19
Eu
entrava às 18h18, e Dave Janko não entrava antes das 22h36, de modo
que poderia ter sido pior. Tendo direito, às 22h06, a um intervalo
de trinta minutos, eu geralmente voltava na hora de sua entrada. Ao
chegar, ia logo procurando um banco perto do meu. Janko, além de
pagar de gênio, também fazia as vezes de grande amante. Segundo
ele, era acossado em corredores por mulheres jovens e bonitas,
seguido nas ruas por dúzias delas. Não davam um descanso ao pobre
coitado. Mas nunca o vi falar com nenhuma mulher no serviço, nem
elas falavam com ele.
Vinha
com coisas do tipo:
— EI,
HANK! CARA, HOJE ME PAGARAM UM BOQUETE DAQUELES!
Ele
não falava, gritava. Gritava a noite inteira.
— POR
DEUS, ELA ME DEIXOU SECO! E ERA JOVEM TAMBÉM! MAS FAZIA TUDO COMO SE
FOSSE PROFISSIONAL!
Eu
acendia um cigarro.
Depois
tinha de ouvir a história completa de como ele a conhecera...
— TIVE
DE SAIR PARA COMPRAR PÃO, ENTENDE?
A
partir de então — até o último dos detalhes — o que ela dizia,
o que ele dizia, o que eles faziam etc.
Naquela
época aprovaram uma lei obrigando os Correios a pagar horas extras
aos substitutos. Então os Correios transferiram as horas extras para
os efetivos.
Oito
ou dez minutos antes do horário normal de minha saída, por volta
das 2h48, o alto-falante interno dizia:
— Sua
atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram
às 18h18 devem cumprir uma hora extra!
Janko
dava uma sorriso, inclinava-se para mim e continuava a me verter um
pouco mais de seu veneno.
Então,
oito minutos antes da minha nona hora terminar, o alto-falante
anunciava:
— Sua
atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram
às 18h18 devem cumprir duas horas extras.
Então,
oito minutos antes da décima hora:
— Sua
atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram
às 18h18 devem cumprir três horas extras.
Nesse
meio-tempo, Janko nunca parava.
— EU
ESTAVA SENTADO NESSA LOJA DE CONVENIÊNCIAS, ENTENDE? E ESSAS DUAS
BELEZURAS APARECERAM. ELAS VIERAM SENTAR COMIGO, CADA UMA DE UM
LADO...
O
cara estava acabando comigo e eu não conseguia me safar. Lembrei-me
de todos os outros empregos em que já trabalhara. Eu sempre tinha
atraído os loucos. Eles gostavam de mim.
Então
Janko empurrou seu romance para cima de mim. Ele não sabia
datilografar e tinha recorrido ao trabalho de uma profissional. Os
originais estavam numa luxuosa pasta preta de couro. O título era
muito romântico.
— QUERO
SUA OPINIÃO — ele disse.
— Beleza
— eu respondi.
— Beleza
— eu respondi.
20
Levei-o
para casa, abri a cerveja, entrei na cama e comecei.
Começava
bem. Era sobre como Janko tinha vivido em quartos apertados e
passando fome enquanto tentava encontrar trabalho. Ele tinha
problemas com as agências de emprego. E tinha um cara que ele
encontrava em um bar — parecia ser um tipo bem educado —, mas seu
amigo vivia pegando dinheiro emprestado e nunca se lembrava de
pagá-lo.
Era
uma escrita honesta.
Talvez
eu tenha julgado o cara mal, pensei.
Estava
torcendo por ele enquanto lia. Então o romance se desmanchou. Por
alguma razão, no momento em que começara a escrever sobre os
Correios, a coisa toda deixou de parecer verdadeira.
O
romance ficava cada vez pior. Terminava com ele em uma ópera. Era a
hora do intervalo. Tinha se levantado do lugar para se livrar da
multidão vulgar e estúpida. Bem, eu estava com ele até ali. Então,
ao contornar uma coluna, aconteceu. Aconteceu muito rapidamente. Ele
topou com essa coisa culta, elegante e linda. Quase a derrubou!
O
diálogo seguia assim:
— Ah,
sinto muito!
— Não
foi nada...
— Não
tive a intenção... você sabe... me desculpe!
— Não,
fique tranquilo, não foi nada!
— É
que não vi você... digo, não tive a intenção de...
— Está
tudo bem. Está tudo bem...
O
diálogo sobre o encontrão continuava por uma página e meia.
O
pobre rapaz estava mesmo louco.
Acontece
que essa gata, embora estivesse vagando sozinha entre as colunas,
bem, era casada com um doutor tal, mas o doutor não entendia de
ópera, ou melhor, nem se importava com coisas tão ordinárias como
o Bolero de Ravel. Ou O chapéu de três pontas de De
Falla. Eu estava com o doutor nessa.
Do
encontrão dessas duas almas verdadeiramente sensíveis, alguma coisa
começou a se desenvolver. Encontravam-se em concertos e davam uma
rapidinha depois. (Isso era insinuado e não dito, pois ambos
eram muito delicados para simplesmente trepar.)
Bom,
assim terminava. A pobre e linda criatura amava o marido e amava o
herói (Janko). Não sabia o que fazer, de modo que, é claro,
decidiu se matar. Deixou tanto o doutor quanto Janko sozinhos, cada
qual em seu banheiro.
Disse
ao garoto:
— Começa
bem. Mas você vai ter de cortar aquele diálogo do encontrão em
volta da coluna. É da pior qualidade...
— NÃO
MESMO — ele disse. — NÃO MEXO EM NADA!
Os
meses passavam, e o romance era sempre rejeitado.
— JESUS
DO CÉU! — ele disse —, NÃO POSSO IR ATÉ NOVA YORK APERTAR AS
MÃOS DOS EDITORES, FAZER MÉDIA!
— Olhe,
garoto, por que você não larga esse emprego? Vá para um quartinho
e escreva. Trabalhe no seu material.
— UM
CARA COMO VOCÊ PODE FAZER ISSO — ele disse —, PORQUE VOCÊ
PARECE UM BEBUM. OS CARAS TE CONTRATAM PORQUE PERCEBEM QUE VOCÊ NÃO
CONSEGUIRÁ OUTRO EMPREGO E ENTÃO FICARÁ NO QUE TE OFERECEREM. ELES
NÃO ME CONTRATAM PORQUE OLHAM PARA MIM E VEEM COMO SOU INTELIGENTE,
E ELES PENSAM, BEM, UM HOMEM INTELIGENTE COMO ELE NÃO FICARÁ
CONOSCO, ENTÃO NÃO VALE A PENA CONTRATÁ-LO.
— Continuo
dizendo, vá para um quartinho e escreva.
— MAS
EU PRECISO DE SEGURANÇA!
— Ainda
bem que certas pessoas não pensavam assim. Ainda bem que Van Gogh
não pensava assim.
— O
IRMÃO DE VAN GOGH COMPRAVA AS TINTAS PARA ELE! — o garoto me
disse.
Charles Bukowski, in Cartas na Rua
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