sexta-feira, 1 de março de 2024

O Rei da Noite


Eu disse que nunca mais punha os pés na rua, nunca mais ia a festinhas, nunca mais entrava num bar, eu disse!
É, você disse. Você sempre diz isso. No dia seguinte você sempre diz isso.
Então? Então? Então você devia levar isso em conta. Quando eu disser “hoje vou sair”, você diz “não vai”, pronto. Basta isso, eu atendo, você sabe que eu atendo.
Você nem ouve, quanto mais atender. Você entrou em casa cantando “Rio Babilônia”, parou na porta, deu uns remelexos meio tipo Elvis Presley e gritou com o mesmo olhar com que às vezes fica na praia: “Mulher, vamos pra festa do Neville! Rio Babilôoooonia!”
É, eu me lembro. Você foi sarcástica, muito sarcástica. Não é preciso ser tão sarcástica comigo e meus amigos.
Eu, sarcástica? Eu só perguntei se você tinha certeza de que podia entrar mulher grávida.
E então? Só porque era a festa do meu amigo Neville tinha de ser uma esbórnia, não foi isso que você quis insinuar?
Absolutamente. Quem insinuou foi você, com aqueles seus... seus meneios aí na porta e com aquele olhar que não permitiriam na novela das oito.
Eu não fiz olhar nenhum!
Fez. E continuou a fazer praticamente a noite inteira. Mas acho que não tem importância, seus amigos já estão acostumados. Uma coisa de que ninguém pode lhe acusar é falta de coerência. Você faz invariavelmente as mesmas coisas.
Eu beijei Ivan Chagas Freitas outra vez?
Não, desta vez não, mas isto é um pormenor. E de mais a mais você chegou com ele, não acredito que o beijo se justificasse.
Eu fui com ele? Claro, fui com ele. Lembro muito bem. Aliás, lembro muitíssimo bem, lembro de tudo. Chegamos juntos, o Ivan elegantíssimo, de smoking...
Ivan não estava de smoking.
Como não estava? Claro que estava, eu não sou maluco, vi perfeitamente. Eu até fiz uma brincadeira, falei: “Ivan, este smoking de teu pai caiu muito bem, muito bem.”
Isso foi a foto do Ivan na festa do Ibrahim. Você viu a foto do Ivan de smoking.
A foto? Bem, certo, mas o fato é que eu vi o Ivan de smoking, eu lembro de tudo perfeitamente. Nós entramos, abraçamos o Neville e aí batemos um papo com a Tônia Carrero, gostei muito dela.
É, este foi um problema. A Tônia Carrero não estava lá.
Como não estava? É claro que estava!
Não. Estava uma senhora lá que você ficou chamando o tempo todo de “Tônia, mas veja você, Tônia, mas ora, Tônia”. Ela tentou avisar algumas vezes, mas você só dizia “querida Tônia, mas que mot d’esprit, que boutade, ha-ha-ha!”
Não era a Tônia? Mas era a cara!
Espero que a Tônia nunca saiba desta sua opinião. De qualquer forma, isso não teve importância, porque você elogiou muito a senhora, ela deve ter ficado satisfeita. Aliás, você elogiou todo mundo.
Elogiei? Ah, elogiei? Bem, ótimo que eu elogiei, quer dizer que não tem vexame para lembrar.
Nada, vexame nenhum. É bem verdade que você fez alguns elogios agressivos, mas todo mundo já deve conhecer a sua exuberância. Quer dizer, não sei se o Renato Machado ficou muito feliz, não tenho certeza.
O Renato Machado? O que é que eu fiz com o Renato Machado? Eu não elogiei?
Aos murros. Você fazia um elogio — “aí, Renatão!” — e dava um murrozinho afetuoso nele. Acho que deve ter dado uns seis ou sete; você estava muito entusiasmado com ele. “Que pronúncia, que pronúncia!”, dizia você. Até que ele se sentou e alegou nocaute e aí você parou.
Mas é interessante, eu tenho a recordação completa de que sentamos direitinho, junto com o Ivan, a Dora e o Paulo César Saraceni e a Ana Maria, foi ou não foi?
Mais ou menos. O Paulo César e a Ana Maria já estavam lá, ficaram sentados defronte da gente.
Então? Lembro de tudo!
E você ficava piscando o olho e jogando beijinhos para ela.
Mentira! Na cara do Paulo César? Mentira! O Paulo César é meu amigo, eu jamais faria uma coisa dessas! Você quer solapar o meu relacionamento com os amigos! Mentira! Eu não faço essas coisas com ninguém, quanto mais com as mulheres de meus amigos!
Mas é só isso que você faz. Agora, elas não ligam, eles também não. Afinal, quem é que vai ligar para um amigo que fica piscando um olho como se estivesse tendo um espasmo muscular, jogando beijinhos bicudos e escondendo a cara atrás do balde de gelo?
Atrás do balde de gelo?
Pois é, tenho a impressão de que você achava que assim disfarçava. Juntou gente em torno da mesa, para ver você disfarçando. Você se curvava todo, chamava “Aniiinha!”, piscava o olho e mergulhava a cara atrás do balde ligeirinho.
Que horror!
Horror nada, foi tudo muito divertido, um sucesso. Tanto assim que você só parou quando chegou o Daniel Filho.
O Daniel? Não! Eu chorei outra vez?
Não, vocês dançaram.
Nós dançamos?
Dançaram e cantaram. Cantaram uma musiquinha em inglês que dizia “wake up, wake up!” e que vocês achavam engraçadíssima, embolavam de rir. Até que houve o incidente com o pessoal da casa, na hora em que você exigiu que evacuassem a pista para que o Daniel pudesse dar uma demonstração do passo Tom Mix.
O passo Tom Mix?
Sim, é um passo que ele dá sacando dois revólveres e rodopiando. É até interessante. Mas o pessoal não quis atender ao seu pedido, apesar de você gritar “jogo-lhe a Rede Globo em cima, canalha!”. De qualquer forma, você conseguiu que o Daniel fizesse o passo no andar de cima e ainda imitasse Michael Jackson e Ney Matogrosso. A de Michael Jackson é até bastante boa, a do Ney...
Disso eu me lembro, fiquei ali conversando com a Márcia enquanto ele dançava.
Conversando não, ficou dizendo “Marcinha, você sabe que eu imito Ney Matogrosso muito melhor do que esse cara aí com quem você vive saindo e sou melhor diretor de televisão que ele e tenho um telão maior do que ele e...”
Ele se aborreceu?
Claro que não, inclusive ele sabe que você não imita lhufas e não tem telão nenhum.
Nem sou diretor de tevê.
Ah, isso não sei. Não foi isso o que você falou à Danuza Leão. Você disse a ela que estava realizando um especial sobre ela de duas horas e depois gritou: “Quero arrojar-me a teus pés!”
E me arrojei?
Quase. Ivan segurou você e a Danuza deu uns passinhos rápidos para trás, não houve maiores problemas e já estávamos mesmo na saída.
Nunca mais eu saio, nunca mais boto os pés fora de casa, nunca mais entro num bar, nunca mais!
Sim, querido. Mas não sei por quê. Todo mundo acha você o rei da noite, querido.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

Nenhum comentário:

Postar um comentário