer que ele também...
— Não
propriamente, ele se enfeita muito e vai a salão de beleza, mas é
homem. É uma espécie de galinhagem com nome artístico. O cara
fatura as que pode, a mulher dá pra quem acha e é tudo
metrossexual, por aí. E ele também diz que é de uma categoria
moderna de filho, que demora pra amadurecer. Vai fazer 29, mas diz
que não saiu da adolescência, é carente e dependente. Tem até um
nome pra isso, te prepara aí: ele diz que é adultescente.
— Como
é que é?
— É
isso mesmo que tu ouviu, adultescente. Parece adjetivo de doença
venérea de antigamente, mas é isso mesmo que ele diz que ele é.
Mesada também, roupa pelo chão, esculhambação no banheiro, casa,
comida, roupa lavada... E ele diz que não tem previsão para sair da
adultescência, diz que já leu que tem gente que passa dos 35 nessa.
A tua filha já vai casar, não vai?
— Vai,
sim. Essa não me dá preocupação, ela não é adultescente.
— Tudo
bem, aguarde a separação e a volta. Tu vai fazer a mesma coisa que
eu vou fazer agora, depois que acabar este chope. Eu tou indo pra
casa pra treinar mudar fraldas. Nunca acertei direito e a Regininha
diz que não é justo que ela mude as fraldas sozinha, com aquela
coluna estourada, ela tem razão.
— Ô,
e a Laís não faz isso, não?
— Não
muito. Durante a semana, ela sai pra batalhar emprego e no fim de
semana parte pra gandaia, deixa os meninos conosco. Ela diz que é
muito jovem pra morrer pro mundo e que cuidar dos netos dá sentido à
vida. Tu sabe mudar fralda? Então vai aprendendo, hoje em dia é
fácil, com as descartáveis. E também vai treinando dormir com
choro de neném de trilha sonora. E vê se arruma um fone de ouvido
pra assistir tevê tarde da noite sem acordar os meninos. E vê se
aprende um método para decorar os nomes das mulheres que teu filho
vai levar pra traçar em tua casa na adultescência. E vê se tá
tudo legalizado no teu nome e no da tua mulher, pra eles não
tomarem. Tem que se adaptar, cara, família é família.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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