Fotograma do filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos
Acocorada
junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada
entre as coxas, Sinha Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza
voou dos tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os
olhos, o rosário de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabeção
e bateu na panela. Sinha Vitória limpou as lágrimas com as costas
das mãos, encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e
continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas
lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e
espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e
agitou o abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a
cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas
emanações da comida.
Sentindo
a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou,
retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou
observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes
de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno
e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em
saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando
gente. Mas Sinha Vitória não queria saber de elogios.
Deu
um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos
revolucionários.
Sinha
Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito,
dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas.
Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: –
“Hum! hum!” E amunhecara, porque realmente mulher é bicho
difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha
Vitória andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar.
Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se
em Baleia, dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se
da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro,
sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé
de turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo
na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo,
tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de
lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia
mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio
concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o
couro, tanto para a armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel
necessário economizando na roupa e no querosene. Sinha Vitória
respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as
crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem
dizer, não se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido,
procurando cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinha
Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na
feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos
de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calçada
naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinha
Vitória ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o
respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado.
Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos.
Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de
meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano
entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores,
a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.
Agora
pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às
obrigações da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede
onde Fabiano roncava, tirou do caritó o cachimbo e uma pele de fumo,
saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados
do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a vaca
laranja. Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os
xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.
Um
mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da
seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se.
Diligenciou afastar a recordação, temendo que ela virasse
realidade. Rezou baixinho uma ave-maria, já tranquila, a atenção
desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro das cabras.
Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o
cachimbo de barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa
atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.
– É
capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.
Agachou-se,
atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo,
pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma
cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro.
Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação,
relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse
o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca
de saliva, inclinou-se- e não conseguiu o que esperava. Fez várias
tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se
desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Aproximou-se
do canto onde o pote se erguia numa forquilha de três pontas, bebeu
um caneco de água. Água salobra.
– Iche!
Isto
lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e
neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos à testa,
indecisa. Em que estava pensando? Olhou o chão, concentrada,
procurando recordar-se, viu os pés chatos, largos, os dedos
separados. De repente as duas ideias voltaram: o bebedouro secava, a
panela não tinha sido temperada.
Foi
levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Não
é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água nela e remexeu-a com
a quenga preta de coco. Em seguida provou o caldo. Insosso, nem
parecia boia de cristão. Chegou-se ao jirau onde se guardavam
cumbucos e mantas de carne, abriu a mochila de sal, tirou um punhado,
jogou-o na panela.
Agora
pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro que bicho
enjeitava. Só tinha medo da seca.
Olhou
de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar
sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso
mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à
gente? Arreliava-se com a comparação.
Pobre
do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú
de folha. Gaguejava: - “Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora
isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha
Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era
como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda. A referência
aos sapatos abrira-lhe uma ferida – e a viagem reaparecera. As
alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de
fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio.
Fabiano era ruim.
– Mal-agradecido.
Olhou
os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por
necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava
zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos
tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora
despertar-lhe aquela recordação? Chegou à porta, olhou as folhas
amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir
outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para
entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu
de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao
quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os
filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas dos
olhos. Repreendeu-os: – Safadinhos! porcos! sujos como...
Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.
Os
pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do
caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da trempe, reacendeu o
cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as
teias de aranha e as cortinas de pucumã do teto; Baleia, sob o
jirau, coçava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se
distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles
influiu nas ideias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança.
Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra
vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro.
Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso
um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.
Tudo
ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o
toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação
de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em
varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na
madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam
estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída
de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de
prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se
retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças
miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles
– e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava
Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados,
gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se
ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.
Nesse
ponto as ideias de Sinha Vitória seguiram outro caminho, que pouco
depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha
passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda.
Decidiu armar um mundéu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa
pagaria a galinha pedrês.
– Ladrona.
Pouco
a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram
insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom
levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau
amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não tinham
removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não conseguiam tomar
resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama
igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de
verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a
enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um
couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão
estirar os ossos.
Se
vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa
tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à
raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço
daquela sem-vergonha.
Ergueu-se,
foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e
esquecida. Onde tinha a cabeça?
Sentou-se
na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a
marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, que
sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela
franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a
ideia de possuir uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de
couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas
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