sábado, 16 de março de 2024

Cartas na Rua | 19 e 20


19

Eu entrava às 18h18, e Dave Janko não entrava antes das 22h36, de modo que poderia ter sido pior. Tendo direito, às 22h06, a um intervalo de trinta minutos, eu geralmente voltava na hora de sua entrada. Ao chegar, ia logo procurando um banco perto do meu. Janko, além de pagar de gênio, também fazia as vezes de grande amante. Segundo ele, era acossado em corredores por mulheres jovens e bonitas, seguido nas ruas por dúzias delas. Não davam um descanso ao pobre coitado. Mas nunca o vi falar com nenhuma mulher no serviço, nem elas falavam com ele.
Vinha com coisas do tipo:
EI, HANK! CARA, HOJE ME PAGARAM UM BOQUETE DAQUELES!
Ele não falava, gritava. Gritava a noite inteira.
POR DEUS, ELA ME DEIXOU SECO! E ERA JOVEM TAMBÉM! MAS FAZIA TUDO COMO SE FOSSE PROFISSIONAL!
Eu acendia um cigarro.
Depois tinha de ouvir a história completa de como ele a conhecera...
TIVE DE SAIR PARA COMPRAR PÃO, ENTENDE?
A partir de então — até o último dos detalhes — o que ela dizia, o que ele dizia, o que eles faziam etc.
Naquela época aprovaram uma lei obrigando os Correios a pagar horas extras aos substitutos. Então os Correios transferiram as horas extras para os efetivos.
Oito ou dez minutos antes do horário normal de minha saída, por volta das 2h48, o alto-falante interno dizia:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir uma hora extra!
Janko dava uma sorriso, inclinava-se para mim e continuava a me verter um pouco mais de seu veneno.
Então, oito minutos antes da minha nona hora terminar, o alto-falante anunciava:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir duas horas extras.
Então, oito minutos antes da décima hora:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir três horas extras.
Nesse meio-tempo, Janko nunca parava.
EU ESTAVA SENTADO NESSA LOJA DE CONVENIÊNCIAS, ENTENDE? E ESSAS DUAS BELEZURAS APARECERAM. ELAS VIERAM SENTAR COMIGO, CADA UMA DE UM LADO...
O cara estava acabando comigo e eu não conseguia me safar. Lembrei-me de todos os outros empregos em que já trabalhara. Eu sempre tinha atraído os loucos. Eles gostavam de mim.
Então Janko empurrou seu romance para cima de mim. Ele não sabia datilografar e tinha recorrido ao trabalho de uma profissional. Os originais estavam numa luxuosa pasta preta de couro. O título era muito romântico.
QUERO SUA OPINIÃO — ele disse.
Beleza — eu respondi.
Beleza — eu respondi.

20

Levei-o para casa, abri a cerveja, entrei na cama e comecei.
Começava bem. Era sobre como Janko tinha vivido em quartos apertados e passando fome enquanto tentava encontrar trabalho. Ele tinha problemas com as agências de emprego. E tinha um cara que ele encontrava em um bar — parecia ser um tipo bem educado —, mas seu amigo vivia pegando dinheiro emprestado e nunca se lembrava de pagá-lo.
Era uma escrita honesta.
Talvez eu tenha julgado o cara mal, pensei.
Estava torcendo por ele enquanto lia. Então o romance se desmanchou. Por alguma razão, no momento em que começara a escrever sobre os Correios, a coisa toda deixou de parecer verdadeira.
O romance ficava cada vez pior. Terminava com ele em uma ópera. Era a hora do intervalo. Tinha se levantado do lugar para se livrar da multidão vulgar e estúpida. Bem, eu estava com ele até ali. Então, ao contornar uma coluna, aconteceu. Aconteceu muito rapidamente. Ele topou com essa coisa culta, elegante e linda. Quase a derrubou!
O diálogo seguia assim:
Ah, sinto muito!
Não foi nada...
Não tive a intenção... você sabe... me desculpe!
Não, fique tranquilo, não foi nada!
É que não vi você... digo, não tive a intenção de...
Está tudo bem. Está tudo bem...
O diálogo sobre o encontrão continuava por uma página e meia.
O pobre rapaz estava mesmo louco.
Acontece que essa gata, embora estivesse vagando sozinha entre as colunas, bem, era casada com um doutor tal, mas o doutor não entendia de ópera, ou melhor, nem se importava com coisas tão ordinárias como o Bolero de Ravel. Ou O chapéu de três pontas de De Falla. Eu estava com o doutor nessa.
Do encontrão dessas duas almas verdadeiramente sensíveis, alguma coisa começou a se desenvolver. Encontravam-se em concertos e davam uma rapidinha depois. (Isso era insinuado e não dito, pois ambos eram muito delicados para simplesmente trepar.)
Bom, assim terminava. A pobre e linda criatura amava o marido e amava o herói (Janko). Não sabia o que fazer, de modo que, é claro, decidiu se matar. Deixou tanto o doutor quanto Janko sozinhos, cada qual em seu banheiro.
Disse ao garoto:
Começa bem. Mas você vai ter de cortar aquele diálogo do encontrão em volta da coluna. É da pior qualidade...
NÃO MESMO — ele disse. — NÃO MEXO EM NADA!

Os meses passavam, e o romance era sempre rejeitado.
JESUS DO CÉU! — ele disse —, NÃO POSSO IR ATÉ NOVA YORK APERTAR AS MÃOS DOS EDITORES, FAZER MÉDIA!
Olhe, garoto, por que você não larga esse emprego? Vá para um quartinho e escreva. Trabalhe no seu material.
UM CARA COMO VOCÊ PODE FAZER ISSO — ele disse —, PORQUE VOCÊ PARECE UM BEBUM. OS CARAS TE CONTRATAM PORQUE PERCEBEM QUE VOCÊ NÃO CONSEGUIRÁ OUTRO EMPREGO E ENTÃO FICARÁ NO QUE TE OFERECEREM. ELES NÃO ME CONTRATAM PORQUE OLHAM PARA MIM E VEEM COMO SOU INTELIGENTE, E ELES PENSAM, BEM, UM HOMEM INTELIGENTE COMO ELE NÃO FICARÁ CONOSCO, ENTÃO NÃO VALE A PENA CONTRATÁ-LO.
Continuo dizendo, vá para um quartinho e escreva.
MAS EU PRECISO DE SEGURANÇA!
Ainda bem que certas pessoas não pensavam assim. Ainda bem que Van Gogh não pensava assim.
O IRMÃO DE VAN GOGH COMPRAVA AS TINTAS PARA ELE! — o garoto me disse.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

Nenhum comentário:

Postar um comentário