— Eu
disse que nunca mais punha os pés na rua, nunca mais ia a festinhas,
nunca mais entrava num bar, eu disse!
— É,
você disse. Você sempre diz isso. No dia seguinte você sempre diz
isso.
— Então?
Então? Então você devia levar isso em conta. Quando eu disser
“hoje vou sair”, você diz “não vai”, pronto. Basta isso, eu
atendo, você sabe que eu atendo.
— Você
nem ouve, quanto mais atender. Você entrou em casa cantando “Rio
Babilônia”, parou na porta, deu uns remelexos meio tipo Elvis
Presley e gritou com o mesmo olhar com que às vezes fica na praia:
“Mulher, vamos pra festa do Neville! Rio Babilôoooonia!”
— É,
eu me lembro. Você foi sarcástica, muito sarcástica. Não é
preciso ser tão sarcástica comigo e meus amigos.
— Eu,
sarcástica? Eu só perguntei se você tinha certeza de que podia
entrar mulher grávida.
— E
então? Só porque era a festa do meu amigo Neville tinha de ser uma
esbórnia, não foi isso que você quis insinuar?
— Absolutamente.
Quem insinuou foi você, com aqueles seus... seus meneios aí na
porta e com aquele olhar que não permitiriam na novela das oito.
— Eu
não fiz olhar nenhum!
— Fez.
E continuou a fazer praticamente a noite inteira. Mas acho que não
tem importância, seus amigos já estão acostumados. Uma coisa de
que ninguém pode lhe acusar é falta de coerência. Você faz
invariavelmente as mesmas coisas.
— Eu
beijei Ivan Chagas Freitas outra vez?
— Não,
desta vez não, mas isto é um pormenor. E de mais a mais você
chegou com ele, não acredito que o beijo se justificasse.
— Eu
fui com ele? Claro, fui com ele. Lembro muito bem. Aliás, lembro
muitíssimo bem, lembro de tudo. Chegamos juntos, o Ivan
elegantíssimo, de smoking...
— Ivan
não estava de smoking.
— Como
não estava? Claro que estava, eu não sou maluco, vi perfeitamente.
Eu até fiz uma brincadeira, falei: “Ivan, este smoking de
teu pai caiu muito bem, muito bem.”
— Isso
foi a foto do Ivan na festa do Ibrahim. Você viu a foto do Ivan de
smoking.
— A
foto? Bem, certo, mas o fato é que eu vi o Ivan de smoking,
eu lembro de tudo perfeitamente. Nós entramos, abraçamos o Neville
e aí batemos um papo com a Tônia Carrero, gostei muito dela.
— É,
este foi um problema. A Tônia Carrero não estava lá.
— Como
não estava? É claro que estava!
— Não.
Estava uma senhora lá que você ficou chamando o tempo todo de
“Tônia, mas veja você, Tônia, mas ora, Tônia”. Ela tentou
avisar algumas vezes, mas você só dizia “querida Tônia, mas que
mot d’esprit, que boutade, ha-ha-ha!”
— Não
era a Tônia? Mas era a cara!
— Espero
que a Tônia nunca saiba desta sua opinião. De qualquer forma, isso
não teve importância, porque você elogiou muito a senhora, ela
deve ter ficado satisfeita. Aliás, você elogiou todo mundo.
— Elogiei?
Ah, elogiei? Bem, ótimo que eu elogiei, quer dizer que não tem
vexame para lembrar.
— Nada,
vexame nenhum. É bem verdade que você fez alguns elogios
agressivos, mas todo mundo já deve conhecer a sua exuberância. Quer
dizer, não sei se o Renato Machado ficou muito feliz, não tenho
certeza.
— O
Renato Machado? O que é que eu fiz com o Renato Machado? Eu não
elogiei?
— Aos
murros. Você fazia um elogio — “aí, Renatão!” — e dava um
murrozinho afetuoso nele. Acho que deve ter dado uns seis ou sete;
você estava muito entusiasmado com ele. “Que pronúncia, que
pronúncia!”, dizia você. Até que ele se sentou e alegou nocaute
e aí você parou.
— Mas
é interessante, eu tenho a recordação completa de que sentamos
direitinho, junto com o Ivan, a Dora e o Paulo César Saraceni e a
Ana Maria, foi ou não foi?
— Mais
ou menos. O Paulo César e a Ana Maria já estavam lá, ficaram
sentados defronte da gente.
— Então?
Lembro de tudo!
— E
você ficava piscando o olho e jogando beijinhos para ela.
— Mentira!
Na cara do Paulo César? Mentira! O Paulo César é meu amigo, eu
jamais faria uma coisa dessas! Você quer solapar o meu
relacionamento com os amigos! Mentira! Eu não faço essas coisas com
ninguém, quanto mais com as mulheres de meus amigos!
— Mas
é só isso que você faz. Agora, elas não ligam, eles também não.
Afinal, quem é que vai ligar para um amigo que fica piscando um olho
como se estivesse tendo um espasmo muscular, jogando beijinhos
bicudos e escondendo a cara atrás do balde de gelo?
— Atrás
do balde de gelo?
— Pois
é, tenho a impressão de que você achava que assim disfarçava.
Juntou gente em torno da mesa, para ver você disfarçando. Você se
curvava todo, chamava “Aniiinha!”, piscava o olho e mergulhava a
cara atrás do balde ligeirinho.
— Que
horror!
— Horror
nada, foi tudo muito divertido, um sucesso. Tanto assim que você só
parou quando chegou o Daniel Filho.
— O
Daniel? Não! Eu chorei outra vez?
— Não,
vocês dançaram.
— Nós
dançamos?
— Dançaram
e cantaram. Cantaram uma musiquinha em inglês que dizia “wake
up, wake up!” e que vocês achavam engraçadíssima, embolavam
de rir. Até que houve o incidente com o pessoal da casa, na hora em
que você exigiu que evacuassem a pista para que o Daniel pudesse dar
uma demonstração do passo Tom Mix.
— O
passo Tom Mix?
— Sim,
é um passo que ele dá sacando dois revólveres e rodopiando. É até
interessante. Mas o pessoal não quis atender ao seu pedido, apesar
de você gritar “jogo-lhe a Rede Globo em cima, canalha!”. De
qualquer forma, você conseguiu que o Daniel fizesse o passo no andar
de cima e ainda imitasse Michael Jackson e Ney Matogrosso. A de
Michael Jackson é até bastante boa, a do Ney...
— Disso
eu me lembro, fiquei ali conversando com a Márcia enquanto ele
dançava.
— Conversando
não, ficou dizendo “Marcinha, você sabe que eu imito Ney
Matogrosso muito melhor do que esse cara aí com quem você vive
saindo e sou melhor diretor de televisão que ele e tenho um telão
maior do que ele e...”
— Ele
se aborreceu?
— Claro
que não, inclusive ele sabe que você não imita lhufas e não tem
telão nenhum.
— Nem
sou diretor de tevê.
— Ah,
isso não sei. Não foi isso o que você falou à Danuza Leão. Você
disse a ela que estava realizando um especial sobre ela de duas horas
e depois gritou: “Quero arrojar-me a teus pés!”
— E
me arrojei?
— Quase.
Ivan segurou você e a Danuza deu uns passinhos rápidos para trás,
não houve maiores problemas e já estávamos mesmo na saída.
— Nunca
mais eu saio, nunca mais boto os pés fora de casa, nunca mais entro
num bar, nunca mais!
— Sim,
querido. Mas não sei por quê. Todo mundo acha você o rei da noite,
querido.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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