Os
homens começaram a construir casas para se protegerem dos perigos.
Havia os perigos do tempo, chuvas, frio, sol, vento. Havia os perigos
dos bichos e dos perigos dos homens. As casas começaram a ser
construídas para que, dentro delas, as pessoas não tivessem medo.
Primeiro, as cercas, paliçadas, muros. Depois, as paredes fortes. E
as portas e janelas que se abriam durante o dia e se fechavam durante
a noite. Logo os homens perceberam que sua segurança em casas
isoladas era muito precária. Começaram a construir cidades. As
cidades medievais eram verdadeiras fortalezas, cercadas por muralhas.
Nelas só se podia entrar passando por uma gigantesca porta guardada
por soldados. As casas pequenas onde moravam as famílias passaram,
assim, a ser protegidas pelas casas grandes, a cidade. Com isso as
pessoas podiam andar tranquilas pelas ruas: as feras e os criminosos
ficavam do lado de fora. Perigoso, mesmo, era viajar. Nas viagens não
havia o que protegesse os viajantes. E podiam também dormir
tranquilas, sabendo que havia muros e guardas que as protegiam.
Isso
era possível porque as cidades eram pequenas. Quando cresceram e
ficaram grandes demais, ficou impossível protegê-las com muros. As
cidades se abriram então a todos. Coisa sem dúvida democrática.
Mas o resultado foi que ficou impossível controlar a entrada e a
saída de pessoas. Tanto os amigos quanto os malfeitores passaram a
entrar e sair livremente. As pequenas casas ficaram, então, sem a
proteção das muralhas e dos portões. A segurança passou a
depender da polícia que, nessa nova situação, tinha por dever
exercer as funções anteriormente exercidas pelas muralhas e
portões: impedir a ação da violência criminosa.
Durante
muito tempo isso funcionou bem. Não funciona mais. A casa grande
está cheia de medo. A casa pequena está cheia de medo. As pessoas
passaram a fugir dos espaços da cidade. Antigamente as famílias
saíam às noites para simplesmente passear pelas ruas, praças e
jardins. Era gostoso e tranquilo. Hoje ninguém pensa mais nisso. É
mais seguro ficar em casa. A cidade se esvaziou. Ficou deserta. Lugar
de perigo. É mais seguro ir passear no shopping. Com isso as cidades
se degradam.
Um
amigo meu me contou, horrorizado, o que lhe aconteceu em Recife. Ele
queria atravessar uma ponte, mas a pessoa que o acompanhava o
advertiu: “Não atravesse aquela ponte. Ela está cheia de
crianças.” Até as crianças passaram a dar medo. As crianças de
hoje não são como as de antigamente: elas se tornaram aprendizes do
crime.
Os
ricos tentaram reproduzir o modelo medieval das cidades fortificadas.
Fecharam-se em condomínios guardados e edifícios de segurança
máxima. Inutilmente. Não há muro, porta ou guarda que seja capaz
de deter os criminosos. Hoje o crime é um dos negócios mais
rendosos: fora das redes do fisco, fora da rede das punições. A
impunidade do crime se tornou num incentivo ao crime. Por que
trabalhar num emprego de oito horas que paga dois salários mínimos
se resultado muito mais rendoso pode ser obtido numa ação de poucos
minutos? O lucro vale o risco.
Eu
amo a cidade, minha casa grande. É detestável ter medo de sair à
noite, a pé, e ter de ficar em casa. Tenho saudade dos tempos em que
as pessoas punham cadeiras na calçada para conversar. Tenho saudade
dos tempos em que os namorados podiam namorar nos jardins. Jovem, eu
caminhava do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, até a
estação ferroviária da Paulista, às cinco da manhã. Eu era a
única pessoa na rua. O único ruído que se ouvia era o ruído dos
meus passos e o apito dos guardas noturnos. Eu não tinha medo.
Caminhava cantando: “A noite termina, o dia já vem, a estrela da
alva não deve tardar...”
No
momento os bandidos estão levando a melhor sobre a polícia. E o
fato é que o povo nem liga muito, porque não confia também na
polícia. Todo mundo sabe dos acordos entre polícia e bandidos. O
povo está abandonado à sua própria sorte. Não há para quem
reclamar. De que adianta fazer a queixa se se sabe que ela é inútil?
Se nem os assassinos são presos, que dizer dos ladrões de cartões
de crédito, bolsas e toca-fitas? A querida “vozinha”, tia Alice,
que hoje está completando noventa anos, teve seu cartão de banco
roubado na agência da Caixão Econômica e só deu por isso quando
descobriu que as economias que fizera durante toda a sua vida não
mais se encontravam em sua conta.
Não
quero um prefeito que prometa segurança. Essa promessa não pode ser
cumprida. Mas quero um prefeito que prometa lutar por ela. A primeira
condição para a renovação de Campinas é que ela se torne um
espaço onde se possa caminhar sem medo.
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
Nenhum comentário:
Postar um comentário