Não
obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da
família, entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao
Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que não tinha opinião
em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum interesse, se
acaso louvas-se as raras prendas de Nhá-loló; por isso calava-se.
Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira
paixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria negativo. Não
era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas qualidades, –
não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e pelo que
respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era noiva
excelente; mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo.
– Lavo
inteiramente as mãos, concluiu ele.
– Mas
você achava outro dia que eu devia casar quanto antes…
– Isso
é outro negócio. Acho que é indispensável casar, principalmente
tendo ambições políticas. Saiba que na política o celibato é uma
remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter voto, não quero, não
devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além,
fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em todo caso
ela não é tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não...
não digo...
– Diga.
– Não,
não digo nada.
Talvez
pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele
possuía um caráter ferozmente honrado.
Eu
mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao
inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de
avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a
exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os
orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.
Como
era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo
de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar
com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer
sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões,
ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se
de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio
requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de
um homem o que é puro efeito de relações sociais.
A
prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu
amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a
alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era
tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até
irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a
reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no
chão: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o
retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o
sestro de mandar para os jornais a noticia de um ou outro beneficio
que praticava, – sestro repreensível ou não louvável, concordo;
mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas,
quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio
mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de
quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a
filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar
que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non. Em
suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a
ninguém.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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