Eu
nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil
oitocentos e dez. Portanto, tinha seis anos, quase sete, quando esta
história começou. O que aconteceu antes disso não tem importância,
pois a vida corria paralela ao destino. O meu nome é Kehinde porque
sou uma ibêji1 e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e
por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e
o nome dele significava “não morrerás mais, os deuses te
segurarão”. O Kokumo era um abiku, como a minha mãe. O
nome dela, Dúróoríìke, era o mesmo que “fica, tu serás
mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque também
era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida,
nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais
tempo do que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer,
combinam entre si que logo voltarão a morrer para se encontrarem
novamente no mundo dos espíritos. Alguns abikus tentam nascer
na mesma família para permanecerem juntos, embora não se lembrem
disto quando estão aqui no ayê, na terra, a não ser quando
sabem que são abikus. Eles têm nomes especiais que tentam
segurá-los vivos por mais tempo, o que às vezes funciona. Mas
ninguém foge ao destino, a não ser que Ele queira, porque, quando
Ele quer, até água fria é remédio.
A
minha avó nasceu em Abomé, a capital do reino de Daomé, ou
Dan-home, onde o rei governava da casa assentada sobre as entranhas
de Dan. Ela dizia que esta é uma história muito antiga, do tempo em
que os homens ainda respeitavam as árvores, quando o rei Abaka foi
pedir ao vizinho Dan um pedaço de terra para aumentar o seu reino.
Daquela vez, Dan já deu a terra de má vontade, e quando Abaka pediu
outro pedaço para construir um castelo, Dan ficou bravo e respondeu
que Abaka podia construir o castelo sobre a sua barriga, pois não
daria mais terra alguma. Com raiva da resposta mal-educada, o rei
Abaka matou Dan e, sobre as entranhas espalhadas no chão, ergueu um
palácio suntuoso, a partir do qual teve início o grande império do
povo iorubá. Dan também é o nome da serpente sagrada, mas esta
história fica para mais tarde ou para outra pessoa contar quando
chegar a hora dela, porque agora preciso falar de um tempo que
começou muito depois, quando a perseguição do rei monstro
Adandozan obrigou a minha avó a sair de Abomé e se mudar para
Savalu.
A
minha mãe tinha marido em Abomé, o pai do Kokumo, que se chamava
Babatunde e era guerreiro, assim como o pai dele tinha sido, e antes
do pai, o avô. O Kokumo teria o mesmo destino se não tivesse
morrido antes. O Babatunde era um bom guerreiro e por isso foi
nomeado ministro pelo rei do Daomé, indo morar na capital do reino.
Ele já era ministro quando se casou com a minha mãe, fazendo dela
sua terceira esposa. Mas como ao longo dos anos a minha mãe só
atraiu abikus e o Babatunde precisava de filhos que quisessem
viver e se tornar guerreiros como ele, não se importou quando ela
foi embora com a minha avó. O que ele não sabia era que a minha mãe
estava pejada e já tinha aprendido a enganar abikus. O Kokumo nasceu
logo que elas chegaram a Savalu, depois de muitos dias andando pelas
estradas rumo ao norte, até saberem que deveriam ficar ao pé de um
iroco.
Um
dia apareceu o Oluwafemi, “aquele que é amado por Deus”, que
ajudou a construir a casa e foi homem para a minha mãe. Mas depois
que a casa ficou pronta, ele seguiu viagem rumo ao norte, talvez para
Natitingou, antes de saber que ela estava novamente pejada, abençoada
com ibêjis, eu e a Taiwo. Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as
famílias em que nascem, e era por isso que a minha mãe podia dançar
no mercado de Savalu e ganhar dinheiro. Ela dançava e as pessoas
colavam cauris em sua testa, e quando eu e a Taiwo éramos
pequenas, colavam ainda mais, pois a minha mãe dançava com nós
duas amarradas ao corpo. Usava panos lindos para segurar eu e a Taiwo
bem presas junto a ela, uma na frente e a outra atrás. Ficávamos
nos olhando nos olhos e sorrindo por cima do ombro dela, e é por
isso que a primeira lembrança que tenho é dos olhos da Taiwo.
Éramos pequenas e apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um
par de cada lado do ombro da minha mãe, dois pares que pareciam ser
apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram apenas dela. Não sei
quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza
disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber,
porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou
somente para mim. Eu senti quando isso começou a acontecer, e foi
naquela tarde.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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